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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

O “antes” e o “depois” de H. Refletindo BaKhtin na prática: sobre “compreensão responsiva ativa” e aprendizagem.

Mara Lúcia Fabricio de Andrade


H frequenta o CCAzinho-IEL/Unicamp, tendo sido encaminhada por “dificuldades de aprendizagem”. H frequenta as atividades do grupo coletivo e era, no semestre passado, acompanhada individualmente pela “cuidadora” F, estagiária do curso de pedagogia. Os relatos acerca de H, sempre culminavam na sua dificuldade para com a escrita, em escrever textos. Comecei a acompanhar H o início de 2009, participando das atividades individuais juntamente com F.

A leitura de Bakhtin (alguns trechos abaixo transcritos) e a observação do caso de H, me levou a refletir sobre as relações, se já que não é obvio em estudos baktinianos, entre “compreensão responsiva ativa” e aprendizagem. Vejamos os trechos e em seguida a apresentação dos dados observados.

“As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicação verbal, são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado -desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico -comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como um ato-resposta baseado em determinada compreensão). O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro.” (grifos meus, p. 293)

“Ora, a relação que se estabelece entre as réplicas do diálogo — relações de pergunta-resposta, asserção-objeção, afirmação-consentimento, oferecimento-aceitação, ordem-execução, etc. — é impossível entre as unidades da língua (entre as palavras e as orações), tanto no sistema da língua (no eixo vertical), quanto no interior do enunciado (no eixo horizontal).” (grifos meus, p. 294).

Um importante ponto a ser observado, e que muito se aproxima do próprio objetivo desta roda de conversas (“... sobre uma idéia de um fazer acadêmico menos hierárquico e mais dialógico”), é a produção textual resultado de uma interação “ordem-execução” e de uma interação “oferecimento-aceitação”. Ao encontrar H, ela se via as voltas com instruções diretas para a produção de um livro. Vejam o que ela produzia no dado 1:

Dado 1: Projeto de livro

1a. Imagem do caderno de H.


1b. Transcrição (fiel)

PROJETO DE LIVRO

PERSSONAGEM: LETICIA

COMO ELA É: ELA É ROXA, GORDA, TEM
CINCO BRAÇOS, E TRÊS PERNAS, TRÊS OLHOS,
DUAS CABEÇAS E SEIS ORELHAS
ELA É CHATA E NINGEM GOSTA DELA
PORQUE ELA FALA DE MAIS ´
ELA ESTA NA CASA DELA E ELA MORA
DENTRO DA ÁGUA

1c. Transcrição (padrão)

Projeto de livro
Personagem: Letícia
Como ela é: ela é roxa, gorda, tem cinco braços, e três pernas, três olhos, duas cabeças e seis orelhas. Ela é chata e ninguém gosta dela porque ela fala de mais. Ela está na casa dela e ela mora dentro da água.

Observando a dificuldade de H frente a uma produção “nua e crua” do tipo “Escreva!” criei uma empatia com sua dificuldade, afinal até mesmo nós, doutores, professores e estudiosos da língua, não escrevemos a partir de um nada...

Sugeri então uma leitura. O livro lido foi “A pequena vendedora de fósforos”, um livro com imagens e texto narrativo. Vejam figura 01:

Figura 01: Início do livro “A pequena vendedora de fósforos”.


A leitura foi feita em uma sessão e na próxima, ao iniciar, inqueri H acerca da estória que tinha lido. O breve diálogo antes que iniciasse o resumo da estória é o que segue.

IMar: E aí H, lembra da estória?
H: (gesto afirmativo)
IMar: O que era? Onde aconteceu? (H ri, desvia o olhar, morde o lápis, olha para a parede e brinca de rabiscar (foto 1) ... )

Foto 1: H desvia sua atenção para várias coisas.


É curioso notar que, frente as perguntas diretas, H foge até mesmo de nosso olhar, meu e de IFer. No entanto, ao lhe ser oferecido o livro, ela discorre um perfeito resumo, recordando-se da estória somente pelas imagens. Noto que o livro é simplesmente oferecido e H o aceita. Veja na foto 2 o oferecimento e a atitude receptiva de H.

Foto 2: H aceitando o livro, em atitude interativa.


Após realizar o resumo do livro, como proposta de produção textual, foi apresentado o livro “A menina das borboletas” (Figura 2). Um livro que conta somente com ilustrações, mas que apresenta uma sequencia narrativa.

Figura 2: Início do livro “A menina das borboletas”


Após algumas explicações, de uma ponte entre oralidade (contar o que via) e escrita (passar a idéia para o papel, como no livro “A vendedora de fósforos”), veio a grata surpresa. Vejam vocês mesmo a produção de H no dado 2:


Dado 2: “A menina das borboletas”: versão de H.

1a. Imagem do caderno de H.


1b. Transcrição (fiel)

Ela está com um vazo de planta e as borboletas fica envouta dela e o passaro fica olhando para ela
Ela está plantando o vazo de plata na terra e as borboletas estam envouta dela e o passaro olhando
ela plantou a plata e ela saio e a borboletas envouta dela e o passaro olhando e uma pessoas entrou lá
E a sinhora pasou o carrinho de mercado porsima da planta e o passaro ficou assustado
Ela voutou onde ela tinha plantado a planta e ela viu que a planta avia caido e a borboleta continuou envouta dela e o passaro olhando
Ela viu a planta e depois ela plantou outra planta do lado da outra e 8 borboletas continuou envouta dela e o passaro olhando ela (*)
Aí ela foi embora e as borboletas envouta dela e o passaro olhando e chegou o homem de mala branca
E o homem de mala branca pisou senquerendo ensima da planta e o passaro ficou triste
E a juliana voutou onde ela plantou e a juliana viu que a planta avia morido e ela comesou a chorar e o passado também chorou e a borboleta envouta dela
E ela foi na casa dela e ela catou uma mala e outra planta e ela voutou onde a flor dela avia morido e as 18 borboletas envouta dela e o passaro ficou feliz
E ela catou o martelo e comesou a martela e as 25 borboletas envouta dela e o passaro olhando
E ela fez uma cerca e a planta dentro e ela foi embora e as borboletas envouta dela e o passaro olhando.
E o cachorro fez chichi na planta e a Juliana viu o cachorro e ela falou sai daqui cachorro e as borboletas fcou asustada e o passaro olhando asustado.
E ela plantou outra planta e ela decidio ficar com ela e as borboletas encima dela e o passaro ohando e ela dormiu com a planta e ela protegel ela e o passaro também e chegou de manhã e a planta creseu e as borboleta envouta dela e o passaro olhando e a tarde as plantas creseu mas a inda e ela comesou a pular e as borboleta envouta dela o passaro olhando e a juliana guanhou tantas flores e a borboletas envouta dela e o passaro olhando e viveram felizes para sempre. (*) Até esse ponto H primeiro interagiu com as investigadoreas, primeiro verbalizando a estória para depois escrever. Desse ponto em diante H ficou em silêncio... observava o livro e escrevia...

É certo que o texto de H apresenta problemas e necessita de intervenção (próximo passo que não tratarei neste texto), mas para alguém que não produzia, que tinha constantes relatos acerca de sua dificuldades com a escrita, trata-se de uma produção significativa.

A reflexão do caso de H pela ótica de Bakhtin me levou a refletir acerca dos seguintes pontos:

a) a natureza da interação no momento do ensino: ordem/execução ou oferecimento/aceitação;
b) a possibilidade de medir e verificar quanto e quando a aprendizagem acontece observando o sujeito (compreensão responsiva);
c) este terceiro ponto soa muito mais como uma resposta do que uma reflexão: sabemos o quanto nossos alunos são desatentos e o quanto o discurso pedagógico atual cobra do professor aulas interessantes. Mas o que é interessante quase nunca o discurso esclarece não passando da teoria. Ora, no caso de H, o que surtiu efeito, o que chamou sua atenção não é nada mirabolante, nem diferente... apenas um livro no qual H apreendeu o gênero e depois apenas outro livro com uma estórinha básica para H recontar. Isso nos leva a refletir, com Bakhtin, que não interessa tanto “o que” (no caso algo mirabolante, cambalhotas, etc.) mas sim o como (oferecimento/aceitação).
d) o porque de H mudar sua escrita da letra de forma para letra cursiva.

Para terminar, Bakhtin (cf. Novaes) tem despontado como um importante aporte teórico para a Neurolingüística praticada no IEL, denominada por Coudry (no prelo) de Neurolingüística discursiva. E o caso de H visto pela ótica de Bakhtin nos evidenciou o quanto a terapia, no caso de dificuldades de aprendizagem, pode ser transpassada por suas noções e o quanto destes casos pode ser melhorado pelo simples acompanhamento de um professor particular e não necessariamente um terapeuta (fonoaudiológo, psicopedagogo).






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