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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

CEMITÉRIO E EPITÁFIOS: O VERBAL E O NÃO-VERBAL IMBRICADOS NAS RELAÇÕES DE PODER APÓS A MORTE

Rosa Brasil
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Desde o início dos tempos, o homem sempre buscou gravar seus conhecimentos, hábitos e costumes de maneira a deixá-los para as próximas gerações, obedecendo tanto ao desejo de perpetuação de tradições e valores quanto também ao temor do esquecimento e do abandono; para isso recorre a diversas estratégias que garantem a continuidade e a renovação de todo o conhecimento. Com a própria morte não é diferente. As lápides mantêm o falecido “preso à terra” e, naturalmente, à estrutura ideológica vigente nesse especo. Portanto, os epitáfios constituem um registro (verídico ou não) da passagem pelo mundo daquele que já não mais existe fisicamente, preservando o cargo, a profissão e o seu valor perante a sociedade, ainda que apenas no campo simbólico. Por isso, é comum observar que cargos e profissões são ressaltados na inscrição tumular, bem como o nível de afetividade dos familiares (sobretudo quando se trata de falecidos em tenra idade), a importância dos genitores, como preservação do grupo familiar, além do prestígio que o falecido exercia em sociedade. É com o intuito de pesquisar os discursos, agrupá-los e analisá-los segundo sua construção, tanto física quanto verbal é que este trabalho elege como local de pesquisa o Santa Izabel, um dos cemitérios mais antigos de Belém, cujas lápides, pertencentes às mais variadas épocas, permitem um estudo mais abrangente acerca dos discursos do que qualquer outro cemitério de Belém. A partir de uma visão sociointeracionista que a comunicação verbal passa a adquirir uma função interativa, em que o ouvinte se encontra em um nível de participação equivalente ao do falante, concordando, ou discordando (parcial ou totalmente) sobre um determinado assunto, tema ou uma circunstância. Por isso, os estudos de Bakhtin mostram que tanto as atitudes de quem ouve quanto as de quem fala passam por um processo de elaboração constante durante a interação comunicativa, uma vez que de ambas as partes há a responsabilidade de completar, adaptar e modificar os enunciados prévios e o enunciado concreto do qual faz parte.Neste contexto surge o conceito de compreensão responsiva, que nada mais é do que “a fase inicial e preparatória para uma resposta” (BAKHTIN, 1997, p. 291). Sendo assim, diferente da teoria saussuriana o ouvinte participa efetivamente da comunicação, pois que dele dependerá a adesão ou não às proposições de seu parceiro e, conseqüentemente, os rumos da conversa. E é o próprio locutor quem espera por essa compreensão responsiva, já que, não desejando uma postura passiva e desmotivadora por parte de quem lhe ouve “joga” com as palavras de modo a instigar uma resposta ativa, seja ela de acordo com seus interesses ou não. Na perspectiva enunciativa de Bakhtin o enunciado é a peça chave da interação social entre indivíduos, passando assim a ser a unidade fundamental da comunicação. Dentre outras características, o enunciado é delimitado pela alternância entre os sujeitos falantes, o que significa dizer que é concebido a partir de uma língua em uso, na realidade viva e concreta na qual se entrecruzam os elementos verbais e os extra-verbais. Assim, não haverá relação de "diálogo" por meio de elemento abstrato (a língua), já que a transcendência do diálogo revela aspectos contextuais não contemplados pela teoria lingüística (FLORES & TEXEIRA, 2005). É importante dizer que enunciados produzidos pelos falantes das mais diversas esferas sociais referem-se entre outros não à frase, mas a discursos. Sobre isso, Travaglia (1997, p.67) chama a atenção para o fato de que se concebe discurso como
toda atividade comunicativa de um locutor numa situação de comunicação determinada, englobando não só o conjunto de enunciados por ele produzidos em tal situação – ou os seus e os de seu interlocutor, no caso do dialogo – como também o evento de sua enunciação.
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O evento de enunciação é fator preponderante na compreensão intersubjetiva, pois é da relação palavra-contexto que depende o sentido do enunciado. Fora dessa relação, o enunciado se torna um elemento abstrato, puramente lingüístico, possuindo apenas seu significado descontextualizado. É por esse motivo que Bakhtin (1997a) esclarece que o que determina o processo de enunciação presente nas interações humanas é a situação social mais imediata que os interlocutores ocupam, isto é, se estão na mesma hierarquia social, se são escolarizados, entre outros aspectos. Já na dialogicidade da linguagem, a enunciação é concebida como um fazer coletivo. O outro, nesse processo, desempenha um papel essencial, pois é inconcebível pensar no ser humano fora das relações intersubjetivas, agindo e se comunicando sozinho, sem levar em consideração os discursos alheios em situação concreta – presentes em sua bagagem cultural – e o outro, a quem direciona seu discurso. São essas relações existentes entre o eu (self) e os outros (selves) que permeiam a concepção de dialogismo nas obras de Bakhtin. Dessa forma, entender essas relações é também compreender que a expressividade dos sujeitos (eu e os outros) “nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade real, que se atualiza através do enunciado individual” (BAKHTIN, 1997b, p.313-314). Desse modo, a visão dialógica do enunciado pode ser definida por meio da relação necessária entre um enunciado e outros enunciados, já que é nas situações comunicativas que eles se moldam para um entendimento mútuo entre os locutores. Leva-se, portanto, em consideração, o outro, a situação em que os interlocutores se encontram e a esfera social, ou seja, o lugar social que cada um ocupa na sociedade. Conforme Miotello (2004, p. 201) a palavra “sempre é a palavra do outro, palavra alheia, e o Eu vai buscar as palavras que usa não no dicionário ou nas gramáticas, mas nos lábios alheios e contextos alheios”, nessa concepção a palavra é o meio pelo qual o outro é garantido como social, é, por conseguinte, um dos modos mais eficazes da comunicação humana e é justamente isso que a torna tão importante nas relações sociais. É da presença de várias vozes que surge então o conceito de dialogismo - a voz do outro em relação indissolúvel com o “eu” (self), atualizada pelas características individuais do self. Portanto, convém ressaltar que, para Bakhtin (1997b, p.313) a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém, como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche eco de enunciados alheios e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou da minha expressividade.
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É a partir destes três aspectos que o “eu”, individual e expressivo, constitui-se na relação com os outros. É sempre a partir do contato social, da relação com o coletivo que se forma a identidade subjetiva. Ao se comunicar, ao interagir por meio dos enunciados concretos, há uma “apropriação” da palavra alheia, dos enunciados coletivos, que passam a ser em certo grau do falante que os utiliza. Desta forma, os enunciados dos falantes são sempre antecedidos pelas vozes alheias, o que caracteriza os falantes ao mesmo tempo como seres sociais e individuais; sociais porque “tomam emprestado” do outro o discurso; e individuais porque só o usam após filtrá-los, liberando–os, por assim dizer, ‘impregnados’ de personalidade, de estilo, a que Bakhtin chama de expressividade. Pode-se perceber que o processo comunicativo não é algo feito de maneira aleatória; se assim fosse, não seria possível um entendimento mútuo, pois cada falante se comunicaria de maneira desorganizada, sem atentar para elementos importantes a uma comunicação bem sucedida, como por exemplo, a posição social do interlocutor, o conteúdo e o local da conversação. Assim, pode-se perceber que a comunicação é um processo complexo, regido por leis e que – por ter um caráter organizado - ocorre sempre no interior de um gênero textual específico, tão diverso quanto são diversas as esferas da comunicação humana. Daí a importância de se conhecer os gêneros textuais, suas características e finalidades.
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2. OS GÊNEROS DO DISCURSO: A ETERNA NECESSIDADE DO DIZER
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2.2. OS GÊNEROS DISCURSIVOS COMO CONDIÇÃO PRIMÁRIA PARA O PROCESSO COMUNICATIVO
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Quando os falantes se comunicam, automaticamente estão inseridos em uma situação social de interação e, para que esse processo flua da melhor forma possível, utilizam-se de uma forma padrão compreensível e adequada ao entendimento mútuo, apropriando-se assim de ferramentas de comunicação as mais variadas possíveis e são exatamente essas ferramentas que darão forma ao enunciado, encaminhando-o a um gênero específico. Por essa relação de interdependência pode-se dizer, portanto, que qualquer enunciado faz parte de um gênero e que jamais se pode pensar neste sem levar em consideração o ciclo de atividades envolvendo as condições de produção, circulação e recepção em que ele se constitui e atua. Com isso, é seguro afirmar que
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Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo. Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais (e escritos). Na prática, usamo-nos com segurança e com destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica. (BAKHTIN, 1997, p.301)
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Desse modo, o gênero se molda de acordo com a variabilidade das circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal com o(s) interlocutor(es): “há o estilo elevado, estritamente oficial, deferente, como há o estilo familiar que comporta vários graus de familiaridade e de intimidade (distinguindo-se esta da familiaridade)” (BAKHTIN, 1997, p.302).
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Segundo Bakhtin, os gêneros de cunho oficial são pouco flexíveis, pois não permitem expansões de sentimento, como o requerimento, a ata e a entrevista formal, que não necessitam de um estreitamento das relações entre os sujeitos participantes, Entretanto existem gêneros mais maleáveis, como a carta familiar, o bilhete e a própria conversação espontânea, nos quais as expressões de emoções e o grau de intimidade concorrem para o êxito do processo comunicativo.
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Por essa diferença de estruturação e de objetivos, os gêneros se dividem em dois tipos: os primários e os secundários. São chamados de primários os gêneros que se enquadram no estilo familiar pelo fato de apresentarem uma interação comunicativa comum, cotidiana, simples, cujo objetivo é satisfazer uma comunicação discursiva imediata. Já os secundários são os gêneros que possuem um maior grau de complexidade; geralmente exigem maior tempo de planejamento e não possuem o imediatismo que permeia os gêneros primários, como é o caso, por exemplo, do romance, do texto científico, da palestra, enfim, dos gêneros pertencentes à literatura, à ciência, à ideologia e à filosofia, construídos dentro da cadeia científica, artística e política. Porém, é importante mencionar que a existência da classificação em primários e secundários não significa que há um isolamento entre os dois tipos de gênero, mas sim que ambos podem se encontrar em uma relação mútua, em que os primeiros podem ser intercalados/absorvidos no segundo, principalmente quando há o surgimento de “novos” gêneros, decorrentes do avanço tecnológico. Desse modo ocorre a passagem de uma estrutura simples a uma complexa, embora isso afaste os gêneros primários do seu espaço cotidiano, já que passam a fazer parte do campo da verossimilhança, não mais da realidade. Com relação à quantidade de gêneros existentes, ainda não há – e talvez nunca haverá – um número exato, pois, como eles fazem parte da esfera da necessidade de se dizer algo e surgem da interação entre interlocutores que estão sempre inseridos em atividades comunicativas, serão diversos quanto mais diversas forem as formas de se comunicar. Por serem ligados às necessidades comunicativas do ser humano, é compreensível a existência de um grande número de gêneros que dêem conta da eterna necessidade do homem de interagir verbalmente. Como bem diz Marcuschi (2002, p.29), “Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros”.Assim, existem gêneros com objetivos os mais diversos; há aqueles que se ocupam de apresentar um candidato a um cargo profissional como o currículo e a entrevista formal. Há os que são veículos de informações e descobertas científicas, como os seminários e os simpósios. E há aqueles que existem a partir do fenômeno natural da morte e que se destinam a homenagear os entes que partiram.
É o caso do gênero epitáfio.
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2.3. QUANDO OS MORTOS FALAM: O GÊNERO EPITÁFIO
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Quem nunca se deparou com escritos curiosos no cemitério em um dia de finados, com inscrições como: Quero habitar no interior de um grão de trigoOnde não há nem som nem ausência Apenas equilíbrioNum permanente cantochão de estranhas vozesDer morada em morada serei então eternidade A.M. 1967(Jazigo da família Ruy Vieira – Alameda St. Terezinha, quadra 8-H).
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Quem nunca pensou no significado de alguma inscrição tumular? E na sua veracidade?Afinal, quais os possíveis aspectos que norteiam as inscrições tumulares?O epitáfio é um gênero que “nasce” somente a partir da morte de alguém, por isso seu suporte é a sepultura, seu ambiente é o cemitério e seus companheiros são o silêncio, a solidão e a tristeza. Esses escritos são produzidos em um momento de dor e de perda, quando elaborados por familiares, e geralmente constituem uma homenagem ao falecido e um registro de suas ações de vida. Os produtores da inscrição tumular são na maioria das vezes parentes e amigos, mas há casos em que os produtores são empresas ou instituições aos quais o falecido era ligado, sendo os epitáfios produzidos utilizados para ressaltar seu cargo e seu talento profissional. Há também epitáfios produzidos pela própria pessoa, que em vida lega a um responsável a inscrição que deseja ver em sua lápide, como a de Antônia Muca de Souza, por exemplo:
Tudo o que eu não tive devo aos exemplos de honestidade de meus paisDeus é paiDeus é filhoDeus é Espírito SantoAntônia Muca de Souza*16 – 05 – 1905 + 17- 09 - 2000
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O epitáfio é, enfim, um registro que perdurará durante muitos e muitos anos. Sobre o espaço em que se encerram as lápides, o cemitério, Paulo Henrique Muniz em seu artigo intitulado O estudo da morte e suas representações socioculturais, simbólicas e espaciais afirma que
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São espaços construídos socialmente e podem ser vistos como lugares de práticas sociais que traduzem leituras sociais (...) Tais paisagens históricas deslocam o nosso pensamento não apenas para o patrimônio arquitetônico, mas para os valores, tradições, modos de viver, conflitos e tensões, processo de enraizamento: conjunto de relações sociais, culturais, econômicas e políticas neles contidos. (p. 160-61)
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O cemitério é também o reflexo da sociedade, com sua organização, sua estrutura e seus conflitos, e que o discurso presente na lápide é a prova de que o homem, tendo consciência de sua limitação terrena, transporta para os limiares da morte todo um patrimônio cultural, econômico e social, para se dar a (re)conhecer àqueles que visitam esse espaço. É uma maneira de não se despojar de sua personalidade, de seu valor:
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A análise de lápide, pedra com inscrições comemorativas de determinado acontecimento, no caso a morte, nos “fala” quem era o morto e onde ele viveu, ou ainda, o que representava para aqueles que morreram. ( Muniz, p.165)
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É por isso que, desde o início dos tempos, o homem busca gravar os conhecimentos, hábitos e costumes de seu povo, de maneira a deixá-los para as próximas gerações. É obedecendo ao desejo de perenidade e ao temor do esquecimento e do abandono que o homem se vale de estratégias que possam lhe garantir a eternidade. E com a morte não poderia ser diferente.
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É o que Muniz comprova ao dizer que
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O monumento funerário destina, entre outras coisas, principalmente e perpetuar a recordação no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte. (p.166)
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Por isso, as lápides são ideais para manter o falecido preso à terra, por meio da lembrança, ainda que esmaecida pelo tempo. Os epitáfios nada mais são do que registros (verídicos ou não) da passagem pelo mundo daqueles que já não mais existem fisicamente, daqueles que já retornaram ao pó.Quanto à organização textual, o epitáfio geralmente é produzido em letras de forma, para deixá-lo legível mesmo com o passar dos anos. Este gênero traz a numeração do túmulo e símbolos que representam o início (*) e o fim da vida (+). Há casos em que esses símbolos são substituídos por abreviações, como (N ) / (NAS) para o nascimento e (F) / (FAL) para a morte. Por mais que seja um gênero curto e conciso, visando a economia de palavras e a uma leitura mais eficaz, há casos em que esta preocupação acaba por dificultar a leitura da inscrição, como o exemplo a seguir, em que a ausência de pontuação obriga o visitante a uma segunda leitura::Aqui repousam Nazareth Maria de Brito Galvão14-0-1900 + 13-06-1974 João Garcia Galvão07-02-1899 + 14-10-1979Viveram juntos plantaram suas sementes e nasceram os frutos hoje com a árvore da vida caída voltaram a estar juntos para o descanso eterno com a saudade de seus filhos genros noras netos e bisnetos.
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É, portanto, com o intuito de pesquisar e analisar a peculiaridade das inscrições tumulares que este trabalho elege como local de pesquisa o Santa Izabel, uma das necrópoles mais antigas de Belém, cujas lápides – pertencentes às mais variadas épocas – permitem um estudo abrangente acerca dos discursos e de seus aspectos ideológicos.
Como primeiro caso, há o exemplo da lápide do Coronel Antônio Sérgio Dias Fontoura. As palavras identificadas em negrito são as reveladoras do cargo e da importância que o indivíduo exercia na sociedade:
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Aqui repousa [sic] os restos mortais do coronel PM Antônio Sérgio Dias Vieira de Fontoura – Patrono da polícia militar do Pará – herói da campanha de Canudos. Nascido em 17 – 8 – 1864 e falecido em 25 – 2 – 1923Que os componentes da brigada militar do Pará vejam na sua conduta um exemplo a seguir e que nunca nos delembremos de seu brilhante nome.
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Esta lápide, localizada logo na entrada do cemitério, (onde podem ser observados túmulos e jazigos suntuosos) é um exemplo do que Henrique Muniz (2006) fala sobre a preservação da memória daqueles que já faleceram. No caso do Coronel Fontoura, as palavras demarcadas mostram seu cargo, seus méritos e a importância de sua existência, gravando-os na pedra a fim de que – por mais que passe o tempo e as pessoas esqueçam o que foi a Campanha de Canudos – seu nome seja sempre lembrado e automaticamente associado a esse marco da história brasileira. A fotografia dessa sepultura mostra a “grandiosidade” de sua “construção”. Estética e materiais caros, como o granito preto e o bronze, fazem parte de uma composição que atribui ao falecido a mesma “imagem”. É importante notar as hastes compridas, altas, em granito preto, que se sobrepõem ao túmulo em mármore branco (figura 01). No alto das hastes, uma espécie de “medalhão” evidencia a imagem do rosto do Coronel, numa clara analogia às medalhas expostas pelas autoridades vinculadas às forças armadas e á polícia brasileira. O Coronel é tal qual apresentado, emblemático; compõe a própria medalha; é “uma medalha”, exposta num plano bem mais alto que o túmulo. A altura e a evidência dadas à “medalha” também “marcam um espaço” ideológico, hegemônico.
Figura 01 – Túmulo do Coronel Fontoura (1897) no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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Um ponto interessante no caso do Coronel Fontoura é o que se pode chamar de invasão do espaço público, pois a homenagem da polícia militar ao “Patrono da Campanha de Canudos” ultrapassa os limites do convencional e vai até o muro que delimita o cemitério cristão do cemitério dos judeus, como mostra a foto a seguir:
Figura 02 – Inscrição tumular no muro do Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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Cabe chamar a atenção para o fato de que não se trata de pichação ou qualquer outro tipo de escritura que não a própria utilizada no epitáfio, ou seja, com a intenção de homenagear, ressaltar o falecido. É como se o gênero se mantivesse, mas em outro suporte (o muro) a fim de chamar mais atenção ao Coronel Fontoura. É interessante observar que o visitante aceita com naturalidade essa invasão do espaço público, talvez sem nem percebe-la. Possivelmente isso aconteça por se tratar do jazigo da Polícia Militar, mas será que veriam com naturalidade essa invasão se não se tratasse de uma figura importante?
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Uma outra lápide relacionada à classe social é a de José dos Santos Moura: Aqui repousa José dos Santos Moura José Feijão Falecido em maio de 1933. Saudades de sua família e seus patrões
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Ao mencionarem-se os patrões na inscrição tumular, pode-se inferir que houve uma participação direta destes em algum momento da vida desse indivíduo, seja em vida, ou mesmo próximo à morte, como, por exemplo, no pagamento de medicamentos (em caso de doença prolongada), na compra da urna mortuária, ou até mesmo da sepultura. Esta hipótese toma força no momento em que se percebe que a sepultura está localizada na mesma área em que estão enterrados indivíduos de classe social mais elevada e de notória importância social, como é o caso do Coronel Fontoura e do Desembargador Manuel Buarque, falecido em 1943.
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De certa forma há um desejo de tornar perene alguma boa ação feita pelos patrões citados, ainda que esta não possa ser mencionada. Caso não existisse o interesse de autopromoção, o discurso seria outro e os patrões estariam incluídos entre os amigos do falecido, posição essa que não os destacaria na perspectiva de quem lesse o epitáfio de José Moura. Interessante é perceber que mesmo estando em uma área privilegiada e, de certa forma, possivelmente localizada ali por influência dos patrões, o maior símbolo cristão não é feito em mármore ou em algum tipo de material que denuncia uma posição privilegiada, mas de madeira simples, como mostra a foto (figura 03). A cruz é mantida como representação cristã ou como alegoria típica, simbólica, do “espaço dos mortos”. Figura 03 – Túmulo de José Moura no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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Com relação à faixa etária, verificou-se o uso de diminutivos afetivos em lápides de crianças falecidas em tenra idade, além de outros indicadores da juventude. É o caso da sepultura de Brígida Soares: Aqui jaz [sic] os restos mortais de Brígida Pereira Marques 06–5–1896 + 3–5 –1907Saudades de seus entes queridosFostes a Terra apenas uma ilusãoE eras do alto uma grande luzLá do alto brilharás entre as estrelasInocente penhor do nosso amorPartistes chamando por JesusE deixastes teus pais em grande dor Neste caso a palavra ilusão se refere à breve passagem da criança na Terra e o adjetivo (inocente) indica a pureza própria da infância. Nessa categoria também se insere a sepultura de Keila Cristina:
Keila CristinaNossa Princesinha amada. Iluminaste nossas vidas por 15 anos e continuarás sendo o sol de nossa existência. Teus pais, irmãos e familiares
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Aqui o adjetivo (princesa) seguido do diminutivo remete à idéia tanto da importância da jovem para seus familiares, quanto da pouca idade que possuía ao falecer. A referência à juventude é feita com a explicitação da idade da falecida (15 anos). Vê-se, portanto, que a lápide é construída de acordo com a pessoa a quem se refere.
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2.4. O EPITÁFIO SEGUNDO A INTERNET: DE PESQUISAS SÉRIAS À TIRADAS DE HUMOR
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Segundo o site Wikiquote – a enciclopédia de citações livres – a palavra epitáfios tem origem no grego e é formado pelo prefixo EPI, que significa posição superior e TAFOS, radical que significa túmulo. O termo formado então é “sobre o túmulo”, local onde são posicionadas as inscrições tumulares.
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Já segundo o Yahoo! Resposta, na sua origem, o epitáfio era uma inscrição que narrava os maiores feitos dos grandes heróis e/ou cavaleiros, nobres e reis. Esse gênero posteriormente se popularizou, passando a ser utilizado para exaltar as qualidades de qualquer pessoa ou os sentimentos de pessoas próximas.
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No site Folclore Verbal, as escritas tumulares são consideradas um grande livro. Livro esse constituído de alfabeto e escrita próprios, nascido e registrado pela espontaneidade de linguagem rica e viva no plano de comunicação humana. O estado de espírito e a sabedoria que revelam são considerados surpreendentes aos espectadores. Neste site os exemplos de lápides fazem parte de uma pesquisa feita no Cemitério Municipal de São João Batista de Olímpia, em São Paulo.
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Além das pesquisas sérias, que dão conta da origem e da utilidade do epitáfio, também existem sites que se dedicam a brincar com este gênero, parodiando inscrições tumulares já existentes, criando outras conforme o estereótipo ou incentivando o auto-epitáfio, sempre, é claro, com altas doses de humor. É o caso do site Fala Sério, em que os internautas enviam os epitáfios criados, dentro da regra dos estereótipos, como os exemplos a seguir:
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Do espírita: Volto logo!Do bailarino: DanceiDo piadista: e agora, vão rir de quê?Do hipocondríaco: Não falei que estava doente?
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Em um dos maiores sites de relacionamentos, o ORKUT, o assunto é debatido em diversas Comunidades, muitas com o mesmo nome: Epitáfios. Entre outros assuntos, há tópicos que incentivam a criação da própria inscrição tumular. Nessas comunidades, há tanto os epitáfios bem humorados, quanto os tristes e sombrios, o que revela a visão de cada membro da comunidade em relação ao fenômeno natural da morte.
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3. IDEOLOGIA: UM INSTRUMENTO DE PODER 3.2. IDEOLOGIA: UM CONCEITO (MULTI) DEFINIDOR
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Inúmeros são os estudos e as teorias que propõem um conceito atual de ideologia. Este termo recebeu várias definições e uma delas é formada a partir da sua raiz significativa, isto é, com radical “logia” significando a ciência ou estudo de algum fenômeno e “ideo” a idéia. Tinha-se então que o conceito de ideologia era o estudo investigativo ou cientifico das idéias humanas, mas o termo também já significou crenças ilusórias, abstratas e crenças sistematizadas, concretas, estabelecidas em prol da legitimação do poder dominante.
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É necessário ter em mente que a ideologia não deve ser concebida como uma ilusão, algo distante da realidade, ao contrário, longe de ser um elemento abstrato, meramente contemplativo, ela, por si só é capaz de mover, organizar e legitimar os interesses de um grupo ou de uma classe a qual está ligada. Logo, a ideologia é definida como um conjunto de idéias organizadas e acatadas por um determinado grupo, o qual por meio de signos ideológicos faz valer seus interesses e objetivos, geralmente, direcionados para a detenção do poder e dominação das demais classes. Neste sentido,
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A ideologia não é uma ilusão infundada, mas uma sólida realidade, uma força material ativa que deve ter, pelo menos, suficiente conteúdo cognitivo para ajudar a organizar a vida prática dos seres humanos. (Borges e Vieira. 1997, p. 36) É importante ressaltar que a ideologia é real o bastante para construir e solidificar as bases sobre as quais os indivíduos moldam suas identidades, seus pontos de vista, suas práticas, atitudes e ações sociais. Se a ideologia mostrasse ao seu fiel defensor um caráter frágil, o qual não fosse digno de confiança, rapidamente seria substituída por uma outra mais consistente, crível. Desta forma,
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Qualquer ideologia dominante que falhasse por completo em harmonizar-se com a experiência vivenciada por seus sujeitos seria extremamente vulnerável, e seus representantes bem em trocá-la por outra. (Borges e Vieira. 1997, p. 27)
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Para Marx, a ideologia (Nagai, 2004. p. 108) estava associada a poder político, luta de classe e apresentava-se como uma ferramenta de dominação da classe dominante. Já para a filosofia socialista, ideologia se definia como um conjunto de crenças, embasadas em um ideal de sociedade igualitária, a qual se distanciaria da exploração da classe operária, que ocupava suas vidas em uma labuta infrutífera e incessante. Para o capitalismo, o termo está associado ao livre mercado, ao lucro, à prosperidade, à inovação. Eis o caráter individualista e individualizante de tal sistema e de toda a sua pregação ideológica, a qual camufla a verdadeira busca, o real objetivo, que é beneficiar os detentores do capital.
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Ao referir-se ao termo ideologia, Bakhtin (1992) amplia sua definição em relação à definição marxista, a qual percebe este conceito como instrumento de dominação, do qual a classe dominante, hegemônica, beneficia-se. Segundo a teoria marxista, somente a classe dominante é formadora e propagadora da ideologia, que se materializa por meio da linguagem e é utilizada como reguladora, manipulando as demais classes. Neste sentido, a linguagem é definida por Bakhtin (1992) como fenômeno ideológico por excelência, o qual apresenta sua face ludibriadora, enganosa, deformadora, uma vez que camufla verdades.
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Já Bakhtin (apud Miotelo, 2004, p 69) enfatiza que não é somente a classe dominante que produz ideologia, mas todos os grupos sociais e as ideologias produzidas são refletidas e materializadas nos enunciados concretos por meio dos quais os sujeitos sociais de todas as classes travam suas lutas, para impor seus interesses. Nesta acepção, o signo ideológico apresenta-se como instrumento de luta, de embate, de confronto ideológico, o qual garante ao signo seu caráter flexível, móvel, vivo. Sobre esta questão, Bakhtin (1992. p. 46) posiciona-se a respeito:
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Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá debilitar-se degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional vivo para a sociedade.
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Assim, a ideologia deve ser vista como algo pertencente ao domínio social, carregado de história, dos valores dos diversos grupos sociais, dos sujeitos reais, que são os interlocutores das conversas sociais corriqueiras, cotidianas, as quais se organizam se materializam e se estabilizam. Desta forma, As palavras sígnicas serão as portadoras dos sonhos e das frustações de cada grupo social organizado, constituirão a “memória do passado” e a “memória do futuro”, o relato mais fiel da vivencia e do modo de vida de cada grupo organizado. (Miotelo, 2004, p.70)
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3.3. A IDEOLOGIA OFICIAL E A DO COTIDIANO: UMA RELAÇÃO DIALÓGICA
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Existem dois tipos de ideologia: A oficial (e, por conseguinte, a dominante), que busca estabelecer como verdade a concepção de mundo que interessa a seus propósitos e a ideologia do cotidiano, que é constituída a partir das relações cotidianas, nas condições de produção e reprodução da vida, defendendo concepções contra-hegemônicas. Ao passo que esta é considerada relativamente instável por ser “acontecimento”, a outra é estável, uma vez que é considerada como conteúdo ou estrutura.A ideologia oficial se auto afirma a partir das / nas superestruturas, como a educação, a mídia, as leis, as ciências, enquanto que a ideologia do cotidiano aparece pura e simplesmente no momento da interação social e se constitui, segundo Bakhtin (1997), no predomínio da palavra que provém dos sujeitos a partir do interior bem como, do exterior, acompanhado de atos, gestos, emoções e sentidos que provém da consciência. Desse modo, a ideologia do cotidiano é determinada pelas forças sociais.Deve-se ter em mente que a ideologia oficial e a do cotidiano não são categorias imóveis, cristalizadas, mas que estão em constante processo de deslocamento e interação. Assim, de acordo com Nagai (2004, p.113) a ideologia do cotidiano tende muitas vezes a se tornar oficial, poisnos espaços onde está presente a ideologia hegemônica está também a ideologia do cotidiano e vice-versa. Uma necessita da outra e sempre em relações dialéticas e dialógicas, ou seja, uma convive com a outra da mesma forma que uma transforma a outra. Em qualquer lugar que está presente um livro e um sujeito o lê, há uma resposta que corresponde inicial e necessariamente à ideologia do cotidiano, desde um pensamento, um comentário com um amigo, uma discussão, uma resposta na prova, um questionamento, um interesse ou desinteresse; e depois, a resposta cotidiana, pode ou não superestruturar-se em uma resenha, um trabalho acadêmico, uma tese de mestrado, em uma crítica literária publicada em um jornal etc.Por esse caráter de mobilidade, deve-se ter em vista a relação dialética e dialógica que entrelaça a ideologia do cotidiano à ideologia oficial, visto que uma não existe e não sobrevive sem a outra, já que, ao mesmo tempo em que se complementam, elas se confrontam em “uma arena de luta” na qual uma busca superar a outra, sem, contudo, exterminar a rival, porque dela necessita.
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Um ponto a ser considerado é a questão de se postular a ideologia como “falsa consciência”, pois consoante Fiorin (2000, p. 29),
se há inversão da realidade, a ideologia está contida no objeto, no social, não podendo, portanto, ser reduzida à consciência. Ela existe independentemente da consciência dos agentes sociais. É uma forma fenomênica da realidade, que oculta as relações mais profundas e expressa-as de um modo invertido. A inversão da realidade é ideologia. Por isso, é preciso muito cuidado ao usar a expressão “falsa consciência.” Ela indica apenas que as idéias dominantes são elaboradas a partir de formas fenomênicas da realidade, não apreendendo, portanto, as relações sociais mais profundas. Essas idéias são, por conseguinte, ideologia sobre ideologia. A representação pode ser invertida, porque a realidade se põe invertida.
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Verifica-se, dessa forma, que o conceito de ideologia é muito mais profundo em relação à própria epistemologia; por outro lado, dizer que a ideologia dominante se sobrepõe aos demais por meio dessa “falsa consciência” é o mesmo que dizer que o outro não se manifesta. Verifica-se que há um processo de interação e que nenhum dos sujeitos estão mergulhados em uma “névoa” de “falsa consciência”, visto que os sujeitos da enunciação concreta travam batalhas sociais e políticas no seio dos signos, significados e representações. Sendo assim, não há uma “falsa consciência”, pois se há uma subjugação ou aceitação à determinadas ideologias, é porque elas em parte conseguiram ser eficazes, ou seja, houve um trabalho processual acerca do Outro, do cotidiano, daquilo que o outro experiencia e processa de forma social. Há um confronto, um deslocamento das duas partes naquilo que se concebe como realidade social.Assim, quando a ideologia se propaga como dominante, desejando manter o seu poder, ela ativa e põe em prática pontos e contrapontos, levando em consideração sempre as necessidades e os desejos do Outro, ou seja, aquele a quem ela deseja atingir. Eagleton (1997, p. 26), assim, afirma que as ideologias dominantes podem moldar ativamente as necessidades e desejos que as pessoas já tem, captar esperanças e carências genuínas, reinflecti-las em seu idioma próprio e específico e retorná-las aos seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem ser “reais” o bastante para propiciar a base na qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e incoerências mais flagrantes. Em resumo, para terem êxito, as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada.
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Logo, há uma interação entre aqueles que dominam e aqueles que se deixam dominar, portanto, uma ideologia oficial é dialógica por natureza, visto que, mesmo num discurso autoritário, voltado para o Outro, aquele só sobrevive mediante à resposta deste, à alguma forma de concordância, mesmo que seja o silêncio.
Tomando como ponto de partida a ideologia em seu sentido mais amplo, Althusser (1969) diz que se constitui a partir das práticas significativas que são peculiares aos seres humanos, enquanto sujeitos sociais que se vinculam a partir das/nas relações de produção dominantes. Dir-se-ia que, como termo, abrange todas as diversas modalidades sociopolíticas, desde a forma de identificação com o poder dominante, até a atitude de oposição a ele. Eagleton (1991, p.30) confirma que
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a ideologia não é um mero conjunto de doutrinas abstratas, mas a matéria da qual cada um de nós é feito, o elemento que constitui nossa própria identidade; por outro, apresenta como (...) uma espécie de verdade anônima universal.
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Portanto, a ideologia em outras palavras constitui-se a partir do / no processo concreto de produção de idéias, crenças e valores na vida social, compartilhadas entre o locutor, o interlocutor e a comunidade específica a qual pertencem.
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4. QUANDO AS INTENÇÕES VÃO ALÉM DA SAUDADE: AS DIVERSAS FORMAS DE PUBLICIDADE PÓSTUMA
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4.1. OS GUARDIÕES DA TRADIÇÃO: O NOME DE FAMÍLIA E A ORDEM DAS DATAS DE FALECIMENTOA família representa um grupo social primário que influencia e é influenciado por outras pessoas e instituições. É um grupo de pessoas, ou um número de grupos domésticos ligados por descendência (demonstrada ou estipulada) a partir de um ancestral comum, matrimônio ou adoção, na qual em seu interior existe sempre algum grau de parentesco. Seus membros costumam compartilhar do mesmo sobrenome, herdado dos ascendentes diretos. A família é unida por múltiplos laços capazes de manter os membros moralmente, materialmente e reciprocamente interligados, associados, durante uma vida e durante gerações.Pode-se, então, definir família como um conjunto invisível de exigências funcionais que organiza a interação dos seus membros, considerando-a, igualmente, como um sistema que opera através de padrões transacionais. Assim, no interior da família, os indivíduos podem constituir subsistemas, podendo esses serem formados pelos critérios: geração, sexo, interesse e/ ou função, havendo diferentes níveis de poder, sendo que os comportamentos de um membro afetam e influenciam os demais. Como unidade social, a família enfrenta uma série de tarefas de desenvolvimento, diferindo quanto aos parâmetros culturais, mas possuindo as mesmas raízes universais (MINUCHIN,1990)Sendo assim, pode-se perceber que a família é um elemento importante para a sociedade, seja em que época for, embora essa importância ganhe representações diferenciadas no decorrer do tempo, de acordo com cada processo histórico em particular. O nome de família é algo que deve ser perpetuado, principalmente para o homem, que é quem verdadeiramente passa o nome da família para a posteridade, já que as mulheres, por lei, devem-se submeter ao grupo familiar do marido, passando a adotar seu nome. Pesquisou-se então de que forma os epitáfios passam ao público visitante a visão sobre as características, idéias e intenções do grupo familiar que “apresenta”. Dos jazigos pesquisados verificou-se que há três maneiras de caracterizar o grupo familiar. Há sepulturas que não identificam os entes ali sepultados, contendo apenas o sobrenome, como a família Jesus Ferreira:
Esta é a páscoa derradeira que sirva a reflexão dos mistérios da vida vou para a luz e vos deixo a conformação
Jazigo da família Jesus Ferreira
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Interessante é perceber a existência (ou não) de uma incoerência contida na inscrição, assinalada pelo verbo na primeira pessoa do singular (“vou”), fato que entra em contradição com a idéia de coletividade que permeia o jazigo, o que invariavelmente causa a dúvida: quem escreveu a inscrição? Em que momento? Para quem? Com que intenção?
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Mas essa aparente incoerência pode ser contornada se o nome da família for considerado em primeiro plano. A inscrição traz em seu interior uma forte representação dos ideários cristãos, que pode até mesmo fazer referências às palavras de Jesus. Nesse caso, a inscrição traz a palavra do Senhor, fortificada pela coincidência com o nome do grupo familiar.
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Há casos em que os jazigos identificam as pessoas sepultadas até o momento, como é o caso da família Távora Buarque:
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Desembargador Manuel Buarque + 1943Amália Távora Buarque + 1968Myrian Távora Buarque + 1985Aurélio Távora Buarque + 1993
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Que viveram na comunhão de amor o mistério da fé aguardam na alegria de deus a esperança da ressurreição
Há até mesmo o objetivo de mostrar a união e o amor existentes entre aqueles que lá descansam o sono eterno, como é mostrado na inscrição acima na qual o pronome relativo que exerce a função de fazer referência aos membros da família anteriormente citados. E há casos em que além de conter o nome da família, ainda há a identificação de todos os falecidos contidos na sepultura. É uma forma de dar ao visitante maior visibilidade acerca da importância da família e de seus membros, como é o caso da família Andrade Dias.
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Jazigo da Família Andrade DiasDra. Cíntia do Socorro Andrade Dias(Neuro Cirurgiã)9-05-1975 + 17-03-2005Saudades eternas de seus pais, irmãos, avós e tiosMaria Stela Bentes Dias(Sinhá) 24-1-1917 + 16-11-2005
Com relação à ordem das datas de falecimento, verificou-se que elas, em sua grande maioria, estão dispostas de forma a privilegiar o ente que faleceu primeiro. Acredita-se que essa disposição seja para pôr em evidência os patriarcas da família, já que geralmente são eles que morrem primeiro. É, portanto, mais uma tentativa de preservar a tradição que permeia os grupos familiares, cujos ascendentes possuem grande importância e influência para os demais parentes. Contudo, encontraram-se duas sepulturas que fogem a essa regra: a sepultura da família Andrade Dias (acima), cuja filha precedeu a mãe, por isso se encontra no topo da lápide e a da família Bemerguy:
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Raimunda Nonata Bemerguy09-08-1923 +14-10-2008Aqui jaz os restos mortais do ex-combatenteE.E. D. Carleto Bemerguy22-2-21 +11-4-76Saudade de sua esposa, filhos, tias, irmãos, sobrinhos, cunhados e amigos
Embora no caso da família Bemerguy haja uma possível explicação para esse fato. Ocorre que a sepultura possui não uma, mas duas lápides, cada uma relacionada aos entes enterrados. Logo, pode-se formular a hipótese de que Carleto ficou por último devido ao pequeno espaço que a sepultura comporta. Nesse caso, Raimunda Bemerguy ficou em destaque apenas por um descuido no posicionamento das lápides. Isso pode ser visto na foto a seguir:
Figura 04 – Túmulo de Raimunda Nonata no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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4.2. A RESISTÊNCIA AO ABANDONO DO QUE SE FOI EM VIDA: CARGOS, TÍTULOS E PROFISSÕES
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Existe um preceito cristão que diz que da vida nada se leva, o que significa dizer que os bens materiais, como dinheiro, jóias, imóveis etc. ficam a serviço dos herdeiros legitimamente declarados em testamento, sobrando para o falecido apenas a última morada, além das orações dos amigos e as boas ações que porventura tenha feito em sua curta passagem pela Terra. Ou pelo menos deveria ser assim, porque em realidade não é o que acontece. O que se vê nesse e nos demais cemitérios de Belém é um verdadeiro mostruário de cargos, títulos e profissões dos falecidos, o que caracteriza uma ânsia de preservar todo o prestígio que se conquistou em vida, evitando que tudo isso se apague com o advento da morte e seja tomado como algo sem importância, esquecido pelo tempo.
É o que ocorre, por exemplo, com a já mencionada família Távora Buarque: Desembargador Manuel Buarque + 1943Amália Távora Buarque + 1968Myrian Távora Buarque + 1985Aurélio Távora Buarque + 1993Que viveram na comunhão de amor o mistério da fé aguardam na alegria de deus a esperança da ressurreição.
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Nesse caso, o nome do patriarca aparece, na lápide, precedido pela profissão que exercera em vida: desembargador. Isso não quer dizer que os demais falecidos não tenham exercido algum tipo de profissão. Talvez tenha se optado por discriminar apenas a ocupação do patriarca como forma de destacá-lo ainda mais dos outros, já que ele já se encontra no topo, por isso, mais facilmente (e por que não dizer, o único) visualizado pelos passantes. Ou então porque as profissões dos demais falecidos não tenham se equiparado ao status do cargo do patriarca e por isso, desdenhadas no momento de se produzir o discurso da lápide da família.
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Há uma verdadeira variedade de profissões estampadas no cemitério Santa Izabel. Médicos, professores, juízes, engenheiros, militares “marcam um espaço ideológico”, hegemônico, onde se evidencia a face do lado privilegiado do cemitério (aquele que comporta as alamedas São Judas Tadeu e Santa Rita, ou seja, somente a entrada, já que todo o resto do cemitério é extremamente perigoso, devido a assaltos constantes). Em toda a pesquisa não se verificou outras profissões que não aquelas que possuem um certo status – ou que possuiu em uma outra época, como é o caso da categoria dos professores.
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Uma outra lápide relacionada a profissões é a da família Macêdo Alves, que possui em seu jazigo um ente que não pertence à família, o engenheiro Clemir Monteiro:
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Jazigo da família Macedo AlvesAlzira de Azevedo Macêdo29-07-1948Cândido Dário de Macedo11-06-1955Leopoldo Eduardo de Lima Alves27-03-1909 + 05-07-1978Osmarina Macêdo Alves20-03-1908 + 21-07-1987Saudades de seus filhos, genros, noras, netos e bisnetosEngº Clemir de N. Monteiro03-09-1935 + 06-02-1995Saudades de sua esposa, filhas, genros e netosKarina Alves de Andrade31-05-80 + 19-01-07 Por fontes confiáveis acredita-se que a presença de Clemir na sepultura da família daquela que foi a sua esposa seja somente em virtude de possuir uma profissão que põe em destaque o jazigo da família, já que o engenheiro era separado há muitos anos de sua esposa. Essa hipótese toma corpo quando se observa que os demais membros da família não são precedidos da profissão. Diferente da família Távora Buarque, em que a profissão dos demais falecidos não foi discriminada para não competir com a importância do patriarca, no jazigo da família Macedo Alves é como se fosse uma obrigação pôr a profissão de entes estranhos àquela sepultura como uma maneira de explicar o porquê de sua presença ali. Percebe-se claramente a intenção não de promover o engenheiro ali sepultado, mas sim o nome da família, que possui alguém (não necessariamente um ente) que exerceu em vida uma profissão valorizada na sociedade. Mais interessante ainda é analisar a sepultura da família Andrade Dias (já analisada anteriormente), que possui dois membros familiares enterrados, provavelmente mãe e filha:
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Jazigo da família Andrade DiasDra. Cíntia do Socorro Andrade Dias(Neuro Cirurgiã) 9-05-1975 + 17-03-2005Saudades eternas de seus pais, irmãos, avós e tiosMaria Stela Bentes Dias(Sinhá) 24-1-1917 + 16-11-2005
Figura 05 – Jazigo da família Andrade Dias no Cemitério Sta. Isabel, Belém, Pará
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Nesta, além de vir o “Dra.” de Cíntia Socorro, ainda traz mais abaixo a discriminação de sua especialização médica: neurocirurgiã. Na imagem acima percebe-se a foto de Cíntia, ainda em vestes de formatura, o que pode significar que tenha morrido antes de ter concluído a especialização, caso contrário, estaria em vestes de médico. Essa hipótese se confirmou a partir de uma consulta feita à internet em que seu trabalho de conclusão de curso data de 1998, sete anos antes de seu prematuro falecimento. Diferentemente de Cíntia, Maria Stela Bentes não possui nenhuma titulação ou profissão discriminada na lápide, contudo, abaixo de seu nome, da mesma forma que no de Cíntia, há um parêntese, contendo algo relacionado a sua pessoa. No caso, é a palavra “sinhá”. A julgar pela data de nascimento, Maria pertenceu à época das grandes famílias, na qual os membros considerados importantes eram chamados pela alcunha de sinhá e sinhô. A falta de profissão em seu nome se deve ao fato de que naquela época não era permitido às mulheres estudar ou trabalhar, cabendo a tarefa de subsistência ao homem, dito “chefe” da família. Contudo, apesar de épocas e valores diferentes, tanto Cintia quanto Maria são tidas como pessoas importantes, de classe, e por isso cuidadosamente homenageadas no jazigo.
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No cemitério Santa Izabel, há uma outra pessoa que também possui a profissão estampada no epitáfio. Trata-se de Camillo Porto de Oliveira, cuja profissão (médico) é exposta em uma pequena placa ao lado de sua sepultura. A foto que dele aparece mostra um senhor, já de certa idade, em roupas mais formais, relacionadas à sua área acadêmica, o que evidencia que a hipótese acerca de Cíntia parece ser acertada: não se usa vestes de formatura quando já se galgou alguns anos na profissão. Abaixo a foto da inscrição de Camillo:
Figura 06 – Inscrição tumular de Camillo Porto de Oliveira no cemitério Sta. Isabel, Belém, Pará
Um outro médico também foi encontrado, coincidentemente próximo à Cíntia Dias e a Camillo Oliveira. Trata-se de Homero Alves Dias, que faleceu em 1928, sem concluir o seu doutorado. Da mesma forma que a neurocirurgiã Cíntia, Homero também é mostrado em vestes de formatura, como expõe a foto a seguir:
Figura 07 – Túmulo de Homero Alves Dias no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará. Além de também possuir seu título estampado na lápide: Figura 08 – Inscrição no túmulo de Homero Dias no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
Como se pode ver, o ser humano ainda não se encontra preparado para abdicar de tudo aquilo que conquistou em vida e no qual deposita imenso valor, até mesmo (ou mais ainda) com o advento da morte.
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4.3 O CEMITÉRIO
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COMO DISSEMINADOR DAS DIFERENÇAS SOCIAIS: O CASO DE DIOCLÉCIO CORRÊA, MARIA SALVINA E IZA
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O visitante que entra no cemitério Santa Izabel logo tem sua atenção capturada por um imenso jazigo. Situado na Alameda São Judas Tadeu, Dioclécio Corrêa chama a atenção por dois fatos: pela imensidão desnecessária de sua sepultura (já que ela é individual) e por não possuir nenhuma identificação além do próprio nome. Trata-se de um caso raro de anonimato opcional, já que não está relacionado a uma classe social mais inferior. No caso de Dioclécio pode-se aventar a hipótese de que sua popularidade era tão grande que não se achou necessário inserir nenhuma informação além de seu nome. Pelo menos é o que a grandeza da sepultura mostra:
Figura 09 – Inscrição no túmulo de Dioclécio Côrrea no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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Em uma outra área do Santa Izabel encontrou-se uma sepultura em situação parecida a de Dioclécio Corrêa, embora pertença a uma classe social adversa. Trata-se de Iza, que à maneira de Dioclécio, também não possui outra informação além de seu nome. Contudo, no caso de Iza, acredita-se que o anonimato seja devido à sua classe social desprivilegiada, já que a estrutura física da sepultura não a deixa equiparar-se à situação de Dioclécio, como mostra a foto. Figura 10 – Túmulo de Iza no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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Cabe acrescentar que o “local tumular” da sepultura de Iza é coberto por capim, em vez de mármore e granito, ou mesmo de flores, como muito se utiliza nas demais sepulturas, além do que, a área em que se localiza esta sepultura seja considerada perigosa e propícia a assaltos, como alertam os zeladores do cemitério a todos os visitantes. Outro aspecto que chamou a atenção foi o fato de próximo à sepultura de Iza encontrarem-se os chamados gavetões – sepulturas localizadas umas ao lado das outras, formando uma espécie de estante. Em um destes gavetões, encontra-se uma sepultura de aspecto descuidado, aparentando total abandono. Talvez não chamasse tanto a atenção do visitante que se arrisca a adentrar área tão perigosa do cemitério (dado o seu isolamento e a violência que encontra “terreno fértil” nessa localidade) se a inscrição não fosse feita em cima do cimento, mais provavelmente com um graveto, como mostra a imagem a seguir:
Figura 11 – Inscrição no túmulo de Maria Salvina Soares Gomes no Cemitério Sta, Izabel, Belém, Pará.
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O que aproxima a sepultura de Maria Salvina, próxima à de Iza, em termos de “espaço social” é o fato de que ambas, além de serem localizadas em uma área denominada perigosa (os fundos do cemitério), ainda reúnem em sua própria estrutura elementos que as classificam como sendo ambas de uma condição social inferior à de Dioclécio Correa, por exemplo.
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Afinal, o “mundo dos mortos” se parece muito com o “mundo dos vivos”, provavelmente porque fora formado, construído e estabelecido pelos vivos. Em questão de identificação da estrutura estética, dos envoltórios do túmulo, das inscrições dos epitáfios, com a estrutura de poder reconhecida no meio capitalista ocidental, as “casas dos mortos pobres” bem se parecem com os barracos das favelas paraenses; assim como as “casas dos mortos ricos” equiparam-se aos casarões dos condomínios fechados ou às construções das Instituições Administrativas da cidade.
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O que os parentes vivos fazem em relação aos seus mortos nada mais é, portanto, do que associá-lo a um espaço e a um status privilegiado economicamente, socialmente, politicamente, dependendo de cada caso. Associando o falecido, com nome e sobrenome explícitos na lápide, ao status desejado, também realizam a inter-relação de si próprios com o status a ele atribuído.
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Coroar o morto significa, dadas as exemplificações coletadas, coroar os vivos, a família, portanto, não é bem o culto ao morto que é realizado, em uma tentativa de vivificá-lo, como se ainda fosse viver naquele “mundo de granito preto”, caro e sofisticado.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Este trabalho estudou os aspectos relacionados às lapides do cemitério Santa Izabel. Localizado na Avenida José Bonifácio, no bairro do Guamá, o Santa Izabel é o terceiro cemitério mais antigo de Belém. Sua fundação data de 1890, o que o faz sucessor do cemitério de Nossa Senhora da Soledade (1850) e o da Campina (1756). O cemitério Santa Izabel também é muito conhecido por abrigar dezenas de santos populares, dentre eles, Severa Romana (o mártir da fidelidade), o médico Camilo Salgado e Josephina Conte, mais conhecida como “a moça do táxi”.
Neste cemitério realizou-se primeiramente uma pesquisa exploratória, com anotações das inscrições relacionadas à idade, sexo, cargos, profissões e títulos. O objetivo era verificar se havia discursos diferenciados para cada categoria, o que se comprovou em parte. Com relação à idade, comprovou-se a idéia da característica da afetividade, sobretudo com o uso de diminutivos para expressar a idéia de carinho e ao mesmo tempo fazer alusão à pouca idade do ente falecido. Contudo, em relação ao sexo, não se verificou diferenças, ou seja, os discursos são praticamente os mesmos para falecidos homens e mulheres.
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Com o abandono das categorias de afetividade e de sexo, a pesquisa foi englobando outras categorias, como nomes de família e a ordem de colocação das datas de falecimento em jazigos. Ao lado dessas novas linhas de investigação, a categoria profissional se manteve, constituindo um elemento importante para o desfecho do trabalho, agora relacionado à tradição e a disputas de poder.
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Grande parte deste trabalho se deve à documentação fotográfica, que se constituiu um recurso indispensável para o registro dos discursos, sobretudo no momento da comparação entre as estruturas físicas das sepulturas. Vale ressaltar que as categorias aqui eleitas (sobrenome, ordem das datas de falecimento e profissões) não serão analisadas separadamente – o que constituiria uma abstração – mas sim em conjunto, com uma categoria justificando o uso da outra pelo fato de possuírem semelhantes intenções.
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Este trabalho, também contou com contribuições referentes aos gêneros textuais e a aspectos ideológicos, a fim de que fosse realizado um amplo estudo relacionado aos aspectos gerais da inscrição tumular, além da tradição e da disputa de poder que permeiam esse singular gênero.
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Com relação às categorias de análise (ordem de falecimento, nome e família e profissões), verificou-se que as duas primeiras são utilizadas com o fim de manter a tradição e o nome da família, destacando-se sempre os genitores (a origem da família), geralmente os que falecem primeiro, embora ocorram casos em que o rebento venha a morrer antes de quem lhe deu a vida.
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No caso das sepulturas com discriminação de profissões, cargos ou títulos, verificou-se o desejo de cristalizar naquele ambiente todo o prestígio que se conquistou em vida, algo de que nem o falecido, em tese, nem a sua família, desejam abdicar, o que bem representa o discurso liberalista, individualista, muito “bem casado” com palavras de amor, fé e, principalmente, saudade.
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Esta pesquisa sobre epitáfios revelou, portanto, que os “vivos” marcam o espaço político, econômico e social de “seus mortos” por meio dos discursos explícitos ou implícitos nos textos. Muitas vezes, provavelmente movidos por ações intuitivas, os parentes apresentam o “eco de vozes sociais” que atribuem, por sua vez, valores a determinadas nominalizações e ações utilizadas no momento contínuo, flexível e histórico da língua. É interessante notar, na estética da construção dos túmulos e nos discursos que neles se assentam, como até após a morte ao ser humano é atribuído um valor, ou ainda, um preço. A própria morte faz inflacionar o custo dos homens.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Lenin and Philosophy. London: New Left Books 1971.
_________. For Marx. London: New Left Books, 1969.
BAKHTIN, M.(VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1997a.
_________. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997b.
_________. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Traduçao Michel lahud e yaha frateschi Vieira. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRAIT, B. & MELO, R. de. Enunciado/ enunciado concreto e enunciação. In: _______ BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005, p. 62-77.
EAGLETON, Terry; Ideologia: Uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo/EDUnesp, 1997.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2000. FLORES, V. N.; TEIXEIRA, M. Introdução à lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionamento. In: PAIVA, Angela; MACHADO, Anna; BEZERRA, Maria A.(org) Gêneros textuais e ensino . 4 ed – Rio de Janeiro: Lucena, 2005.
MIOTELLO, V.; NAGAI, E.; COVRE, A. et al. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. São Carlos (SP): Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE, 2004.
MINUCHIN, Salvador. Famílias: Funcionamento & Tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 25
MUNIZ, P. H. O estudo da morte e suas representações socioculturais, simbólicas e espaciais. Varia Scientia, v. 06, n. 12, p. 159-169.
NAGAI, Eduardo Eide. São Carlos: Grupo de estudos do Gênero do discurso – GEGE – 2004.
TRAVAGLIA, Luís Carlos. Gramática e interação: Uma proposta para o ensino da gramática no 1º e 2º graus. São Paulo, Cortez, 1996.

O que tem a noção de gênero para ser tão convocada no ensino brasileiro?

Márcia Maria Magalhães Borges PG/UFG
Orientadora: Kátia Menezes de Sousa

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A noção de gêneros encontra seus contornos traçados desde a antiguidade clássica. Na tradição ocidental, a sua observação sistemática inicia-se em Platão e se firma com Aristóteles, passando por Horácio e Quintiliano, pela Idade Média, o Renascimento e a Modernidade, até os primórdios do século XX. Entretanto, se a noção de gênero estava vinculada à literatura e à retórica, hoje ela tomou novas diretrizes.
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No Brasil, especialmente no campo da lingüística aplicada ao ensino de línguas, a partir de 1995, as teorias de gêneros textual/discursivo têm sido alvo de discussão. Em parte, a mudança de enfoque se deve a dois domínios institucionais em que a noção de gênero tem circulado – o domínio da teorização acadêmico-científica e o domínio da normatização oficial do ensino de língua portuguesa. O primeiro, segundo Gomes-Santos (2004), refere-se ao saber acadêmico produzido no espaço universitário, ou seja, ao conjunto de práticas que ordenam determinados saberes segundo a especificação de aportes teóricos e correntes disciplinares. O segundo relaciona-se ao conjunto de práticas oficiais de regulação do sistema de ensino efetivadas pela instância estatal – especificamente pelo Ministério da Educação e do Desporto do governo federal. De acordo com o autor acima, esses dois dispositivos são considerados lugares de visibilização do conceito de gênero.
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Sendo assim, uma explosão de pesquisas a respeito dessa noção eclodiu sob a inscrição de diferentes correntes teórico-metodológicas, tais como as de tendência dos estudos textuais ou análise da conversação e estudos brasileiros de tendência similar como os de Koch (2000), por exemplo. Esses estudos contemplam a análise do funcionamento de um determinado fenômeno da dimensão textual-discursiva da linguagem em diferentes gêneros.
Outra tendência faz remissão a aportes teóricos inscritos nos estudos anglófonos como: os trabalhos de Swales e o do Modelo Tridimensional de Análise Crítica do Discurso, cujo expoente principal é Fairclough. Além disso, há estudos brasileiros de tendência similar como os trabalhos desenvolvidos por Meurer, Motta-Roth e outros. Também são realizadas pesquisas de tendência centradas nos estudos genebrinos que fundam o conceito de gênero, por um lado, nos estudos do Grupo de Genebra, cujos representantes principais são Bronckart, Scheuwly e Dolz. No Brasil, encontramos pesquisas desta linha no programa de estudos de pós-graduação em lingüística aplicada e estudos da linguagem (LAEL) da PUC-SP (GOMES-SANTOS, 2004).
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Além desses estudos realizados acerca dos gêneros, temos os trabalhos agrupados sob a nomeação estudos enunciativo-discursivos de extração francófona e estudos brasileiros de tendência similar. Essa tendência se diferencia das outras três aqui mencionadas, exatamente, porque essa vertente remete tanto a estudos inscritos na escola francesa de Análise do Discurso, cujos autores representativos podemos citar Pêcheux, Authier-Revuz, Maingueneau, como àqueles ligados à história das idéias e mentalidades e à história nova – com Foucault, Chartier, de Certeau. Há também referência a estudos enunciativos como os de Benveniste, Ducrot. Ainda conforme Gomes-Santos (2004), a diversidade de trabalhos agrupados nesse bloco inclui, dentre outras, quatro preocupações: (1) a problematização do conceito de gênero e sua relação com a noção de tipologia textual; (2) a caracterização de práticas discursivas particulares – slogan político, por exemplo; (3) a análise de conceitos-chave da teoria do discurso em gêneros particulares – subjetividade e interdiscursividade; (4) autoria.
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Essa orientação teórico-metodológica inclui autores brasileiros como Brait, Brandão, Possenti, Geraldi. Do ponto de vista institucional, destacamos os trabalhos desenvolvidos nessa linha pela UFPB, Unicamp, USP, Unesp (sobretudo de Araraquara-SP).
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Há, ainda, outros pertencimentos teórico-metodológicos que consistem em um conjunto diverso de trabalhos que alternam entre uma corrente particular ou se inscrevem em correntes teóricas reconhecidas. Dentre essas correntes, temos Sociolinguística, Pragmática, Psicolinguística, mas essas linhas não têm tomado parte da reflexão sobre gênero tal como ela se configura na conjuntura acadêmico-científica mais recente.
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Diante de todas essas tendências aqui delineadas, ficamos nos perguntando: o que tem essa noção de tão importante que atraiu tanto a atenção do ensino brasileiro, sem contar que houve a migração desse conceito das esferas das ciências da linguagem para as propostas, os programas e parâmetros ou referenciais curriculares para a educação básica em língua e linguagem no mundo?
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Parece que trabalhar com essa noção, não é mais uma questão de opção, mas de obrigação. Pensamos dessa forma, porque se os gêneros não são propostos de forma explícita como objeto de ensino nos referenciais brasileiros para o ensino fundamental - PCN de 1º, 2º ciclos (1997); 3º e 4º ciclos (1998) - e dos referenciais genebrinos para a escola primária e secundária, a divisão apresentada nesses documentos por capacidades, competências ou habilidades, que, de maneira geral, abarcam as atividades como escrever, ler, falar e ouvir, apontam para um trabalho centrado na noção de gênero.
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Sendo assim, não temos medo de afirmar que o texto intitulado “os gêneros do discurso”, Bakhtin (2000), é o mais lido, citado e conhecido. Essa realidade nos faz ficar curiosos para entender como os gêneros discursivos entraram para o Brasil. O que propiciou a sua inserção e propagação. É certo que nenhuma teoria surge do nada, porque existem sempre enunciados já realizados suscitando outros que ainda estão por vir. Então, o que tem de fato a noção de gênero para ser tão convocada no ensino brasileiro, a ponto de suscitar textos e livros que a contemplem? E como essa noção foi requisita e não outra em seu lugar? Parece mesmo que o conceito de gênero desestabiliza práticas de ensino que priorizam uma abordagem tradicional.
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Referências Bibliográficas
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BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. IN: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. (Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa – Primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
GOMES-SANTOS, S. A questão do gênero no Brasil: Teorização acadêmico- científica e normatização oficial. Tese de doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP, 2004

IDEOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS E BAKHTIN

José Kuiava
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O título do presente tema, proposto pelos coordenadores e ideólogos do Circulo – Rodas de Conversa Bakhtiniana 2009, revela a “exatidão” do seu justo significado: Ideologias Contemporâneas. No plural, as ideologias conferem o verdadeiro significado em seu sentido social histórico.
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De qualquer modo, para esboçar os apontamentos com o propósito de iniciar as conversas, é preciso dizer de onde parto no exame das categorias e de quais conceitos de ideologias estou falando. Para tanto, faz-se necessário explicitar um pressuposto, uma espécie de significado comum e permanente à todas as ideologias. Assim, as ideologias (e seus conceitos e significados) são produzidas pelos fatos sociais, ou seja, são históricas, resultantes de realidades determinadas. E por serem históricas, os seus conceitos e significados não se eternizam numa categoria única, abstrata e a-histórica: a ideologia no singular. Precisamos falar na multiplicidade de ideologias e não na univocidade. Não há como considerar a ideologia em seu sentido puro, unívoco, embora isso já tenha sido feito, por interesses ideológicos, é óbvio. Porém, mesmo tomada em seu conceito genérico demonstrando que ideologia seria a maneira de esconder o processo da história, um eterno, permanente e novo modo de ocultamento da realidade social em seu novo contexto. Seria um incômodo jogo de legitimar as condições sociais das classes dominantes/dirigentes pela exploração e dominação das classes subalternas, parecendo ser verdadeiro e justo tal modo de exploração e dominação, convalidado pelas próprias classes exploradas. Este parece ser o papel e a intencionalidade permanentes das ideologias historicamente produzidas. Por este significado, ideologia (no singular) seria o ocultamento da realidade social. Assim, em sua essência, o conceito da ideologia não mudaria, mudariam apenas os seus matizes.
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Entretanto, examinadas as ideologias em seus devidos contextos sociais, elas se manifestam críticas historicamente. Inicialmente, vou rememorar sucintamente três pensadores e seus conceitos/significados de ideologias: Marx, Gramsci e Bakhtin. No final, identifico as ideologias hegemônicas da atualidade.
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Ideologia em Marx – Quando Marx faz a crítica ao significado do termo Napoleônico, diz: “o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real” (CHAUI, 1983,p.25). Em seguida, Marx assinala um pressuposto fundamental; não é possível separar a produção das idéias e as condições sociais e históricas nas quais são produzidas (idem, p.32). Há um pressuposto anterior a produção da ideologia: a história como um conhecimento dialético e materialista da realidade social. Há, portanto, uma relação entrelaçada entre o conceito de história e ideologia. Esta, a ideologia é um dos aspectos da história. Para a exata compreensão de ideologia em Marx, é necessário evocar os significados de contradição e oposição. A contradição é a negação interna. A oposição pressupõe a existência de dois termos. Exemplo, os termos “Senhor” e “escravo” são opostos. Dois termos de significados opostos. No caso de eu me referir ao termo “Senhor” (homem livre) ele mesmo, por si mesmo nega o seu contrário “escravo” (homem sem liberdade). Não permite o seu contrário em si mesmo. Bem, esta diferenciação foi fundamental para Marx formular o conceito de ideologia, a partir do pressuposto histórico: … “as contradições mão existem como fatos dados no mundo, mas são produzidas. A produção e superação das contradições é o movimento da história. A produção e a superação das contradições revela que o real se realiza como luta” (CHAUI, 1983, p.38). Daí, para Marx, a ideologia e a ideologia burguesa em geral, são produzidas em suas formas e modalidades em cada época e contexto. Acima de tudo e sempre, a ideologia burguesa é a forma, o mecanismo de alienação das classes trabalhadoras. Três termos fortes e determinantes integram o conceito de ideologia: alienação (entregar a própria vontade ao burguês), reificação (tornar o ser humano em coisa) e fetichismo (atribuir poder mágico, camuflado a determinados termos). Daí que, produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar, trabalhar, são termos embevecidos de significados próprios que se impõem aos seres humanos, independentes da vontade dos homens. Pela clareza dos conceitos vou recorrer novamente às palavras de Marilena Chauí:
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… A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados.
… quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em benefícios de uns poucos. Estamos diante da idéia de trabalho e não diante da realidade histórico-social do trabalho (p. 86,88).
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É possível perceber o conceito de ideologia nos escritos em geral de Marx, sobretudo em A Ideologia Alemã. Um livro muito didático para este fim é O que é Ideologia, de Marilena Chauí.
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Ideologia em Gramsci – Gramsci não modificou nem negou a concepção de ideologia de Marx. Pelo contrário, ampliou o conceito, agregou ao núcleo conceitual básico de Marx novos significados de acordo com as novas condições objetivas da história. É como se Gramsci tivesse falado: é isso aí, camarada Marx. Ainda agora, 80 anos depois o que você falou e escreveu continua válido. O capitalismo de agora continua capitalismo, só que um pouco mais sacana. Agora que a industrialização pegou força e velocidade ninguém mais segura a humanidade. O capitalismo já não é mais o mesmo. É aquela velha e pré-socrática história de filósofo, o inventor da dialética. Heráclito de Efeso, após ter tomado banho no rio, já na barranca, ao olhar as águas sujas, que havia deixado, indo rio abaixo, sacou: “um homem não pode tomar banho duas vezes no mesmo rio. Porque da segunda vez não será o mesmo homem, nem estará nas mesmas águas (Heráclito, apud. Konder, 1983, p.8). Gramsci não era Marx, nem Heráclito, e nem o capitalismo era o mesmo dos tempos de Marx.
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Gramsci conectou o conceito de ideologia ao conceito ampliado de Estado, em relação ao conceito restrito de Estado de Marx. Marx falou e escreveu: “o estado é um comitê executivo da burguesia para proteger a própria burguesia e o capital. Gramsci percebeu que o estado não era mais essa ordem monolítica e nem o monopólio do poder da burguesia (classe dominante) e do bloco no poder (classe dirigente). Aí formulou o conceito de estado, segundo o qual há dois componentes: a sociedade política (as forças coercitivas repressoras, os aparelhos de estado) e a sociedade civil (a estrutura e a superstrutura: bloco histórico). Daqui Gramsci extraiu o germe do conceito de ideologia: “...do conceito de ideologia dos pensadores franceses do século XVIII, ideologia como a “ciência das idéias”, como “análise sobre a origem das idéias”. Gramsci diz que o significado do conceito de ideologia deve ser examinado historicamente. Só assim é possível atingir a superação dos conceitos a- históricos de ideologia. O conceito de ideologia deve ser entrelaçado à filosofia da práxis.
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Para caracterizar a concepção de ideologia em Gramsci, nada melhor do que ele, Gramsci, falando:
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… ideologia… o significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas manifestações de vida individuais e coletivas.
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… O sentido pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstruído: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam as estruturas, mas sim vice-versa;, mas sim vice-versa; 2) afirma-se que uma determinada solução política é “ideológica”, isto é, insuficiente para modificar a estrutura, mesmo que acredite poder modificá-la; afirma-se que é inútil, estúpida, etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia é “pura” aparência, inútil, estúpida, etc.
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É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, “desejadas”. Na medida em que são historicamente necessárias, elas “organizam” as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. Na medida em que são “arbitrárias”, elas não criam senão “movimentos” individuais, polêmicos, etc. (nem mesmo estas são completamente inúteis, já que funcionam como o erro que se contrapõe a verdade e a afirma).
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Recordar a frequente afirmação de Marx sobre a “solidez das crenças populares”, como elemento necessário de uma determinada situação. Ele diz mais ou menos isto: “quando esta maneira, de conceber tiver a força das crenças populares”, etc. Utra afirmação de Marx é a de que uma persuasão popular tem, na maioria dos casos, a mesma energia de uma força material (ou algo semelhante), o que é muito significativo. A análise destas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que esta distinção entre forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais (GRAMSCI, 1981, p.16, 62-63).
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É interessante lembrar que Gramsci relaciona permanentemente a produção de ideologia aos intelectuais. Sem intelectuais não há produção de ideologia. Relaciona também ideologia e hegemonia e contrapõe a estas os novos conceitos de contra-hegemonia e contra-ideologia. Gramsci percebe com muita propriedade o modo como a sociedade civil se articula em sua organização interna, por meio da qual a classe dirigente difunde sua ideologia. Chama a esta organização de “estrutura ideológica” da classe dirigente. E quais organizações tem a função de difundir ( inculcar) a ideologia? Segundo Gramsci, as organizações: a igreja, a escola e a imprensa/edição. A Igreja detinha, até certo momento da história, o quase monopólio da sociedade civil e com ela o domínio da ideologia religiosa. A organização escolar, como aparelho do Estado (também a de organismos privados) como aparelho do conjunto cultural da sociedade civil. É ela, a escola (e a universidade) a que melhor produz e preserva a concepção de mundo de seu tempo. A imprensa/edição é a terceira instituição máxima da sociedade civil. Nos tempos de Gramsci, a imprensa era ainda nascente, mas com grande valor e poder, como a mais dinâmica da sociedade civil. Naqueles novos tempos, Gramsci constata que “as editoras tem um programa implícito ou explícito e se vinculam a uma corrente determinada” (esta última síntese e citação está em Hugues Portelli, Gramsci e o Bloco Histórico).
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Ideologia de Bakhtin - Bem, acho melhor deixar esta conversa para os entendidos em Bakhtin. Principalmente, àqueles que entendem sobre ideologia em Bakhtin.
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As Ideologias Contemporâneas – Por uma questão prática (embora não seja a melhor solução) podemos denominar genericamente de ideologia neoliberal do final do séc.XX e inícios do séc. XXI. Para sua análise, permanecem válidos os conceitos de ideologia de Marx, Gramsci e Bakhtin. Porém, há novos matizes. Particularmente, novos modos, novas maneiras, novos meios de difusão e de persuasão. Menos coercitivos, menos inculcadores. Poderíamos dizer que há um novo clichê pedagógico de alienação: a pedagogia da persuasão pelo encantamento, pela sedução – a informação eletrônica.
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Na visão de Neil Postman, três novos deuses dominam a sociedade, aos quais o sistema educacional serve: a tecnocracia, o utilitarismo e o consumismo. É como se nos proclamassem: estes três deuses nos tornam humanos, quer dizer, felizes. Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, em A Nova Bíblia de Tio Sam, abrem, com muita graça e fina ironia, um texto, também publicado no Fórum Social Mundial. Vamos ao texto.
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Os efeitos da nova vulgata são tão poderosos e perniciosos que ela é veiculadanão apenas pelos partidários do neoliberalismo, mas por produtores culturais emilitantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas.
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Em todos os países avançados, patrões, altos funcionários internacionais,intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão, se puseramde acordo em falar uma estranha novilíngua cujo vocabulário, aparentementesem origem, está em todas as bocas: "globalização", "flexibilidade";"governabilidade" e "empregabilidade"; "underclass"e "exclusão" ; "novaeconomia" e "tolerância zero"; "comunitarismo (2)", "multiculturalismo" e seusprimos "pós-modernos", "etnicidade", "minoridade", "identidade","fragmentação" etc.
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A difusão dessa nova vulgata planetária -- da qual estão notavelmenteausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e tantosvocábulos decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou depresumida impertinência -- é produto de um imperialismo apropriadamentesimbólico: seus efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele éveiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal -- que, sob acapa da "modernização", entende reconstruir o mundo fazendo tábula rasa dasconquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais,descritas, a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à novaordem nascente, -- porém também por produtores culturais (pesquisadores,escritores, artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda seconsideram progressistas.
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Bem, acho que já é assunto para muita conversa.

O pensamento bakhtiniano na atualidade ou a atualidade do pensamento bakhtiniano

José Kuiava

Eis a (não) questão. A beleza do tema se revela na possibilidade de pensar os dois sentidos e significados da questão. Não se trata de uma ambivalência do título – o título não nega a si mesmo invertido, ou contrário – pois os dois sentidos se expressam em todos os contextos, ou seja, no “pequeno tempo - a atualidade, o passado imediato e o futuro possível”e no “Grande tempo – o diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre” (BAKHTIN,2006, p.409). Isso é Bakhtin. É profundamente bakhtiniano. Equivale a pergunta: quanto Bakhtin é lido e por quem, no mundo e no Brasil, e quais o sentido e o significado do pensamento bakhtiniano para os seres humanos nos dias atuais e nos dias de amanhã?

José Luiz Fiorin faz duas revelações/advertências nos dois primeiros parágrafos do seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin. A primeira: “Não é fácil ler a obra de Bakhtin”. A segunda: “Bakhtin é um autor que está na moda”(FIORIN,2006,p.5). Não há dúvidas sobre a veracidade da primeira revelação: não é fácil ler Bakhtin. Mas é sedutor. É o prazer vertendo da dor, da dificuldade, do não revelado, do texto não “fechado”, do ambivalente, do eternamente inacabado. Os escritos de Bakhtin, além de não obedecer formas didáticas na exposição (forma textual), estão permeados de uma espécie de anúncio de tópicos, como se fossem títulos e subtítulos de assuntos, sem verbo explícito, sem afirmação, sem os complementos de uma frase acabada. São frases inacabadas, sem conceito explícito às claras. São palavras na forma de coisas (objetos) não personalizados, pois cabe ao leitor personalizá-los. Provavelmente, Bakhtin estava bem intencionado: eu forneço a coisa inacabada (o texto “não fechado”, não pronto, não acabado) e o leitor que vá escrever do jeito e tipo que quiser. Isso me faz lembrar Ítalo Calvino:

[…] àquela época minha ilusão era de que os mundos escrito e não-escrito se esclareceriam mutuamente; as experiências de vida e as experiências literárias seriam complementares, e se progredisse num campo, progrediria no outro. Hoje, posso afirmar que sei muito mais sobre mundo escrito do que antes: nos livros, a experiência ainda é possível, mas seu domínio termina na margem branca da página (CALVINO, 2005, p.141).

Assim, cabe ao leitor escrever nos espaços entre linhas e nas margens brancas das páginas. O leitor, ao ler, continua escrevendo o “texto” no novo “contexto” e nos vários “contextos”.

Já não se pode dizer o mesmo da segunda questão: está na moda ler Bakhtin. Primeiro, seria necessário demonstrar quem já leu e quem continua lendo as obras do pensador no Brasil. Com certeza, isso não é assunto para este texto. Segundo, talvez valesse a pena recorrer ao método de Antônio Gramsci ao abordar a filosofia: “Deve-se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos” (GRAMSCI, 1981, p.11).

Para Gramsci “todos os homens são filósofos” (embora cada um a sua maneira!) e era necessário demonstrar isso. Era necessário descer a filosofia das alturas para o chão. Ou melhor, recolher e reconhecer a filosofia que se vivencia e manifesta na própria linguagem (um conjunto de noções e conceitos vitais determinados e não de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo); no senso comum e no bom senso (na sabedoria popular); na religião popular, nas crenças, superstições, opiniões (e tudo o que se manifesta no folclore).

Assim, a filosofia não é um campo restrito e reservado apenas aos filósofos profissionais – uma categoria de intelectuais únicos capazes de formular uma concepção unitária do mundo e criticamente coerente, atingida pelo pensamento mundial mais elevado e desenvolvido – mas importa difundir (socializar) o pensamento mais elaborado às massas populares - “ida até ao povo”. Pelo caminho de volta (détour metodológico) importa elevar a consciência das massas “a uma forma superior de cultura e de concepção de mundo”. Gramsci se vale da analogia do alto clero e baixo clero para demonstrar esse processo.

Este retorno a Gramsci é útil para formular a seguinte pergunta: a leitura de Bakhtin está na moda de qual categoria de intelectuais? Os intelectuais da esfera mais elevada, do nível mais exigente, os intelectuais que atingem a “profundidade da penetração” na compreensão dos significados do pensamento de Bakhtin? A ambivalência avoluma-se mais nesta relação “exatidão/imprecisão”(vulgarização). Ou, é possível popularizar sem vulgarizar? Se assim for, estabelece-se a ambivalência da elitização (abrangência restrita) e a popularização (abrangência universalizada). É possível popularizar um pensador e o seu pensamento sem vulgarizá-los? A popularização implica necessariamente na vulgarização? Quem tem acesso à moda bakhtiniana? Quem pratica a leitura, quem atinge a leitura, a compreensão e a interpretação não “coisificadas”, não “fechadas” dos escritos de Bakhtin? Quem leva jeito bakhtiniano de ler, de pensar, de falar, de discutir, de ouvir, de escrever? O que seria exatamente “vulgarizar” o pensamento, as idéias, os conceitos bakhtinianos? Seria justo não popularizar (vulgarizar) as idéias de Bakhtin? Ele mesmo se opõe ao “fechamento no texto”, ou seja, a uma compreensão e interpretação únicas.

A popularização de Gramsci (e de seu pensamento) se deu, ou melhor, se iniciou por ele mesmo : nos “Conselhos de Fábrica”, Conselhos/Sindicatos, Conselhos/Partido Político e de modo singular na Escola para Prisioneiros no Cárcere (Gramsci ensinou lógica, filosofia e história para os companheiros do cárcere). O princípio educativo em Gramsci está melhor formulado didaticamente, quando ele propõe a escola única, unitária, ativa, criativa e politécnica – de cultura geral humanística do novo tipo e de formação profissional de bases científicas, pensada para as camadas populares. Era moda ler Gramsci nas décadas de 70 e 80 no Brasil. A popularização de Gramsci se faz até hoje pela grande influência sobre todos os que lutam por uma democracia substantiva e por uma renovação de uma nova cultura e uma nova sociedade. Volta-se à pergunta: como ocorre a popularização do pensamento de Bakhtin? Como ler, compreender, interpretar o pensamento bakhtiniano? Como levar Bakhtin aos sindicatos, movimentos sociais , partidos políticos, às escolas, aos movimento culturais e artísticos populares? Como descer Bakhtin dos “nichos” das universidades (dos cursos de letras?) e invadir as escolas, penetrar nos ambientes e cenários educacionais?

Neste momento, no Paraná, o Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, está promovendo estudos, discussões e seminários em todo Estado para 2.600 professores, sobre o tema: Trabalho, Cultura e Escola em Gramsci. Estou participando em três dos cinco seminários, com o enfoque: O princípio educativo em Gramsci na atualidade. Perguntei para mim mesmo: porque o PDE não incluiu o princípio educativo em Bakhtin na Educação do Paraná? Logo me surgiram outras perguntas: quais seriam os princípios educativos em Bakhtin? E os princípios pedagógicos? E como seria a escola em Bakhtin?

Bem, este é um dos três eixos do tema central do Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana 2009. Com certeza, muito será escrito e conversado sobre este tema, para além das belas e originais conversas “abakhatinianas”(!).
Por fim, para rememorar e provocar, quando leio Bakhtin me vem à memória Marx, Gramsci, Ítalo Calvino, Sartre, Fellini entre outros pensadores. Percebo um entrelaçamento dos conceitos, sentidos, significados das categorias de análise entre estes pensadores/diretores (Fellini, particularmente em E La Nave Va). Seria uma legítima sinfonia polifônica das vozes destes pensadores ou uma prova da vulgarização e imprecisão intelectuais).