Os textos foram publicados por ordem de chegada.
Para ler os textos sobre temas específicos, clique no tema, no menu ao lado.
Para ler os textos de autores específicos, clique no nome do autor, no menu ao lado, mais abaixo.
Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

A subversão simbólica em Amarelo Manga: a imagem carnavalizante de uma cor dos esquecidos

Mara Rodrigues Tavares (UFPA)
-
“Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tamboretes, dos cabos das pexeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, do charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes aprodecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente.” crônica de Renato Carneiro Campos, Tempo Amarelo.
=
Amarelo Manga constitui-se em um texto fílmico que apresenta signos sociais sob uma perspectiva carnavalizante, com a ênfase na versão mórbida que liga vida e morte; na bissexualidade e na prática de travestismo como fuga dos papéis sexuais rígidos e socialmente impostos. Apresenta a celebração do grotesco, das partes inferiores e dos “excessivos” como recusa de qualquer visão puritana e como agressão provocadora da estética clássica e apolínea; apresenta, ainda, a idéia de inversões sociais e a subversão dos valores (Stam, 1992). Toca, assim, uma diversidade de sentidos e sensações sinestésicas que provocam no leitor/espectador um redimensionamento de suas percepções cognitivas e posicionamentos subjetivos, provocando mal-estar. Propõe-se, portanto, neste trabalho, uma análise pautada do diálogo entre o processo enunciativo, próprio dos estudos lingüísticos, discursivos, e o processo cinematográfico. Ambos direcionados à subversão dos símbolos, dos padrões, das convenções estabelecidos no paradigma capitalista.
=
A linguagem é o locus em que a ideologia se manifesta concretamente, por isso ela é o palco dos conflitos, dos confrontos ideológicos; enquanto discurso, ela constitui um universo de signos que vai além de um simples instrumento de comunicação ou suporte de pensamento (Brandão, 1997, p.2). A partir dessas afirmações conclui-se que a linguagem tem que ser estudada dentro do contexto social, pois seus processos constitutivos são histórico-ideológicos.
=
As idéias de Bahktin sobre a linguagem, concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social, perpassam pelo viés das relações dialógicas, pertencentes ao campo do discurso – a língua enquanto fenômeno integral concreto; dos processos enunciativos, onde o enunciado e as particularidades de sua enunciação estabelecem o processo interativo, isto é, o verbal e o não-verbal, que compõem a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um contexto histórico maior (enunciados, discursos, sujeitos etc.) (Brait, 2005).
=
Nestas relações, a palavra é sempre a palavra do Outro, que inseparável do Eu, permanece refratário a toda categoria que queira eliminar sua alteridade e subjugá-lo à identidade do Eu; construir seu mundo para se construir é uma necessidade existente entre o Eu e o Outro, uma vez que não há uma diferença distintiva, pois isso os colocaria em oposição e transformaria a alteridade em algo relativo, tendo desta forma a alteridade dialética, excludente, e não a dialógica, inclusiva, conforme Miotello esclarece. (2004).
=
Assim, para que o sujeito seja construído é preciso interagir com um outro, com os seus enunciados. E isso é fomentado em todo seu percurso de vida, na mesma medida que, esse sujeito sofre influências, vai também agindo (respondendo) sobre/aos outros. A consciência individual construída é um fato sócio-ideológico. Essa alternância dos sujeitos falantes que tece fronteiras estritas entre os enunciados nas diversas esferas da atividade e da existência humana, conforme as condições de produção, (Bakhtin,1997) é o que vai moldar os discursos.
=
É por isso que a cada processo enunciativo, o sujeito atualiza seu texto, que é irreproduzível e novo na cadeia histórica da comunicação verbal. O texto será o reflexo subjetivo de um mundo objetivo; a expressão de uma consciência refletora de algo. Esse, quando transformado em objeto cognitivo se torna o reflexo de um reflexo já lançado, cuja compreensão é o reflexo preciso de reflexo, num jogo de espelhos dos sujeitos no mundo (de seus valores, suas crenças, suas noções sobre elementos da vida e da morte), que chega ao objeto refletido. Nesse sentido, pode-se dizer que o texto fílmico circunscreve em sua essência essa idéia de texto que capta valores existentes, apropria-se deles, modifica-os, reestrutura-os, mesmo tendo, com tudo, em sua natureza o não-verbal.
=
Todos os elementos enunciativos, discursivos, dialógicos e ontológicos compõem fios associativos geradores de forças sociais, os quais se presentificam na linguagem, local de embates travados, ou de maneira mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais intima e pessoal. Pois é nela que o conceito político de liberdade é invocado; é ela, o nome unificante desenvolvido para a ação do que é uma dispersa e poderosa formação de forças sociais, forças essas que são sempre concebidas como conflitantes.
=
E foi estudando e percebendo esse fenômeno da linguagem, que Bakhtin tirou do limbo Rabelais, escritor europeu que tratou dos laços profundos que o uniam à cultura popular e a forma de festividades populares, tais como o carnaval.Bakhtin vê Rabelais como uma espécie de rebelde literário, cuja vitalidade inexaurível se deve ao fato de ele nutrir a sua arte, em grande parte, na raiz principal da cultura popular do seu tempo. Rabelais transpõe para a literatura o espírito do carnaval (...). As imagens de Rabelais, para Bahktin, têm uma natureza não oficial indestrutível: “nenhum dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha pode coexistir com elas” (Stam,1992 p 43) .
=
Na Idade Média, o carnaval, conjunto de manifestações da cultura popular, possuía um papel simbólico fundamental na vida das pessoas. Nesse período, elas sentiam-se livres das regras e das restrições convencionais, uma liberdade utópica, mas uma sensação de liberdade. O que era excluído, marginalizado, bizarro, depravado, grotesco e ridicularizado por toda a sociedade tornava-se estandarte no carnaval, uma motivação para o riso festivo, unificador das diversas manifestações carnavalescas e carnavalizantes e um modo de resistência simbólica.
=
Libertos da opressão, do medo do grotesco, do que é anormal e, mais do que isso, libertos dos valores sociais que a ideologia oficial impõe, só o carnaval poderia e pode proporcionar isso, assim pensava Bakhtin; com a quebra de padrão, a carnavalização é a junção de várias vozes, o polifônico, a desconstrução da ordem para uma direção outra, “o mundo às avessas”.
=
A partir do conceito de carnavalização tratado por Bakhtin, propõem-se analisar processos desse conceito no filme Amarelo Manga do diretor pernambucano Cláudio Assis, cujos personagens, símbolos marginais da sociedade brasileira, vivem carnavais diferentes.
=
Assim, imerso na realidade cotidiana, o filme dialoga com a teoria de Bakhtin ao evidenciar a noção de heteroglossia, ou seja, das diversas linguagens sociais que fazem parte do carnaval.Qualquer que seja o impulso utópico expresso pelo carnaval, o carnaval, carnaval real, social, enquanto enunciado historicamente situado, como ele é vivido, numa sociedade contemporânea como a brasileira, é inevitavelmente influenciado pelas hierarquias sociais, pelas assimetrias de poder. Branco e negro, homem e mulher, operário e patrão, heterossexual e homossexual, neste sentido vivem carnavais diferentes. (Stam,1992 p 51).
=
Observa-se, no entanto, que a estratégia carnavalizante, apresentada ao público, funciona com o conjunto dos elementos/recursos cinematográficos. A linguagem cinematográfica, por meio de sua constituição tempo-espacial, pela cor, pela montagem, pelo som, etc é quem evidencia e fala sobre subversão de padrões cristalizados na ordem dominante, se tornando, desta forma, complexa, pois atualmente, ela abarca várias vertentes que passam por sendas ainda obscuras. Segundo Martin, confundir a linguagem cinematográfica com um meio de expressão é expô-la a graves enganos, e ainda, defini-la como “sistema de signos destinados à comunicação” (Martin apud Metz, 2003, p.18) seria restringir a riqueza da qual ela é composta.
=
Para ele, a realidade que aparece na tela jamais é neutra, mas sempre o signo de algo mais, numa certa medida; e, nesse âmbito, pode-se dizer que ao redimensionar o estudo da linguagem, colocando o enunciado no foco e a situação de enunciação como o componente imprescindível para a compreensão e explicação da estrutura semântica, Mikhail M. Bakhtin abre possibilidades para por em proximidade os processos enunciativos dos processos cinematográficos. A diferença mais fundamental entre o cinema e as outras artes é que, em sua representação do mundo, as fronteiras de espaço e de tempo são fluidas – o espaço tem um caráter quase temporal, o tempo, em certa medida, tem caráter espacial.
=
Em conseqüência da descontinuidade do tempo, o desenvolvimento retrospectivo do enredo combina-se com o progressivo em completa liberdade, sem qualquer espécie de vínculo cronológico, por meio das repetidas voltas e reviravoltas na seqüência temporal, o movimento, que constitui a própria essência da experiência cinematográfica, é levada a limites extremos. É, em refluxos, a simultânea proximidade de distância no espaço – a proximidade mútua no tempo e a distância umas das outras no espaço – que forma esse elemento espaço-temporal, essa bidimensionalidade do tempo, que constitui o verdadeiro veículo do cinema e a categoria básica de sua representação no mundo. (Hauser, 1998)
=
No filme Amarelo Manga, as luzes estão postas na vida de seres “inexistentes” das classes acomodadas do país e aponta o dedo para uma ferida aberta e pestilenta. O “submundo” representado pelo açougueiro pscicopata, pelo cozinheiro homossexual ou pela evangélica inconformada com a vida.
=
O embrutecimento do humano é apresentado nos personagens rudes e violentos; delatando a brutalidade de nossas vidas cada vez maior, com problemas que constroem verdadeiras fortalezas de ódio, violência e selvageria. Dilatados, os homens e mulheres de Amarelo Manga, são construídos de forma forte e visceral, mostrando com todas as cores, em todos os ângulos e em todo som o carnaval dos esquecidos.
=
REFERÊNCIAS
=
ASSIS, Cláudio. Amarelo Manga. Brasil: 2003 BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros dos discursos. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (p280-360). BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso.6ºedição.Campinas, SP: editora da UNICAMP, 1997.BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.DISCINI, Norma. Carnavalização. In: Brait, Beth. Outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes,1998MARTIN, Marcel. A linguagem Cinematografia. Trad.: Paulo Neves, São Paulo: Brasiliense, 2003MIOTELLO, Valdemir; NAGAI, Eduardo; COVRE, André et al. Alguns apontamentos sobre a questão do dialogismo à luz de Bakhtin. In: Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. São Carlos (SP): Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE, 2004.STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.

Nenhum comentário: