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COMO LER UM FILME VIA PROCESSOS INTERDISCURSIVOS E CARNAVALIZANTES?

José Sena da S. Filho
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A perspectiva interdiscursiva em Bakhtin
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Apesar de não aparecerem na obra de Bakhtin termos como: interdiscurso, interdiscursivo, interdiscursividade, intertextualidade, intertexto, estudiosos como Júlia Kristeva e José Luiz Fiorin utilizam esses termos como extensões da concepção dialógica da linguagem proposta pelo autor russo.
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Júlia Kristeva é considerada a principal responsável pela divulgação dos estudos de Bakhtin no Ocidente. Em seus estudos desenvolveu uma longa discussão sobre as teorias bakhtinianas presentes nos livros Problemas da poética de Dostoievski e A obra de François Rabelais. Seu objetivo era discutir o texto literário e para isso identificou discurso e texto. De acordo com Fiorin (2006, p.163), Kristeva considera que “o discurso (o texto) é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, um outro discurso (texto)”. Nas suas leituras, Kristeva identifica a noção de intertextualidade por meio da concepção bakhtiniana, em que o diálogo é a única esfera possível para a vida da linguagem, de modo que ela afirma que Bakhtin vê “a escritura como leitura do corpus literário anterior e o texto como absorção a um outro texto” (apud FIORIN, 2006, p. 163). Nesse contexto, conforme Fiorin (2006, p. 165) intertextualidade é “qualquer referência ao Outro, tomado como posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, variantes lingüísticas, lugares comuns, etc.”.
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No seu ensaio, intitulado Polifonia textual e discursiva, Fiorin (2003, p.30) conceitua a intertextualidade como “processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”. Destaca que a intertextualidade apresenta três processos: a citação, a alusão e a estilização. A citação é um processo que “pode confirmar ou alterar o sentido do texto citado”; já na alusão, não se citam palavras, mas “reproduzem-se construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras, sendo que todas mantêm relações hiperonímias com o mesmo hiperônimo ou são figurativizações do mesmo tema”. Quanto à estilização, trata-se da “reprodução do conjunto dos procedimentos do ‘discurso de outrem’, isto é, do estilo de outrem” (FIORIN, 2003, p. 30-31).
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Ao tratar do termo interdiscurso, Fiorin (2006) esclarece que aparece na obra de Bakhtin sob o nome de dialogismo, sendo que não equivale somente ao diálogo com interação face a face. Não há dois tipos de dialogismo, cabe salientar, como consideram alguns autores, o primeiro entre interlocutores e o segundo entre discursos. Por esse motivo “o interlocutor só existe enquanto discurso”, de modo que, há “um embate de dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo se dá entre discursos” (FIORIN, p. 166). Os conceitos de enunciado e discurso ora aparecem na obra de Bakhtin, como equivalentes, ora como diferentes. Por esse motivo, Fiorin (2006, p. 181) conceitua discurso como “uma abstração: posição social considerada fora das relações dialógicas, vista como uma identidade”. Destaca que no processo de comunicação verbal o material utilizado são os enunciados, que são constitutivamente dialógicos. Considera, no entanto, o enunciado como interdiscurso, interior ao intradiscurso (correspondente ao discurso para Bakhtin).
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Fiorin (2003) chama atenção para a distinção da noção de discurso e de texto, já que isso acarretaria a diferenciação entre interdiscursividade e intertextualidade. Esclarece, porém, que nesses fenômenos é possível perceber que em um mesmo segmento, seja ele discursivo ou textual, tem-se a presença de duas vozes. Evidencia que as relações dialógicas entre enunciados e as que se dão entre textos são distintas. Desse modo qualquer relação dialógica, permeada por uma relação de sentido, é interdiscursiva. Já na que é materializada por textos, há a intertextualidade. Salienta, ainda, que intertextualidade implica sempre uma interdiscursividade, mas o contrário não é verdadeiro, por esse motivo quando a relação dialógica não é manifestada no texto, define-se a interdiscursividade em detrimento da intertextualidade. Outro ponto importante é que ao se referir a um texto o enunciador também se refere ao discurso que ele expressa.
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Fiorin (2003, p.30) conceitua a interdiscursividade como processo “em que se incorporam percursos temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ ou figuras de um discurso em outro”. Destaca que existem dois processos interdiscursivos – a citação e a alusão. Quanto à citação, ocorre quando em um dado discurso repetem-se idéias, em outras palavras, repetem-se percursos temáticos e/ou figurativos de outros. Já a alusão ocorre quando temas e/ ou figuras de um dado discurso se incorporam e passam a servir de contexto para compreensão do que foi incorporado.
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A concepção postulada por Bakhtin em que o ser humano não pode ser concebido fora das suas relações com o outro é a base da sua teoria dialógica da linguagem, sendo que os indivíduos somente podem ter acesso à realidade por meio da mediação da linguagem. Entendê-la como mediadora das relações humanas é, antes de tudo, perceber que o homem é um ser social, cuja formação se dá na relação com os outros.
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Nesse contexto é que a linguagem cinematográfica é pensada. Acredita-se que a linguagem não verbal no cinema está carregada da expressividade enunciativa, onde discursos citados e aludidos ganham uma nova roupagem e são reconfigurados adequando-se a natureza da materialidade do textofílmico e, ao tipo de relação de sentido que estabelece com os discursos e textos aos quais se refere, assim como, na sua significação intratexto.
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Apontamentos sobre o processo de carnavalização
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Podemos compreender que a esfera de ação do enunciado via interdiscurso perpassar o social presente nas ações da vida cotidiana, assim como, nas esferas da arte, da literatura e do cinema. É dentro dessa concepção que, em A cultura popular no Renascimento e na Idade Média: o contexto de François Rabelais, Bakhtin vai desenvolver sua tese sobre o embate ideológico estabelecido entre os sujeitos, devido aos lugares sociais que ocupam, e as aspirações desses, que tecem a teia da vida cotidiana, sempre dosada pelos padrões de classe, necessariamente hierárquicos, questões fortemente impregnadas na materialidade do enunciado em Rabelais.
Nascido em um contexto em que Bakhtin estudava profundamente a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, o processo de carnavalização foi compreendido a partir de um olhar sensível que soube ler François Rabelais. Não há como conhecer a carnavalização sem compreender suas bases fundadoras, sem (re)conhecer Rabelais, pelos olhos de Bakhtin, como tendo “um dom para o riso e um senso do mundo ligeiramente louco” (CLARK & HOLQUIST, 2004, p.322). Esse mundo poderia ser entrevisto nas imagens rabelesianas, como uma oposição
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às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. (BAKHTIN, 1999, p.4-5)
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Nesse sentido, Bakhtin afirma que a compreensão dessa realidade reside no grande diferencial de Rabelais, sua íntima relação com as fontes populares, interferência direta na sua concepção artística. Rebelais foi beber na cultura cômica popular, possuidora de uma concepção artística e ideológica própria, que não se ajusta aos cânones literários vigentes desde os séculos XVI até os nossos dias.
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É dessa forma que essa outra vida, essa vida não-oficial criada pelas camadas populares, criava uma dualidade do mundo. Bakhtin observa que tal “dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva” (1999, p.5). Segundo ele, as etapas primitivas da civilização desconheciam o regime social estatal ou de classes, fato que dispunha no mesmo patamar o “sagrado” e o “profano”, em que “os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem eram, segundo os indícios, igualmente sagrados e igualmente, poderíamos dizer, ‘oficiais’”. (1999, p.5). Tais características dessa cultura persistiram de alguma maneira em períodos posteriores, fato que teve forte transformação quando o Estado e o regime de classes se estabelece, levando as formas cômicas para a categoria do não-oficial. É desse modo, indica Bakhtin, que “seu sentido modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para transformarem-se finalmente nas formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular.” (1999, p.5)
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Nesse contexto, o estudioso russo aponta para a importância das festividades nas civilizações humanas. Elas sempre apresentaram um conteúdo essencial que exprimia, com sentido revelador, uma concepção do mundo. Sempre estiveram ligadas, de alguma maneira, aos períodos de crise, indicando, em uma relação de alternância e renovação, morte e ressurreição, o clima típico que sustenta as festividades, a festa. (BAKHTIN, 1999).
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É nesse contexto que Bakhtin vai fundamentar o processo de carnavalização como modo de percepção do mundo a partir de seu aspecto risível, dos modos de se relacionar das classes populares, da praça pública, do carnaval, de suas maneiras de lidar com um mundo desigual. De acordo com o estudioso russo, é na Idade Média e no Renascimento que tais características, consideravelmente importantes, são reconhecíveis, revelando que
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O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro de sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 1999, p.3)
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Dentro da cultura cômica popular da Idade Média, os bufões e os bobos são as personagens características que, de certo modo, eram “os veículos permanentes consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana”, situada fora dos tempos de carnaval (BAKHTIN, 1999). Em Questões de Literatura e de Estética, ao enfocar a literatura medieval das baixas camadas sociais, o estudioso russo destaca, também, a importância dos bufões e dos bobos, assim como a do trapaceiro, três relevantes figuras no romance. Segundo o autor, tendo esses uma forte relação “com os palcos teatrais e com os espetáculos de máscaras ao ar livre”, estão ligados às situações da vida na praça pública, sendo que “a própria existência dessas personagens têm um significado que não é literal, mas figurado: a própria aparência delas, tudo o que fazem e dizem não tem sentido direto e imediato, mas sim figurado e, às vezes, invertido” (BAKHTIN, 2002, p.275).
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Nesse aspecto é notória a função de tais personagens em deixar deflagrada certas sutilezas da vida cotidiana. Elas funcionam como um grande espelho que reflete as minúcias dos espaços privados, deixando exposto um “eu”, trazendo-o para a praça pública, para a coletividade, como reflexo de um “outro”, imperceptível naqueles espaços privados. Além disso, essas três figuras costumam ver “o avesso e o falso de cada situação” (BAKHTIN, 2002, p.276), exatamente por pertencerem ao que é exterior a este mundo, não se solidarizando com nenhuma situação da vida existente nele.
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Há, então, nessas figuras, um posicionamento de ‘luta’ contra “o fundo feudal e as más convenções, contra a mentira que impregnou todas as relações humanas” daquele período. Opõe-se a tal situação um bufão inteligente, alegre e sagaz, com suas zombarias paródicas, revelando uma forma sintética de denúncia e um bobo com sua incompreensão ingênua, simplicidade desinteressada contrapondo-se à hipocrisia voraz. De acordo com Bakhtin (2002, p.278), tais máscaras assumidas pelos personagens revela a luta contra as convenções,
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Elas dão o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida; o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo intermediário dos palcos teatrais, de representar a vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o direito de tornar pública a vida privada com todos os seus segredos mais íntimos.
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É nesse contexto que a praça pública se torna na literatura um importante agente modificador, resignificador de ‘realidades’. É a cultura popular, impregnada no espaço cotidiano, que tem o poder de interferir/influenciar as narrativas mais oficializadas e seus lugares em uma dada sociedade. Sustentado por esse contexto, nas profundezas de um folclore primitivo, de ações deflagradoras de certas realidades, é que o trapaceiro, o bufão e o bobo, por meio dos gêneros medievais, diretamente ligados ao riso rabelesiano, terão suas raízes.
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Em Rabelais, temos um riso estruturado nas bases da cultura cômica popular, que vai mais além, pois “não rompe apenas os laços tradicionais e elimina as camadas intermediárias ideais, ele revela a proximidade rude e direta daquilo que as pessoas separam por meio da mentira e do farisaísmo.” (Bakhtin, 2002, p. 284). No intuito de quebrar com as falsas ligações consagradas pela ideologia oficial e pela religião, que impedem que as idéias e as coisas entrem em contato vivo e carnal ligados à natureza delas, no sentido de “libertar todas as coisas, permitir que entrassem numa combinação livre, característica de sua natureza”, é que a carnavalização se configura como processo que põe a descoberto e (des)arruma diversos dogmas. Segundo Bakhtin (2002, p.284):
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Era necessário criar novas vizinhanças entre as coisas e as idéias, correspondentes à natureza delas, era preciso justapor e reunir o que fora falsamente desunido e afastado, e também afastar o que fora falsamente reunido. Com base nessa nova vizinhança, devia surgir um novo quadro do mundo, penetrado por uma necessidade interior verdadeira. Dessa forma, em Rabelais a destruição do velho quadro e a elaboração positiva do novo estão indissoluvelmente entrelaçadas.
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Em se tratando do carnaval, no final da Idade Média e durante a Renascença, ele era simbolicamente fundamental na vida de todos do povo. Durante os festejos carnavalescos, as pessoas transportavam-se brevemente para uma outra dimensão, utópica, mas libertadora. Era uma festa bem mais representativa do que a dos tempos modernos, lá não se tratava apenas de um momento de lazer, o carnaval representava uma “cosmovisão alternativa” em que se questionava, rindo e brincando com todas as normas e padrões (STAM, 1992). Nesse sentido é que o carnaval é indiferente às diferenciações entre atores e espectadores, e inclusive ao palco. Não há platéia, nem artistas, o carnaval está disposto para todo o povo, o povo vive o carnaval, que é universal. Além disso, segundo Bakhtin, (1999, p. 9),
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Ao contrario da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autentica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto.
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É dentro dessa concepção do carnaval que Bakhtin constrói a visão carnavalesca do mundo, ele fala sobre um processo transformador indiferente a um sistema de regras ditador e repressor, e identifica na obra de Rabelais, as características que podem ser compreendidas como as chaves para esse processo.
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Em Questões de Literatura e de Estética, o autor russo destaca sete grupos principais em que se enquadram as séries rabelaisianas: as séries do corpo humano do ponto de vista anatômico e fisiológico; séries da indumentária; séries da nutrição; séries da bebida e da embriaguez; séries sexuais; séries da morte e as séries dos excrementos. Partindo dessa classificação, Stam, em Bakhtin: da teoria literária à cultura massa, delimita doze tópicos, do qual nos deteremos a dois para o presente trabalho:
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1) a noção da bissexualidade e a prática do travestismo como folga dos papéis sociais rígidos e socialmente impostos; 2) a imagem do mundo social e político como um perpétuo “coroamento” e “descoroamento”, e a mudança perpétua como fonte da esperança popular.
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Ao tratar da sexualidade, Stam (1992) afirma que, para Bakhtin, ela sempre existe em relação à existência geral do corpo, em relação a outras pessoas, em relação à vida social comum. Segundo Stam, a sexualidade não é visualizada por Bakhtin como uma série de close-up isolante de partes do corpo, como o falo (pênis), já que ele a vê como uma ampla tela multicentralizada, repleta de gente, como a praça que permite as atividades do povo. Desse modo, Stam (1992, p.87) chama a atenção para o fato que “o sexo é relativizado e relacionalizado, disperso através de todo o campo social”.
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Nessa acepção é que a prática da bissexualidade pode ser entendida como uma forma de libertação da postura sexual oficial, do hegemônico. A bissexualidade, e até mesmo a homossexualidade, refletem o outro lado de uma conduta tida como correta, estabelecida por um regime dominante, que prevê regras e modelos de comportamento. Nesse sentido, o homo ou o bissexual é aquele que se circunscreve em uma relação corporal mista, ele não precisa estar definido, pois sua natureza é a mudança e a renovação em um novo tipo de relação com o outro, um outro incompleto, como toda relação social incompleta, como todo sistema de classes desequilibrado porque incompleto que busca equilíbrio, harmonia, igualdade. O mesmo ocorre no caso do travestismo, que prevê a mudança na imagem de exposição ao público, ao mundo. Os papéis sociais rígidos são subvertidos denotando a relação de quebra de uma dada ordem, modificando o espaço social para uma dimensão movente, não-estática e pré-estabelecida.
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Em relação ao “coroamento” e “descoroamento”, podemos indicar uma relação de troca numa única direção, o pobre deixa de ser pobre e passa a ser rico, sem tornar o rico pobre, mas levando todos para um mesmo patamar. Os “reis” são destronados, porque toda hierarquia foi quebrada, não há mais sobreposição. Todos são iguais, naquele espaço utópico, que pode ser demarcado por uma quebra do oficial, do supostamente hegemônico, já que não existe uma prescrição de comportamento; é um movimento de transformação, que complementa, que transforma, que contrapõe.
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É dessa forma que a carnavalização nasce da idéia do carnaval, pois, segundo Stam (1992, p.88)
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O carnaval, na concepção de Bakhtin, é mais do que uma festa ou um festival; é a cultural opositora do oprimido, o mundo afinal visto ‘de baixo’, não mera derrocada da etiqueta mas o malogro antecipatório, simbólico, de estruturas sociais opressoras. O carnaval é profundamente igualitário. Ele inverte a ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis de acordo com o ‘mundo de ponta-cabeça’. O carnaval coroa e destrona; ele arranca de seus tronos monarcas e instala hilariantes reis da bagunça em seus lugares.
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Ecoa desse modo, as vozes sociais, os modos de ver, pensar, agir, dos indivíduos, interlocutores de uma dada ideologia, situados em uma sociedade que muitas vezes exclui, reprime, rechaça vontades e sonhos.
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A partir de um conceito nascido no romance de Rabelais, propõem-se, na atualidade, analisar modos de ver, pensar e agir da sociedade por meio dos (inter)discursos nas esferas das histórias em que se inscrevem. Sendo assim, a carnavalização será compreendida no presente trabalho, como um processo que se dá a partir de relações necessariamente ideológicas, entre o hegemônico e o cotidiano, identificáveis nos processos interdiscursivos que podem ser percebidos na leitura dos textos fílmicos, portanto, dos valores refratados e refletidos nos filmes Madame Satã (2002) e Rainha diaba (1974).
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Perceber o processo de carnavalização como propulsor de atitude reflexiva por meio da leitura crítica no meio social, é um exercício fundamental de (re)direcionar o olhar para entrever os discursos invisíveis presentes em diversos dizeres socialmente “corretos” e aparentemente definitivos.
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Referências
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AÏNOUZ, Karim. Madame Satã. Brasil [2002]
BAKHTIN, M.(VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1997a.
BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997b.
________. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.
________. Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poética histórica. In:________Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Editora Hucitec, 2004. p.211-362.
BRAIT, B. & MELO, R. de. Enunciado/ enunciado concreto e enunciação. In: _______ BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005, p. 62-77.
CLARK, K. & HOLQUIST, Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: _______ BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-192.
FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: FIORIN, J. L.; BARROS, D. L. de (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da USP, 2003, p. 29-36.
FONTOURA, Antonio Carlos. Rainha Diaba. Brasil [1974]
MIOTELLO, V.; NAGAI, E.; COVRE, A. et al. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. São Carlos (SP): Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE, 2004.
STAM, R. Bakhtin: da teoria literária a cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.

Um comentário:

Anônimo disse...

Na obra Multidão – guerra e democracia na era do Império de 2004, Negri e Hardt desenvolvem a definição de multidão. A multidão como princípio político surge na obra anterior Império e, em Multidão, o objetivo é demonstrar a possibilidade da democracia como expressão da multitudo. Todavia, a produção do comum efetivada somente pela multidão é interpretada, por muitos, como soberania ou anarquia. Eis que Negri e Hardt dialogam com Bakhtin e sua concepção do carnavalesco para criarem uma outra interpretação ou conceito para a organização social, escapando do velho paradigma dualista entre anarquia ou soberania no qual o conceito de multidão limita-se ao mal entendido. Problemas da poética em Dostoievski e Rabelais são exemplos de obras nas quais a teoria bakhtiniana do carnavalesco é desenvolvida. Conforme Negri e Hardt o carnavalesco em Bakhtin – podendo assim nomear Os Irmãos Karamazov ou mesmo Crime e castigo como produções carnavalescas – é a força das paixões humanas.
O carnavalesco é prosa que se opõe ao monólogo recusando-se assim a invocar uma verdade já concluída, e optando por produzir contraste e conflito na forma do próprio movimento narrativo. Assim é que o carnavalesco põe em movimento uma enorme capacidade de inovação (...). A narrativa carnavalesca pode tornar-se uma forma de experimentação que liga a imaginação ao desejo e à utopia (Negri e Hardt: 2005b, p.273).

Por ser dialógica e polifônica a narrativa carnavalesca, em vez de alimentar a centralidade e o monólogo, transvaloriza-os pelas singularidades que livres podem e produzem significados em comum. Esse comum constitui-se então de forma aberta, numa rede de imbricações de singularidades que formam a multidão. O que Bakhtin nos ensina é entender uma organização na e pela qual a liberdade das singularidades se compõe de forma política, pois criam entre si o comum! Tanto na política quanto na narração os elementos constituidores são diferentes entre si, mas essa diferença é o que os enriquece e potencializa seus feitos e efeitos.
A conceituação de multidão e sua expressão, o comum, pode ser desenvolvida desde a noção do carnavalesco presente na crítica literária de Bakhtin.

por Kátia Vanessa Tarantini Silvestri