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LINGUAGEM, INTERAÇÃO E GÊNEROS DISCURSIVOS: reflexões em torno das questões centrais da proposta bakhtiniana

Ana Maria Pires Novaes - (UNISUAM/ UNESA)
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Bakhtin, ao considerar o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem, coloca o texto como questão central de investigação das ciências humanas, concebendo-o como um objeto lingüístico-discursivo, social e histórico. Para ele, o aspecto essencial da linguagem não é o sistema abstrato de formas lingüísticas, mas o fenômeno da interação verbal que se realiza por meio da enunciação..Na verdade, quando formaliza seu próprio conceito de linguagem,.tem em mira uma crítica ao “objetivismo abstrato” e ao “subjetivismo idealista”. Entretanto, segundo Brait (2001:98-99), o conjunto da obra do pensador russo revela o reconhecimento do papel da língua na constituição do universo significante e o da literatura enquanto gênero discursivo privilegiado no tocante “à representação da complexa natureza dialógica da linguagem”.
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Ao propor uma terceira via de enfrentamento das questões da linguagem e discutir a lingüística saussuriana, mais especificamente a contribuição de Saussure, Bakhtin (1986) reconhece as coerções do sistema a que o falante está sujeito e isso se reflete na distinção que faz entre significação e tema ou sentido Aquela, ao integrar a parte técnica, geral, compõe o nível reiterável da língua; este, construído na “compreensão ativa e responsiva” é o componente não reiterável, concreto, particular, único, relacionado aos efeitos de sentido produzidos em uma enunciação específica. Essa noção proposta por Bakhtin deve ser pensada como o movimento dialógico da enunciação: o locutor enuncia em função da existência de um interlocutor real ou virtual de quem quer uma atitude responsiva – uma réplica, uma reação – antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, projetando o lugar de seu ouvinte.
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Brait (2002:149), ao reiterar sua avaliação da obra bakhtiniana, destaca que, embora com uma outra concepção de língua, esse pensador ressalva a idéia de coerção do sistema, “não como entidade abstrata, mas enquanto componente vivo das atividades de linguagem”. Também em relação às posições da estilística, Bakhtin não ignora a questão do estilo e do individual, mas considera que apreender a dimensão estilística não constitui objeto suficiente para o estudo da linguagem em uso. Para a autora, coerção e estilo, retomados e reconsiderados na perspectiva interacional da linguagem, vão se associar ao conceito de discurso e, especialmente, de gênero discursivo. Ao oferecer a noção de gêneros, Bakhtin redimensiona duas instâncias que já estavam nas duas tendências por ele discutidas.
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Cumpre assinalar que, quando se liga a definição de gênero discursivo estritamente às esferas da atividade humana, ela pode parecer estar atrelada a certo determinismo e indicar que os indivíduos estariam impossibilitados de criar ou modificar um gênero, visto que o tema, a estrutura composicional e o estilo seriam características a que o falante se sujeitaria.
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Faïta (2001:162-164), ao discutir a controvérsia do “determinismo” bakhtiniano e o destaque, amplamente, dado ao predomínio do coletivo, do social sobre o individual e o subjetivo, pondera que, na análise de cada conceito que emerge da obra de Bakhtin, é preciso considerar sempre o percurso do autor numa “freqüentação interativa da obra”: “os textos que testemunham uma evolução do pensamento exigem uma volta aos estágios anteriores, para medir a distância que os separa, inferir, das diferenças observadas, o sentido do trabalho realizado no intervalo”
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É preciso, portanto, que o estudioso, ao utilizar-se de um conceito, a partir das propostas de Bakhtin, tenha sempre uma preocupação com o caminho percorrido pelo autor e com a relação que tal conceito mantém com os demais.
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O conceito de gênero discursivo, por exemplo, explicitado em Estética da Criação Verbal, já está anunciado em Marxismo e Filosofia da Linguagem, quando, ao tratar de tema e significação (1986, 128-136), Bakhtin fala das relações entre as formas lingüísticas, presentes em determinada composição, e os elementos não verbais da situação. Segundo Brait (2002:146-147), nesta obra, o autor já esboça esse conceito, em consonância com os de interação e estilo, quando se refere “aos temas que povoam as comunidades humanas e como esses temas aparecem a partir de determinadas formas de composição e de determinados estilos”.
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Assim, para que não se adote um conceito “determinista” de gênero discursivo, é preciso que se considerem, na sua formulação, as esferas das atividades humanas e as especificidades das práticas da linguagem numa relação dinâmica, dialógica com as condições de produção e recepção.
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Ao se referir à escolha de palavras realizada pelo locutor na formulação dos enunciados, Bakhtin (2000:311-312) reafirma a relação entre as práticas sociais, a interação e os gêneros discursivos:
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Quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de um enunciado, nem sempre a tiramos, pelo contrário, do sistema da língua, da neutralidade lexicográfica. Costumamos tirá-la de outros enunciados, e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero.
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Os gêneros são, na verdade, estruturas que se sedimentaram, cristalizações de práticas sociais que se distribuem tanto pela oralidade quanto pela escrita e foram se constituindo historicamente, na medida em que novas atividades foram realizadas pelos indivíduos. Não são estáticos; ao contrário, estão sujeitos a mudanças decorrentes das próprias transformações sociais. Nas práticas discursivas, a adoção de um gênero, considerado o mais adequado à expressão de determinadas intenções e à situação interativa, implica não só a aceitação de suas singularidades mais constantes, mas também sua adaptação à criatividade dos agentes, que, adotando um estilo próprio, contribuem para a transformação dos modelos.
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Bakhtin, fundamentado nos pressupostos do materialismo histórico, considera a linguagem em sua historicidade constitutiva. Os sujeitos sócio-historicamente organizados, constituem os sentidos na interação verbal, e o enunciado, produzido sempre em um contexto específico, caracteriza-se como unidade real de comunicação pela possibilidade de estabelecer uma alternância dos sujeitos falantes. Assim, na visão bakhtiniana, “compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente [...] Compreender é opor à palavra do locutor uma ‘contrapalavra’” (BAKHTIN, 1986:131).
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Ao assumir que o enunciado, enquanto elo na cadeia da comunicação verbal, “está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro acerca desse objeto”, Bakhtin (2000:320) esclarece:
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[...] o enunciado está ligado não só aos elos que o precedem mas também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. No momento em que o enunciado está sendo elaborado, os elos, claro, ainda não existem. Mas o enunciado desde o início, elabora-se em função da eventual reação-resposta, a qual é o objetivo preciso de sua elaboração. [...] Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal.
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Na perspectiva bakhtiniana, a questão do dialogismo tem uma dupla e indissolúvel dimensão: a de diálogo entre interlocutores e a de diálogo entre discursos. A primeira, diz respeito às relações entre sujeitos que interagem; a segunda, configura as vozes que ecoam da comunidade, da cultura, enfim, da vida em sociedade. Nesta dimensão, o discurso de um indivíduo interage com outros discursos, explícita ou implicitamente; é tecido também por outras vozes que, ao emergirem de um contexto mais amplo – da história, da memória – se entrecruzam, se completam, polemizam entre si na construção de sentidos. Desse modo, um enunciado, produzido em um momento sócio-histórico determinado, não pode deixar de refletir um diálogo social mais amplo, em que estão presentes também aspectos sócio-ideológicos. No entanto, é necessário observar que o diálogo com outros discursos do universo social, ou mesmo com o do interlocutor, não anula o sujeito no ato discursivo. Ao falar em relação dialógica, Bakhtin não insiste na síntese, “mas no caráter polifônico dessa relação exibida pela linguagem” (BRAIT, 2001:98).
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Ao estabelecer o dialogismo como condição da linguagem, Bakhtin descarta a possibilidade de uma enunciação monológica. Assim, mesmo que em situação de solilóquio, é necessário que o EU simule a presença do OUTRO, posto que o que diz depende da realidade ou fantasia de que crê estar falando, ou seja, das próprias reações que possa antecipar. Há, nesse caso, no dizer de Benveniste (1976, v. 2), um diálogo interiorizado (falado em “linguagem interior”) entre um locutor e um ouvinte.
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Nesta perspectiva, todo discurso é uma realização interativa, fruto de uma atividade verbal entre sujeitos atuais ou não, co-presentes ou não, que, reciprocamente, se influenciam. Em outras palavras, o “falar”, ou seja, a linguagem em sua função externa de modo de comunicar,é essencialmente um processo dialógico.
Quando se interage com alguém, os enunciados se organizam a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor tenha sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e crenças, das relações que se estabelecem e impõem limites sobre o que pode ser dito, como pode ser dito e por quem. Para que esse objetivo seja atingido, os usuários de uma dada língua, em qualquer atividade de fala ou escrita, combinam saberes lingüísticos e saberes socioculturais. Ou seja: a competência do locutor não se limita ao domínio dos signos e das possibilidades previstas no sistema verbal. Ao organizar o texto de maneira a compreender e a se fazer compreender, o locutor, além do instrumental lingüístico oferecido pela língua enquanto sistema, mobiliza normas e estratégias de uso que se combinam com regras culturais, sociais e situacionais, conhecidas e reconhecidas pelos participantes do evento interacional. O esforço na produção do enunciado se manifesta por marcas que esse locutor deixa no texto e que funcionam como pistas para que seu interlocutor possa compreendê-lo. A compreensão, sob o prisma da interatividade, torna-se atividade altamente complexa de produção de sentido, realizada por parceiros que interagem numa dada situação sociocomunicativa.
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Conceber, na perspectiva bakhtiniana, o processo de interação como o aspecto essencial da própria linguagem, implica pensá-la como prática, como atividade. A língua é histórica, social e se manifesta, concretamente, como textos orais e escritos. Nos seus dois modos de uso, “é uma prática social que contribui para constituir, transmitir e preservar a própria memória dos feitos humanos”. (MARCUSCHI, 1998: 141)
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Pode-se afirmar que, num texto, quer oral quer escrito, não só o dito, o que está explicitado, significa, mas também os diferentes modos de dizer, os pressupostos, os implícitos dos mais variados tipos, o conhecimento de mundo dos interlocutores, o conhecimento partilhado, enfim, todo o evento da enunciação participa da produção de sentido. Constituída historicamente, a língua vem marcada pelos usos e pelos espaços sociais desses usos e, por isso, nunca pode ser estudada ou ensinada como um produto acabado, fechado em si mesmo.
Desta concepção, decorre um ensino de língua que, deixando de ter como foco principal o código lingüístico, valoriza a análise de textos em diferentes atividades interlocutivas. Há, também, que se dar importância maior ao trabalho com os gêneros pela oportunidade de fazer chegar à sala de aula a língua nos seus mais diversos usos, dos mais informais aos mais formais, em situações da vida cotidiana.
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REFERÊNCIAS
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Ensino Superior).
______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
BRAIT, Beth. Interação, gênero e estilo. In: PRETI, Dino (org.) Interação na fala e na escrita. São Paulo: HUMANITAS/FFLCH/USP, 2002, p.123-157.
______. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2001, p. 91-104.
FAÏTA, Daniel. A noção de “gênero discursivo” em Bakhtin: uma mudança de paradigma. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Ed.da UNICAMP, 2001. p. 159-177.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Nove teses para uma reflexão sobre a valorização da fala no ensino de língua. Rev. da ANPOLL, São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, n.4, p.137-156,jan./jun.1998.

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