MIKHAIL BAKHTIN é o acontecimento mais marcante das ciências humanas deste fim-de-século. Tudo nele tem sido surpreendente: a própria vida, a diversificação temática dos textos, a questão da autoria, a edição póstuma de grande parte de sua obra. Bakhtin nos fascina como numa descoberta arqueo-lógica. O mais interessante é que essa espécie de arqueologia nos aponta não para uma curiosidade enterrada na história, mas para alguém que, hoje, revela-se francamente na dianteira; somos nós que, desenterrando-o do passado, vemo-nos em muitos aspectos compelidos a correr atrás de seus ossos.
Cristóvão Tezza
Cristóvão Tezza
As palavras de Tezza além de fazerem uma bela apresentação de Bakhtin, me provocam a também “correr atrás de seus ossos”, ou melhor, correr atrás dos seus escritos para pensar questões atuais, “olhar para o mundo” no tempo presente. Como também sou provocada pelo tom e o ritmo proposto para as Rodas de Conversas Bakhtinianas. Qual a cadência seguir para encontrar meu lugar na enunciação com os diversos outros nesse encontro? Meu discurso interior na produção desse texto faz piruetas, são pensamentos, idéias e vozes que ecoam para encontrar meu lugar correspondente nessa interlocução. De antemão, aviso ao leitor que as palavras que pululam da minha mente estão “molhadas” de incertezas e expressam uma primeira aproximação com as idéias de Bakhtin em um evento que nos convoca a inter-relação da ciência, a arte e a vida.
Bakhtin foi um autor que transitou com muita responsividade, acrescentando elementos transgredientes2 em diversos campos do conhecimento como a linguagem, literatura, arte e a filosofia, e por isso, permite muitas entradas como afirma Freitas (2007). Necessito porém, demarcar meu lugar no diálogo com ele. Pedagoga que sou e pesquisadora das tecnologias digitais3 na formação dos professores, impõe de imediato o questionamento: o que me move a buscar interlocução com esse autor que não abordou a educação, não conviveu com as potencialidades das tecnologias digitais como se vê na atualidade e, muito menos escreveu sobre aprendizagem do adulto professor?
Trago inquietações da minha prática como formadoras de futuros docentes. Se por um lado, as exigências postas pela sociedade contemporânea, permeada de tecnologias, estão pautando uma nova dinâmica para a atuação docente e a apropriação dos conhecimentos nessa área, por outro, as políticas públicas ainda não conseguiram incluir totalmente as escolas no mundo digital e, nos processos formativos de docentes, tais questões não encontram muito espaço. Assim, o professor tem dificuldade de conceber as tecnologias digitais como condição de produção de conhecimento e, paradoxalmente, sintonizar-se com a cultura digital dos alunos.
Não pretendo endossar as defesas calorosas de que todos os professores precisam aprender e usar na sua prática pedagógica as tecnologias digitais na mesma velocidade com que essas surgem. Considero porém, os processos formativos nessa área como uma arena pulsante de perguntas, uma vez que ainda não temos muito claro como o docente, um sujeito singular, que não conviveu e nem interagiu com as tecnologias digitais, mas marcado por sua historicidade, possa avançar em seus conhecimentos nessa área e mediar os processos de aprendizagem junto aos educandos. Tal realidade me leva a questionar: Que formação sobre computador/internet dará conta de articular o instrumental e o pedagógico? Será o uso das tecnologias na prática pedagógica uma utopia? Os cursos voltados para os professores nessa área consideram como os professores em formação aprendem?
Desse modo, falar de formação de professor é também falar de processo de aprendizagem dos sujeitos em idade adulta que aprendem para ensinar e ensinam aprendendo em seu contínuo processo de formação. Aprender, buscar e conhecer faz parte da nossa educação permanente como seres abertos aos acontecimentos da existência. Esse é o pano de fundo no qual me aproximo das idéias de Bakhtin. Intenciono entrelaçar seu conceito de compreensão ativa na discussão do processo de aprendizagem do adulto professor. Entendo, que o processo de formação de professores envolve experiências singulares e coletivas de aprendizagem e que é indispensável que o sujeito tenha uma compreensão ativa, para fazer corresponder com sua contrapalavra.
O interessante é que na roda da vida, ou melhor, na roda das teorias, existe uma pluralidade de concepções sobre ato de aprender que evidenciam díspares formas de olhar o sujeito e sua relação com os objetos de conhecimento. O que fica evidente é que em qualquer definição a palavra aprendizagem estará carregada de pressupostos político-ideológicos, relacionados com uma determinada visão de homem, sociedade e de conhecimento. Embora Bakhtin não tenha abordado a questão da aprendizagem em sua teoria, seu conceito de compreensão ativa me ancora a dirigir um olhar bakhtiniano para os processos formativos dos professores diante do aprendizado das tecnologias digitais.
Mas antes da roda dessa conversar iniciar tenho que fazer uma pequena parada: “abrir um link” para situar o leitor de qual perspectiva elaboro a minha réplica nessa discussão. Parto do entendimento de que, a compreensão ativa abordada por Bakhtin, encontra eco na defesa de Vygotsky de que existe aprendizagem quando internalizamos o que foi vivenciado na relação com o outro. Essa internalização – reconstrução interna de uma operação externa - irá acontecer por meio das significações construídas no processo de interação sujeito e objeto de conhecimento, no qual o sujeito confere um sentido único, singular e pessoal ao que está aprendendo.
Vygotsky (2000, 2007), enfatiza a extrema importância do aprender em nossa vida, pois o aprendizado é primordial para o desenvolvimento das funções mentais superiores. Desse modo, o aspecto característico da psicologia humana é a internalização das atividades socialmente enraizadas e desenvolvidas historicamente. O que demonstra a relevância de se discutir o processo de aprendizagem do adulto professor na contemporaneidade afim de compreender as relações dos sujeitos envolvidos em sua múltiplas interações com os diversos objetos de conhecimento que são necessários serem apreendidos ao longo da vida.
Após esse link para esclarecimentos, convido o leitor a espreitar e acompanhar os vestígios dos nós encontrados no traçado das linhas que desatam meu pensar e compreenda o sentido que dou às palavras de Bakhtin nessa discussão. Assim, percorro as produções do autor sobre a compreensão ativa e a entrecruzo com a aprendizagem da linguagem digital nesse debate. E por último, ao tecer as considerações finais, agrego e congrego com o autor minha compreensão ativa na discussão da aprendizagem do adulto face às tecnologias digitais.
Desatando nó dá compreensão ativa nas obras de Bakhtin e seu Círculo
Começar pelo princípio! Ao meu ver Saramago está correto quando afirma que começar pelo princípio não é percorrer caminhos sem ter que desatar nós e estrangulamentos. E se o leitor me permite acrescentar outra frase de efeito, diria que isso também é impossível de ocorrer nos novelos da escrita. Na escolha das palavras, elas vem e vão, bailando de um lado a outro. Embaraçam, entrelaçam, são escritas e reescritas ao toque dos dedos sobre o teclado do computador. Posso dizer que no desenrolar dos novelos da escrita na contemporaneidade, transitamos por vários arquivos, modificando e salvando as últimas atualizações até encontrar o fio da versão final. Alívio? Certeza? Segurança? Pode ser que sim ou não. Ao abrir novamente o arquivo “armazenado” e acompanhar sua leitura na tela, sou aguçada a mudar uma coisa aqui, outra ali, e por aí vai a difícil escolha das palavras que permitem ao leitor puxar o fio e ter em suas mãos uma linha lisa e contínua do meu pensamento.
Começar por qual princípio para desenrolar os novelos da densa produção teórica de Mikhail Bakhtin em busca de respostas à questões que nos são postas na atualidade? Como diz Machado (2007) “quem lê Bakhtin procura sintetizar o que ele generalizou”[...]”os textos bakhtinianos são na verdade hipertextos: cada unidade é um nó potencializador de muitas questões”[...] “os leitores de Bakhtin já operam hipertextualmente para proceder à leitura: um escrito nunca é continuação do outro, mas sempre uma expansão de algum aspecto de outros”(p. 226-227).
O autor russo exercitou em seu próprio percurso uma escrita não-linear, mas dialógica. Seus conceitos são apreendidos numa imensa rede, sendo difícil traçar seu pensamento em uma linha reta. Ao penetrar no seu universo teórico, fico a pensar que era seu propósito deixar por conta do leitor o acabamento de sua obra. Sua idéia de acabamento não é encontrar a ponta final do novelo, mas que o leitor com sua contapalavra, desate os nós encontrados pelo caminho com uma compreensão ativa. Esse movimento é próprio do conceito de diálogo na perspectiva bakthiniana que convoca à palavra, à arena do debate, à instauração da dúvida, às incertezas dos enunciados da língua situada social e historicamente.
Para dar conta de tentar desatar o nó da compreensão ativa nas produções de Bakhtin e seu Círculo4 percorri algumas obras. Sendo assim, inicio a caminhada pela obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicada em 1934 e assinada por Volochinov, no qual ele enfatiza que o “processo de decodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos”. (p. 93). Ainda nada é dito sobre a compreensão ativa, surge apenas a distinção entre compreender e identificar um signo, mas já posso considerar o fio condutor de toda a discussão em torno do conceito que virá.
No quinto capítulo dessa obra, o autor emprega o termo compreensão passiva para tecer críticas à forma dos filólogos-linguístas da corrente do objetivismo abstrato analisarem a linguagem. Essa compreensão passiva resultava em uma falsa teoria da compreensão que para ele estava na base dos métodos de interpretação linguísticas dos textos, quanto em toda a semiologia européia.
Essa é uma das críticas às duas correntes do pensamento filosófico linguístico da sua época, denominadas por ele de objetivismo abstrato e subjetivismo idealista. Essas críticas emergem na discussão da filosofia da linguagem do Círculo. Concordo com Brait (2005), de que é preciso fazer justiça à elegância e à pertinência com que Bakhtin/Volochinov (1999) empreende sua crítica a essas correntes ao formalizar seu próprio conceito de linguagem. Sua refutação a essas idéias centra-se no seguinte argumento
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (p. 123)
Esse é o pano de fundo em que emerge o conceito de compreensão ativa nas obras do Círculo: sua concepção de linguagem. Se Bakhtin e seu Círculo valorizam as enunciações, o diálogo, a situação concreta da língua e seu uso no contexto sócio-histórico na interação verbal, de certo que uma teoria apoiada numa compreensão passiva não fornecia os meios para abordar de forma essencial o problema da verdadeira substância da língua.
O autor aborda com mais clareza a questão da compreensão nessa obra, ao tratar da distinção entre tema e significado. Para Bakhtin/Volochinov (1999) essa distinção só é visível se for conectada com o problema da compreensão. Isso porque “Qualquer tipo genuíno de compreensão deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema. (p. 131). Primeiramente, convém explicitar que Bakhtin/Volochinov (1999) utiliza o termo tema para falar do sentido de uma enunciação completa. O sentido é ativo, vivo e complexo que vai se adaptando às condições históricas no contexto que as enunciações são realizadas. Já o significado da palavra que está descrito em um dicionário, por exemplo, não tem essa mesma vivacidade e dinamismo. É mais estável e consolidado, mas também sofre mudanças no deslocar de um contexto apreciativo para outro. Por fim, sentido e significado são constitutivos do processo de significar.
Apesar do autor informar que a discussão sobre compreensão ativa será breve, ele evidencia o papel imprescindível do conceito na discussão de sentido e significado, como também esclarece o que é compreensão ativa: “uma forma de diálogo; ela esta para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (p. 132).
Compreender então, é ter uma reposta a enunciar. Se não compreendo uma palavra ela não se torna um signo para mim, ela é vista como um sinal. Se não compreendo um ícone na tela não interajo com ele e por isso, torna-se impossível estabelecer o diálogo. Como o diálogo é alimentado por perguntas e respostas, entendo que para transitar com desenvoltura ao lidar no computador/internet é preciso que os sujeitos construam sentidos na apreensão da linguagem digital, em busca da compreensão e não apenas de identificação de trilhas, rotas e ícones para serem mecanicamente seguidos.
Ao observar o resultado de muitas pesquisas sobre a formação dos professores para uso das tecnologias na educação, vejo que ainda falta o “germe de uma resposta”. Muitos dos relatos expõem uma difícil compreensão dos professores dessa linguagem. Como encontrar meu lugar nesse universo povoado de signos que exige uma reposta para iniciar ou continuar o diálogo como afirma Bakhtin/Volochinov?
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mas profunda e real é a nossa compreensão (1999,p. 132)
Para compreender o tema da enunciação do outro e encontrar meu lugar correspondente nessa interlocução, é indispensável ter uma compreensão ativa, para fazer corresponder com uma contrapalavra. Quanto mais temos palavras nossas correspondentes às palavras que ouvimos e lemos de outras pessoas, mais profundas e reais são nossas condições de aprendizagem. Acredito ser difícil para os professores terem suas contrapalavras na apreensão da linguagem digital por conta de muitas “familiarizações relâmpagos” a quem são submetidos para aprenderem a utilizar as tecnologias digitais voltadas para aquisição de conhecimentos técnicos com o computador/internet. Porém, com o fim do curso, muitas vezes finda também a relação do professor com a tecnologia, pois os docentes retornam inseguros com a incorporação das mesmas às suas práticas.
Seguindo a compreensão ativa em outras produções do autor, extraio diversos fragmentos que enriquecem o debate. Assim, na obra Estética da Criação Verbal (2003) percorro vários textos no qual a questão da compreensão é retomada, dando novas pistas para exercitar a minha própria compreensão desse conceito.
O autor destaca no texto “Gêneros do discurso”, escrito entre 1952 e 1953, que na compreensão do significado linguístico do discurso, o ouvinte ocupa uma ativa posição responsiva ao completar ou não o discurso, concordar com ele, aplicá-lo e essa posição responsiva do ouvinte se configura ao longo do processo de audição e compreensão e às vezes literalmente após a primeira palavra se proferida. É nesse contexto que
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo5 seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta (BAKHTIN, 2003, p. 271)
Da mesma maneira que na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, compreender é ter o embrião de uma resposta, aqui, a compreensão é “prenhe” de resposta. Além disso, o autor nos esclarece que o próprio falante espera do ouvinte uma concordância, uma objeção, uma ação da sua voz não como uma dublagem do que ouviu, mas com uma compreensão ativamente responsiva. O ouvinte com uma compreensão passiva não é um participante da real comunicação discursiva, porque a palavra avança à procura de compreensão responsiva.
Como a perspectiva de análise de Bakhitn é a literatura, a discussão da compreensão está também relacionada a esse campo. Desse modo, no texto “Problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, o autor afirma que ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender a consciência do outro e de seu mundo. A verdadeira essência do texto se desenvolve nas fronteiras de duas consciências, de dois sujeitos. Está afirmação advém da questão da alteridade na concepção teórica de Bakhtin, na sua defesa de que é o outro que nos constitui. Assim, o eu só existe a partir do diálogo com outros eus.
A discussão da constituição do eu a partir do outro está fortemente presente em “Autor e o personagem na atividade estética” (2003) no qual assevera que uma única consciência não pode dar sentido ao próprio eu e que precisa da colaboração dos outros para poder definir-se e ser autor de si mesmo. Para Bakhtin (2003) as nossas próprias palavras são um resultado de incorporação de palavras alheias aos nossos enunciados.
A questão das duas consciências nas fronteiras de um texto também pode ser melhor visualizada em sua distinção entre explicação e compreensão:
Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos dialógicos (além do retórico-formal). Em certa medida, a compreensão sempre é dialógica. (BAKHTIN, 2003, p. 316)
Bakhtin (2003) reafirma que a compreensão é sempre dialógica por isso se distingue da explicação que é desprovida de elementos dialógicos por envolver apenas um sujeito. Se o ato de compreender envolve elementos dialógicos, para se compreender um enunciado é preciso considerar a alternância dos sujeitos e a capacidade de definir uma resposta. Em suas palavras, “ A responsividade de princípio de qualquer compreensão” (BAKHTIN, 2003, p.317).
A palavra responsividade impele a participação do sujeito no ato de compreender, ou seja seu envolvimento, compromisso e disposição em participar do diálogo com um autor, uma obra, um texto, ou qualquer objeto do conhecimento. Trago um trecho do autor da obra Filosofia do Ato que alarga minha compreensão do termo responsividade
Compreender um objeto é compreender meu dever em relação a ele ( atitude ou posição que devo tomar em relação a ele), isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-vento único, e isso pressupõe minha participação responsável, e não uma abstração de mim mesmo. É apenas de dentro da minha participação que o Ser pode ser compreendido como um evento, mas esse momento de participação única não existe dentro do conteúdo, visto em abstração do ato como ação responsável. ( BAKHTIN, 1993, p. 35)
Suas palavras me levam a pensar que não tenho como delegar ao outro a responsabilidade de compreender, assim como não posso delegar a responsabilidade da minha aprendizagem. Para Bakhtin (1993) o que me move a ter atos e ações responsáveis na vida, não é o conteúdo de uma obrigação, mas minha assinatura sob ela. O que está em jogo é minha decisão de assumir uma obrigação realizando o ato de subscrever-reconhecendo nesse ato a ação responsável. Minha participação no Ser é de maneira única e irrepetível e meu lugar não pode ser tomado por ninguém mais.
Com as afirmações anteriores, Bakhtin (1993) introduz o fantástico conceito do “meu não-álibi no Ser”. Conceito que traduz o compromisso de cada um com atos responsáveis perante a vida, sendo algo que eu afirmo de modo único e singular. Porque o que implica o meu “não-álibi no Ser” é minha singularidade e insubstituibilidade dentro do todo do Ser.
Tais reflexões recaem muito bem na entrada das tecnologias digitais na escola. Quais são os sentidos e significados do professor aprender a usar esses recursos? Sintonizar com a cultura digital dos seus alunos? Modernizar sua prática pedagógica? Colaborar na produção do conhecimento de seus alunos? Essas questões precisam estar acordadas diante de cursos que são ofertados aos professores, para que eles não participem como uma abstração de si mesmos sem um envolvimento no evento, no ato de aprender.
No texto “Apontamentos de 1970 - 1971” ainda na obra Estética da Criação Verbal ele acrescenta o termo empatia para abordar a compreensão ativa. Para ele a compreensão não pode ser interpretada como empatia e o individuo se colocar no lugar do outro e perder seu próprio lugar. Essa discussão também surge em “O autor e o personagem na atividade estética”, no qual o autor define o que está chamando de compreensão simpática
Costuma-se denominar compreensão simpática esse meu ativismo6 que vem de fora e visa ao mundo interior do outro. Cumpre salientar o caráter absolutamente proveitoso, excedente, produtivo e enriquecedor da compreensão simpática. Em sua interpretação habitualmente ingênua-realista, a palavra “compreensão' gera equívocos. Não se trata de maneira nenhuma, de uma representação exata e passiva, de uma duplicação do vivenciamento de outro indivíduo em mim (aliás, tal duplicado é impossível), mas da transferência do vivenciamento para um plano axiológico inteiramente distinto, para uma nova categoria de valorização e enformação. (BAKHTIN, 2003, p. 94)
A compreensão simpática é concebida como o emprego da minha posição arquitetônica na existência fora da vida interior do outro. Nessa perspectiva, o sentido de compreensão está imbricado com o conceito de exotopia do autor7. Colocar-me no lugar do outro não significa em modo algum tomar seu lugar, mas ao retornar ao meu próprio lugar trazer comigo um excedente de visão que permite visualizar o outro por um ângulo diferente. É o ollhar exotópico do professor para os entre lugares das tecnologias digitais na sociedade e sua prática pedagógica que o levará a refletir até que ponto essas tecnologias traram possibilidades outras para seu oficio de ensinar.
Nesse mesmo texto, há uma interessante discussão acerca dos elementos repetíveis e não repetíveis no processo de compreender que é muito relevante para minha discussão da aprendizagem do adulto da linguagem digital. Bakhtin (2003) pontua que no ato vivo da compreensão o reconhecimento do repetível e a descoberta devem estar fundidos indissoluvelmente. Isso porque “a diretriz exclusiva do conhecimento, na busca apenas do conhecido ( do que já existiu) não permite descobrir o novo ( isto é, o principal, a totalidade não-repetível) (BAKHTIN, p. 378).
O que se repete e o que é novo no processo de aprendizagem das tecnologias digitais? Será que os professores conseguem fazer conexões dessa natureza a cada novo ambiente que passam a explorar? Relaciono tais reflexões com a abordagem do autor sobre a capacidade criadora da compreensão.
A criação poderosa e profunda em muitos aspectos é inconsciente e polissêmica. Na compreensão ela é completada pela consciência e descobre-se a diversidade dos sentidos. Assim a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora. A compreensão criadora continua a criação, multiplica a riqueza artística da humanidade. A co-criação dos sujeitos da compreensão” (BAKHTIN, 2003, p. 378)
Co-criamos na medida que compreendemos e acrescentamos nosso olhar, nossas palavras ao texto do outro. Na medida que compreendo, eu aprendo de fato, eu tenho a possibilidade de criar e recriar. Com uma compreensão ativa e criadora no diálogo com o computador/internet descobre-se, desbrava-se novos sentidos, novas rotas, novos modos de ensinar e aprender. Lembrando que há uma demarcada diferença entre usuário e autor de uma tecnologia, pois o professor no meu caso, não cria o programa/software mas com ele tem a chance de realizar inúmeras criações, atualizando de maneira singular e original, reinterpretando-o na produção de novos sentidos.
Bakhtin (2003) ainda no texto Apontamentos de 1970-1971, entrelaça o conceito de compreensão com o de avaliação, vistos como simultâneos e constituintes de um ato único integral. Como assim? Para ele o sujeito que compreende não pode excluir a possibilidade de mudança e até mesmo a renúncia dos seus pontos de vistas. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta que resulta em mudança mútua e enriquecimento. Ao meu ver a avaliação aqui não é vista como medida do que compreendi, mas uma reflexão num verdadeiro diálogo com meu discurso interior que possibilita até mesmo uma renúnncia das minhas idéias anteriormente definidas. Nessa luta, o ato de concordar e discordar estimula e aprofunda a compreensão.
O último texto percorrido em minha leitura foi “Metodologia das Ciências Humanas” publicado em 1974. 8A questão da compreensão aparece nesse texto quando o autor discute que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. A compreensão é vista como uma visão de sentido vivo da vivência na expressão, ou seja “uma visão do fenômeno internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido” e não “não uma visão fenomênica”(p. 396). Nesse trecho me parece que o autor faz uma crítica a fenomenologia pelo fato de olhar o fenômeno externamente. Ponzio (2008) lembra que apesar de associar-se inicialmente à fenomenologia de Husserl, sua abordagem é substancialmente diferente. Essa questão merece maior aprofundamento que não será possível abordar nesse texto. A leitura que faço é de que para ter uma visão do fenômeno precisamos olhar para além da sua aparência externa.
Trago também outro trecho desse mesmo texto sobre a compreensão ativa, que na verdade sugere ser uma questão a ser expandida futuramente
Compreensão. Desmembramento da compreensão. Em atos particulares. Na compreensão efetiva, real e concreta, eles se fundem indissoluvelmente em um processo único de compreensão, porém cada ato particular tem uma autonomia semântica (de conteúdo) ideal e pode se destacado do ato empírico concreto. 1) a percepção psicofisiológica do signo físico(palavra, cor, forma espacial). 2) Seu reconhecimento ( como conhecido, desconhecido). A compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante). 4) a compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância) A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade”
Após ler e reler esse trecho vejo que a compreensão ativa desde a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, está estreitamente vinculada à discussão de sentido e significado em Bakhtin. Considerando a aprendizagem do professor da linguagem digital, ousadamente me atrevo a desmembrar a compreensão ativa em atos particulares como sugeriu Bakhtin (2003) e como fez Ponzio (2008) em seu texto “Signo e sentido em Bakhtin”. Portanto, os atos individuais da compreensão real e concreta iniciam-se com a percepção do sujeito do ato físico de um ícone na tela, uma compreensão ainda limitada, para em seguida ocorrer o seu reconhecimento. Aqui sou instigada a pensar no que me é familiar nesse signo, ou seja, o que tem de repetível. A compreensão do significado do contexto específico, me reporta às relações anteriores e também às atuais dos sujeitos com as tecnologias digitais. Todos esses atos estão imbricados na compreensão dialógica ativa por meio do contraste e ou do consenso, no diálogo travado pelo professor em formação, na exploração dos signos presentes nessa linguagem. Como diz Machado (2005) “a compreensão é uma atividade específica do universo semiótico em que se situa o homem, sua linguagem, suas idéias” (p. 135).
Dessa discussão, posso afirmar que a compreensão ativa está embricada no processo de interiorização do sujeito de um signo, ou seja na forma como ele internaliza algo externo e o torna seu, criando e recriando, aprendendo de fato e não por meio de memorização mecânica no ato de aprender.
Se para Bakhtin (2003) é o autor completador que dá o acabamento à obra de arte, acredito que é o professor, um sujeito histórico cultural, que dará acabamento ao que vê em sua imersão no computador/internet com seus diversos usos e significados. O que implica pensar que os cursos de formação dos professores não podem se basear em meros treinamentos centrados apenas no que é externo ao sujeito na relação com o objeto de conhecimento. O professor em formação precisa fazer o movimento dialético do desenvolvimento externo – interno, convertendo para si, em uma nova aprendizagem.
Como desatar o novelo dessa escrita?
Javier Villafâne busca em vão a palavra que deixou escapar bem quando ia pronunciá-la. Onde terá ido essa palavra, que ele tinha na ponta da língua?
Tenho as mesmas indagações de Eduardo Galeano ao escrever sobre e com Bakhtin. Ao mesmo tempo que sua valorização do enunciado me conforta, no decorrer da escrita, muitas das palavras que gostaria de dizer, escapuliram. Talvez elas estejam me esperando em outro texto, em um próximo encontro com Bakhtin ou em uma próxima roda de conversa bakhtiniana.
Fato é que fico sem saber como desatar o novelo dessa escrita. Penso que posso tomar emprestadas as palavras de Freitas de que “a interlocução com Bakhtin produz um efeito transformador: é impossível resistir às suas provocações. Não se penetra no mundo teórico de Bakhtin sem que se opere mudanças em nossa maneira de ser” (FREITAS, 2007, p.172).
Assim, o meu pensamento divaga e espreita o tempo histórico de onde palavras tão significativas foram escritas. Palavras que transportam consigo o comprometimento com a sua leitura. Como também instiga conhecer o que nutria esse homem, que nos convoca insistentemente para o ato responsável com e para outro, que não aceita uma compreensão passiva dos enunciados, que nos convoca à réplica a todo instante? O Marxismo? A Filosofia? A Literatura? O Círculo de amigos?
Se o propósito desse texto foi buscar apoio em sua teoria para a discussão do processo de aprendizagem do professor face às tecnologias digitais, posso dizer que seus escritos são “prenhes” de respostas mas também avolumam perguntas: Pode se afirmar que a aprendizagem de um programa/software é constituída de elementos dialógicos? A formação do professor nessa área, vem promovendo uma compreensão ativa da linguagem digital e constituindo elos que se conectam com a experiência do educador em sua prática pedagógica? O aprender é concebido como um evento único, um ato responsivo que entrecruza vozes em busca de uma compreensão ativa e criadora das tecnologias digitais na prática pedagógica?
Assim, agrego as discussões de Bakhtin à construção do meu referencial teórico e congrego com ele na compreensão ativa do processo de aprendizagem do adulto professor. Entendendo que se compreendo, aprendo e o ato de compreender é um evento único, insubstituível e o sujeito bakhtiniano é um sujeito ativo convocado a dar uma resposta, a se posicionar na e para a vida. A aprendizagem está na base da nossa constituição como seres humanos, como partícipes das diversas dimensões da atividade humana. Ela ocorre em diversas situações e com diferentes motivos, pois estamos sempre aprendendo, nos apropriando da cultura e integrando-a na dinâmica dialética das complexas relações humanas.
Por fim, não podemos nos esquecer de que “quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado” (BAKHTIN, 2003,p. 319). Esse será meu próximo novelo a ser desatado na tese de doutorado e essa é a versão final desse texto, o que não significa um fim às discussões iniciadas nesse texto.
Referências
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Bakhtin foi um autor que transitou com muita responsividade, acrescentando elementos transgredientes2 em diversos campos do conhecimento como a linguagem, literatura, arte e a filosofia, e por isso, permite muitas entradas como afirma Freitas (2007). Necessito porém, demarcar meu lugar no diálogo com ele. Pedagoga que sou e pesquisadora das tecnologias digitais3 na formação dos professores, impõe de imediato o questionamento: o que me move a buscar interlocução com esse autor que não abordou a educação, não conviveu com as potencialidades das tecnologias digitais como se vê na atualidade e, muito menos escreveu sobre aprendizagem do adulto professor?
Trago inquietações da minha prática como formadoras de futuros docentes. Se por um lado, as exigências postas pela sociedade contemporânea, permeada de tecnologias, estão pautando uma nova dinâmica para a atuação docente e a apropriação dos conhecimentos nessa área, por outro, as políticas públicas ainda não conseguiram incluir totalmente as escolas no mundo digital e, nos processos formativos de docentes, tais questões não encontram muito espaço. Assim, o professor tem dificuldade de conceber as tecnologias digitais como condição de produção de conhecimento e, paradoxalmente, sintonizar-se com a cultura digital dos alunos.
Não pretendo endossar as defesas calorosas de que todos os professores precisam aprender e usar na sua prática pedagógica as tecnologias digitais na mesma velocidade com que essas surgem. Considero porém, os processos formativos nessa área como uma arena pulsante de perguntas, uma vez que ainda não temos muito claro como o docente, um sujeito singular, que não conviveu e nem interagiu com as tecnologias digitais, mas marcado por sua historicidade, possa avançar em seus conhecimentos nessa área e mediar os processos de aprendizagem junto aos educandos. Tal realidade me leva a questionar: Que formação sobre computador/internet dará conta de articular o instrumental e o pedagógico? Será o uso das tecnologias na prática pedagógica uma utopia? Os cursos voltados para os professores nessa área consideram como os professores em formação aprendem?
Desse modo, falar de formação de professor é também falar de processo de aprendizagem dos sujeitos em idade adulta que aprendem para ensinar e ensinam aprendendo em seu contínuo processo de formação. Aprender, buscar e conhecer faz parte da nossa educação permanente como seres abertos aos acontecimentos da existência. Esse é o pano de fundo no qual me aproximo das idéias de Bakhtin. Intenciono entrelaçar seu conceito de compreensão ativa na discussão do processo de aprendizagem do adulto professor. Entendo, que o processo de formação de professores envolve experiências singulares e coletivas de aprendizagem e que é indispensável que o sujeito tenha uma compreensão ativa, para fazer corresponder com sua contrapalavra.
O interessante é que na roda da vida, ou melhor, na roda das teorias, existe uma pluralidade de concepções sobre ato de aprender que evidenciam díspares formas de olhar o sujeito e sua relação com os objetos de conhecimento. O que fica evidente é que em qualquer definição a palavra aprendizagem estará carregada de pressupostos político-ideológicos, relacionados com uma determinada visão de homem, sociedade e de conhecimento. Embora Bakhtin não tenha abordado a questão da aprendizagem em sua teoria, seu conceito de compreensão ativa me ancora a dirigir um olhar bakhtiniano para os processos formativos dos professores diante do aprendizado das tecnologias digitais.
Mas antes da roda dessa conversar iniciar tenho que fazer uma pequena parada: “abrir um link” para situar o leitor de qual perspectiva elaboro a minha réplica nessa discussão. Parto do entendimento de que, a compreensão ativa abordada por Bakhtin, encontra eco na defesa de Vygotsky de que existe aprendizagem quando internalizamos o que foi vivenciado na relação com o outro. Essa internalização – reconstrução interna de uma operação externa - irá acontecer por meio das significações construídas no processo de interação sujeito e objeto de conhecimento, no qual o sujeito confere um sentido único, singular e pessoal ao que está aprendendo.
Vygotsky (2000, 2007), enfatiza a extrema importância do aprender em nossa vida, pois o aprendizado é primordial para o desenvolvimento das funções mentais superiores. Desse modo, o aspecto característico da psicologia humana é a internalização das atividades socialmente enraizadas e desenvolvidas historicamente. O que demonstra a relevância de se discutir o processo de aprendizagem do adulto professor na contemporaneidade afim de compreender as relações dos sujeitos envolvidos em sua múltiplas interações com os diversos objetos de conhecimento que são necessários serem apreendidos ao longo da vida.
Após esse link para esclarecimentos, convido o leitor a espreitar e acompanhar os vestígios dos nós encontrados no traçado das linhas que desatam meu pensar e compreenda o sentido que dou às palavras de Bakhtin nessa discussão. Assim, percorro as produções do autor sobre a compreensão ativa e a entrecruzo com a aprendizagem da linguagem digital nesse debate. E por último, ao tecer as considerações finais, agrego e congrego com o autor minha compreensão ativa na discussão da aprendizagem do adulto face às tecnologias digitais.
Desatando nó dá compreensão ativa nas obras de Bakhtin e seu Círculo
Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida.
José Saramago (A Caverna)
José Saramago (A Caverna)
Começar pelo princípio! Ao meu ver Saramago está correto quando afirma que começar pelo princípio não é percorrer caminhos sem ter que desatar nós e estrangulamentos. E se o leitor me permite acrescentar outra frase de efeito, diria que isso também é impossível de ocorrer nos novelos da escrita. Na escolha das palavras, elas vem e vão, bailando de um lado a outro. Embaraçam, entrelaçam, são escritas e reescritas ao toque dos dedos sobre o teclado do computador. Posso dizer que no desenrolar dos novelos da escrita na contemporaneidade, transitamos por vários arquivos, modificando e salvando as últimas atualizações até encontrar o fio da versão final. Alívio? Certeza? Segurança? Pode ser que sim ou não. Ao abrir novamente o arquivo “armazenado” e acompanhar sua leitura na tela, sou aguçada a mudar uma coisa aqui, outra ali, e por aí vai a difícil escolha das palavras que permitem ao leitor puxar o fio e ter em suas mãos uma linha lisa e contínua do meu pensamento.
Começar por qual princípio para desenrolar os novelos da densa produção teórica de Mikhail Bakhtin em busca de respostas à questões que nos são postas na atualidade? Como diz Machado (2007) “quem lê Bakhtin procura sintetizar o que ele generalizou”[...]”os textos bakhtinianos são na verdade hipertextos: cada unidade é um nó potencializador de muitas questões”[...] “os leitores de Bakhtin já operam hipertextualmente para proceder à leitura: um escrito nunca é continuação do outro, mas sempre uma expansão de algum aspecto de outros”(p. 226-227).
O autor russo exercitou em seu próprio percurso uma escrita não-linear, mas dialógica. Seus conceitos são apreendidos numa imensa rede, sendo difícil traçar seu pensamento em uma linha reta. Ao penetrar no seu universo teórico, fico a pensar que era seu propósito deixar por conta do leitor o acabamento de sua obra. Sua idéia de acabamento não é encontrar a ponta final do novelo, mas que o leitor com sua contapalavra, desate os nós encontrados pelo caminho com uma compreensão ativa. Esse movimento é próprio do conceito de diálogo na perspectiva bakthiniana que convoca à palavra, à arena do debate, à instauração da dúvida, às incertezas dos enunciados da língua situada social e historicamente.
Para dar conta de tentar desatar o nó da compreensão ativa nas produções de Bakhtin e seu Círculo4 percorri algumas obras. Sendo assim, inicio a caminhada pela obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicada em 1934 e assinada por Volochinov, no qual ele enfatiza que o “processo de decodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos”. (p. 93). Ainda nada é dito sobre a compreensão ativa, surge apenas a distinção entre compreender e identificar um signo, mas já posso considerar o fio condutor de toda a discussão em torno do conceito que virá.
No quinto capítulo dessa obra, o autor emprega o termo compreensão passiva para tecer críticas à forma dos filólogos-linguístas da corrente do objetivismo abstrato analisarem a linguagem. Essa compreensão passiva resultava em uma falsa teoria da compreensão que para ele estava na base dos métodos de interpretação linguísticas dos textos, quanto em toda a semiologia européia.
Essa é uma das críticas às duas correntes do pensamento filosófico linguístico da sua época, denominadas por ele de objetivismo abstrato e subjetivismo idealista. Essas críticas emergem na discussão da filosofia da linguagem do Círculo. Concordo com Brait (2005), de que é preciso fazer justiça à elegância e à pertinência com que Bakhtin/Volochinov (1999) empreende sua crítica a essas correntes ao formalizar seu próprio conceito de linguagem. Sua refutação a essas idéias centra-se no seguinte argumento
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (p. 123)
Esse é o pano de fundo em que emerge o conceito de compreensão ativa nas obras do Círculo: sua concepção de linguagem. Se Bakhtin e seu Círculo valorizam as enunciações, o diálogo, a situação concreta da língua e seu uso no contexto sócio-histórico na interação verbal, de certo que uma teoria apoiada numa compreensão passiva não fornecia os meios para abordar de forma essencial o problema da verdadeira substância da língua.
O autor aborda com mais clareza a questão da compreensão nessa obra, ao tratar da distinção entre tema e significado. Para Bakhtin/Volochinov (1999) essa distinção só é visível se for conectada com o problema da compreensão. Isso porque “Qualquer tipo genuíno de compreensão deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema. (p. 131). Primeiramente, convém explicitar que Bakhtin/Volochinov (1999) utiliza o termo tema para falar do sentido de uma enunciação completa. O sentido é ativo, vivo e complexo que vai se adaptando às condições históricas no contexto que as enunciações são realizadas. Já o significado da palavra que está descrito em um dicionário, por exemplo, não tem essa mesma vivacidade e dinamismo. É mais estável e consolidado, mas também sofre mudanças no deslocar de um contexto apreciativo para outro. Por fim, sentido e significado são constitutivos do processo de significar.
Apesar do autor informar que a discussão sobre compreensão ativa será breve, ele evidencia o papel imprescindível do conceito na discussão de sentido e significado, como também esclarece o que é compreensão ativa: “uma forma de diálogo; ela esta para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (p. 132).
Compreender então, é ter uma reposta a enunciar. Se não compreendo uma palavra ela não se torna um signo para mim, ela é vista como um sinal. Se não compreendo um ícone na tela não interajo com ele e por isso, torna-se impossível estabelecer o diálogo. Como o diálogo é alimentado por perguntas e respostas, entendo que para transitar com desenvoltura ao lidar no computador/internet é preciso que os sujeitos construam sentidos na apreensão da linguagem digital, em busca da compreensão e não apenas de identificação de trilhas, rotas e ícones para serem mecanicamente seguidos.
Ao observar o resultado de muitas pesquisas sobre a formação dos professores para uso das tecnologias na educação, vejo que ainda falta o “germe de uma resposta”. Muitos dos relatos expõem uma difícil compreensão dos professores dessa linguagem. Como encontrar meu lugar nesse universo povoado de signos que exige uma reposta para iniciar ou continuar o diálogo como afirma Bakhtin/Volochinov?
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mas profunda e real é a nossa compreensão (1999,p. 132)
Para compreender o tema da enunciação do outro e encontrar meu lugar correspondente nessa interlocução, é indispensável ter uma compreensão ativa, para fazer corresponder com uma contrapalavra. Quanto mais temos palavras nossas correspondentes às palavras que ouvimos e lemos de outras pessoas, mais profundas e reais são nossas condições de aprendizagem. Acredito ser difícil para os professores terem suas contrapalavras na apreensão da linguagem digital por conta de muitas “familiarizações relâmpagos” a quem são submetidos para aprenderem a utilizar as tecnologias digitais voltadas para aquisição de conhecimentos técnicos com o computador/internet. Porém, com o fim do curso, muitas vezes finda também a relação do professor com a tecnologia, pois os docentes retornam inseguros com a incorporação das mesmas às suas práticas.
Seguindo a compreensão ativa em outras produções do autor, extraio diversos fragmentos que enriquecem o debate. Assim, na obra Estética da Criação Verbal (2003) percorro vários textos no qual a questão da compreensão é retomada, dando novas pistas para exercitar a minha própria compreensão desse conceito.
O autor destaca no texto “Gêneros do discurso”, escrito entre 1952 e 1953, que na compreensão do significado linguístico do discurso, o ouvinte ocupa uma ativa posição responsiva ao completar ou não o discurso, concordar com ele, aplicá-lo e essa posição responsiva do ouvinte se configura ao longo do processo de audição e compreensão e às vezes literalmente após a primeira palavra se proferida. É nesse contexto que
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo5 seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta (BAKHTIN, 2003, p. 271)
Da mesma maneira que na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, compreender é ter o embrião de uma resposta, aqui, a compreensão é “prenhe” de resposta. Além disso, o autor nos esclarece que o próprio falante espera do ouvinte uma concordância, uma objeção, uma ação da sua voz não como uma dublagem do que ouviu, mas com uma compreensão ativamente responsiva. O ouvinte com uma compreensão passiva não é um participante da real comunicação discursiva, porque a palavra avança à procura de compreensão responsiva.
Como a perspectiva de análise de Bakhitn é a literatura, a discussão da compreensão está também relacionada a esse campo. Desse modo, no texto “Problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, o autor afirma que ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender a consciência do outro e de seu mundo. A verdadeira essência do texto se desenvolve nas fronteiras de duas consciências, de dois sujeitos. Está afirmação advém da questão da alteridade na concepção teórica de Bakhtin, na sua defesa de que é o outro que nos constitui. Assim, o eu só existe a partir do diálogo com outros eus.
A discussão da constituição do eu a partir do outro está fortemente presente em “Autor e o personagem na atividade estética” (2003) no qual assevera que uma única consciência não pode dar sentido ao próprio eu e que precisa da colaboração dos outros para poder definir-se e ser autor de si mesmo. Para Bakhtin (2003) as nossas próprias palavras são um resultado de incorporação de palavras alheias aos nossos enunciados.
A questão das duas consciências nas fronteiras de um texto também pode ser melhor visualizada em sua distinção entre explicação e compreensão:
Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos dialógicos (além do retórico-formal). Em certa medida, a compreensão sempre é dialógica. (BAKHTIN, 2003, p. 316)
Bakhtin (2003) reafirma que a compreensão é sempre dialógica por isso se distingue da explicação que é desprovida de elementos dialógicos por envolver apenas um sujeito. Se o ato de compreender envolve elementos dialógicos, para se compreender um enunciado é preciso considerar a alternância dos sujeitos e a capacidade de definir uma resposta. Em suas palavras, “ A responsividade de princípio de qualquer compreensão” (BAKHTIN, 2003, p.317).
A palavra responsividade impele a participação do sujeito no ato de compreender, ou seja seu envolvimento, compromisso e disposição em participar do diálogo com um autor, uma obra, um texto, ou qualquer objeto do conhecimento. Trago um trecho do autor da obra Filosofia do Ato que alarga minha compreensão do termo responsividade
Compreender um objeto é compreender meu dever em relação a ele ( atitude ou posição que devo tomar em relação a ele), isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-vento único, e isso pressupõe minha participação responsável, e não uma abstração de mim mesmo. É apenas de dentro da minha participação que o Ser pode ser compreendido como um evento, mas esse momento de participação única não existe dentro do conteúdo, visto em abstração do ato como ação responsável. ( BAKHTIN, 1993, p. 35)
Suas palavras me levam a pensar que não tenho como delegar ao outro a responsabilidade de compreender, assim como não posso delegar a responsabilidade da minha aprendizagem. Para Bakhtin (1993) o que me move a ter atos e ações responsáveis na vida, não é o conteúdo de uma obrigação, mas minha assinatura sob ela. O que está em jogo é minha decisão de assumir uma obrigação realizando o ato de subscrever-reconhecendo nesse ato a ação responsável. Minha participação no Ser é de maneira única e irrepetível e meu lugar não pode ser tomado por ninguém mais.
Com as afirmações anteriores, Bakhtin (1993) introduz o fantástico conceito do “meu não-álibi no Ser”. Conceito que traduz o compromisso de cada um com atos responsáveis perante a vida, sendo algo que eu afirmo de modo único e singular. Porque o que implica o meu “não-álibi no Ser” é minha singularidade e insubstituibilidade dentro do todo do Ser.
Tais reflexões recaem muito bem na entrada das tecnologias digitais na escola. Quais são os sentidos e significados do professor aprender a usar esses recursos? Sintonizar com a cultura digital dos seus alunos? Modernizar sua prática pedagógica? Colaborar na produção do conhecimento de seus alunos? Essas questões precisam estar acordadas diante de cursos que são ofertados aos professores, para que eles não participem como uma abstração de si mesmos sem um envolvimento no evento, no ato de aprender.
No texto “Apontamentos de 1970 - 1971” ainda na obra Estética da Criação Verbal ele acrescenta o termo empatia para abordar a compreensão ativa. Para ele a compreensão não pode ser interpretada como empatia e o individuo se colocar no lugar do outro e perder seu próprio lugar. Essa discussão também surge em “O autor e o personagem na atividade estética”, no qual o autor define o que está chamando de compreensão simpática
Costuma-se denominar compreensão simpática esse meu ativismo6 que vem de fora e visa ao mundo interior do outro. Cumpre salientar o caráter absolutamente proveitoso, excedente, produtivo e enriquecedor da compreensão simpática. Em sua interpretação habitualmente ingênua-realista, a palavra “compreensão' gera equívocos. Não se trata de maneira nenhuma, de uma representação exata e passiva, de uma duplicação do vivenciamento de outro indivíduo em mim (aliás, tal duplicado é impossível), mas da transferência do vivenciamento para um plano axiológico inteiramente distinto, para uma nova categoria de valorização e enformação. (BAKHTIN, 2003, p. 94)
A compreensão simpática é concebida como o emprego da minha posição arquitetônica na existência fora da vida interior do outro. Nessa perspectiva, o sentido de compreensão está imbricado com o conceito de exotopia do autor7. Colocar-me no lugar do outro não significa em modo algum tomar seu lugar, mas ao retornar ao meu próprio lugar trazer comigo um excedente de visão que permite visualizar o outro por um ângulo diferente. É o ollhar exotópico do professor para os entre lugares das tecnologias digitais na sociedade e sua prática pedagógica que o levará a refletir até que ponto essas tecnologias traram possibilidades outras para seu oficio de ensinar.
Nesse mesmo texto, há uma interessante discussão acerca dos elementos repetíveis e não repetíveis no processo de compreender que é muito relevante para minha discussão da aprendizagem do adulto da linguagem digital. Bakhtin (2003) pontua que no ato vivo da compreensão o reconhecimento do repetível e a descoberta devem estar fundidos indissoluvelmente. Isso porque “a diretriz exclusiva do conhecimento, na busca apenas do conhecido ( do que já existiu) não permite descobrir o novo ( isto é, o principal, a totalidade não-repetível) (BAKHTIN, p. 378).
O que se repete e o que é novo no processo de aprendizagem das tecnologias digitais? Será que os professores conseguem fazer conexões dessa natureza a cada novo ambiente que passam a explorar? Relaciono tais reflexões com a abordagem do autor sobre a capacidade criadora da compreensão.
A criação poderosa e profunda em muitos aspectos é inconsciente e polissêmica. Na compreensão ela é completada pela consciência e descobre-se a diversidade dos sentidos. Assim a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora. A compreensão criadora continua a criação, multiplica a riqueza artística da humanidade. A co-criação dos sujeitos da compreensão” (BAKHTIN, 2003, p. 378)
Co-criamos na medida que compreendemos e acrescentamos nosso olhar, nossas palavras ao texto do outro. Na medida que compreendo, eu aprendo de fato, eu tenho a possibilidade de criar e recriar. Com uma compreensão ativa e criadora no diálogo com o computador/internet descobre-se, desbrava-se novos sentidos, novas rotas, novos modos de ensinar e aprender. Lembrando que há uma demarcada diferença entre usuário e autor de uma tecnologia, pois o professor no meu caso, não cria o programa/software mas com ele tem a chance de realizar inúmeras criações, atualizando de maneira singular e original, reinterpretando-o na produção de novos sentidos.
Bakhtin (2003) ainda no texto Apontamentos de 1970-1971, entrelaça o conceito de compreensão com o de avaliação, vistos como simultâneos e constituintes de um ato único integral. Como assim? Para ele o sujeito que compreende não pode excluir a possibilidade de mudança e até mesmo a renúncia dos seus pontos de vistas. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta que resulta em mudança mútua e enriquecimento. Ao meu ver a avaliação aqui não é vista como medida do que compreendi, mas uma reflexão num verdadeiro diálogo com meu discurso interior que possibilita até mesmo uma renúnncia das minhas idéias anteriormente definidas. Nessa luta, o ato de concordar e discordar estimula e aprofunda a compreensão.
O último texto percorrido em minha leitura foi “Metodologia das Ciências Humanas” publicado em 1974. 8A questão da compreensão aparece nesse texto quando o autor discute que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. A compreensão é vista como uma visão de sentido vivo da vivência na expressão, ou seja “uma visão do fenômeno internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido” e não “não uma visão fenomênica”(p. 396). Nesse trecho me parece que o autor faz uma crítica a fenomenologia pelo fato de olhar o fenômeno externamente. Ponzio (2008) lembra que apesar de associar-se inicialmente à fenomenologia de Husserl, sua abordagem é substancialmente diferente. Essa questão merece maior aprofundamento que não será possível abordar nesse texto. A leitura que faço é de que para ter uma visão do fenômeno precisamos olhar para além da sua aparência externa.
Trago também outro trecho desse mesmo texto sobre a compreensão ativa, que na verdade sugere ser uma questão a ser expandida futuramente
Compreensão. Desmembramento da compreensão. Em atos particulares. Na compreensão efetiva, real e concreta, eles se fundem indissoluvelmente em um processo único de compreensão, porém cada ato particular tem uma autonomia semântica (de conteúdo) ideal e pode se destacado do ato empírico concreto. 1) a percepção psicofisiológica do signo físico(palavra, cor, forma espacial). 2) Seu reconhecimento ( como conhecido, desconhecido). A compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante). 4) a compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância) A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade”
Após ler e reler esse trecho vejo que a compreensão ativa desde a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, está estreitamente vinculada à discussão de sentido e significado em Bakhtin. Considerando a aprendizagem do professor da linguagem digital, ousadamente me atrevo a desmembrar a compreensão ativa em atos particulares como sugeriu Bakhtin (2003) e como fez Ponzio (2008) em seu texto “Signo e sentido em Bakhtin”. Portanto, os atos individuais da compreensão real e concreta iniciam-se com a percepção do sujeito do ato físico de um ícone na tela, uma compreensão ainda limitada, para em seguida ocorrer o seu reconhecimento. Aqui sou instigada a pensar no que me é familiar nesse signo, ou seja, o que tem de repetível. A compreensão do significado do contexto específico, me reporta às relações anteriores e também às atuais dos sujeitos com as tecnologias digitais. Todos esses atos estão imbricados na compreensão dialógica ativa por meio do contraste e ou do consenso, no diálogo travado pelo professor em formação, na exploração dos signos presentes nessa linguagem. Como diz Machado (2005) “a compreensão é uma atividade específica do universo semiótico em que se situa o homem, sua linguagem, suas idéias” (p. 135).
Dessa discussão, posso afirmar que a compreensão ativa está embricada no processo de interiorização do sujeito de um signo, ou seja na forma como ele internaliza algo externo e o torna seu, criando e recriando, aprendendo de fato e não por meio de memorização mecânica no ato de aprender.
Se para Bakhtin (2003) é o autor completador que dá o acabamento à obra de arte, acredito que é o professor, um sujeito histórico cultural, que dará acabamento ao que vê em sua imersão no computador/internet com seus diversos usos e significados. O que implica pensar que os cursos de formação dos professores não podem se basear em meros treinamentos centrados apenas no que é externo ao sujeito na relação com o objeto de conhecimento. O professor em formação precisa fazer o movimento dialético do desenvolvimento externo – interno, convertendo para si, em uma nova aprendizagem.
Como desatar o novelo dessa escrita?
Javier Villafâne busca em vão a palavra que deixou escapar bem quando ia pronunciá-la. Onde terá ido essa palavra, que ele tinha na ponta da língua?
Haverá algum lugar onde se juntem as palavras que não quiseram ficar? Um reino de palavras perdidas? As palavras que você deixou escapar, onde estarão à sua espera?
Eduardo Galeano (Palavras andantes)
Eduardo Galeano (Palavras andantes)
Tenho as mesmas indagações de Eduardo Galeano ao escrever sobre e com Bakhtin. Ao mesmo tempo que sua valorização do enunciado me conforta, no decorrer da escrita, muitas das palavras que gostaria de dizer, escapuliram. Talvez elas estejam me esperando em outro texto, em um próximo encontro com Bakhtin ou em uma próxima roda de conversa bakhtiniana.
Fato é que fico sem saber como desatar o novelo dessa escrita. Penso que posso tomar emprestadas as palavras de Freitas de que “a interlocução com Bakhtin produz um efeito transformador: é impossível resistir às suas provocações. Não se penetra no mundo teórico de Bakhtin sem que se opere mudanças em nossa maneira de ser” (FREITAS, 2007, p.172).
Assim, o meu pensamento divaga e espreita o tempo histórico de onde palavras tão significativas foram escritas. Palavras que transportam consigo o comprometimento com a sua leitura. Como também instiga conhecer o que nutria esse homem, que nos convoca insistentemente para o ato responsável com e para outro, que não aceita uma compreensão passiva dos enunciados, que nos convoca à réplica a todo instante? O Marxismo? A Filosofia? A Literatura? O Círculo de amigos?
Se o propósito desse texto foi buscar apoio em sua teoria para a discussão do processo de aprendizagem do professor face às tecnologias digitais, posso dizer que seus escritos são “prenhes” de respostas mas também avolumam perguntas: Pode se afirmar que a aprendizagem de um programa/software é constituída de elementos dialógicos? A formação do professor nessa área, vem promovendo uma compreensão ativa da linguagem digital e constituindo elos que se conectam com a experiência do educador em sua prática pedagógica? O aprender é concebido como um evento único, um ato responsivo que entrecruza vozes em busca de uma compreensão ativa e criadora das tecnologias digitais na prática pedagógica?
Assim, agrego as discussões de Bakhtin à construção do meu referencial teórico e congrego com ele na compreensão ativa do processo de aprendizagem do adulto professor. Entendendo que se compreendo, aprendo e o ato de compreender é um evento único, insubstituível e o sujeito bakhtiniano é um sujeito ativo convocado a dar uma resposta, a se posicionar na e para a vida. A aprendizagem está na base da nossa constituição como seres humanos, como partícipes das diversas dimensões da atividade humana. Ela ocorre em diversas situações e com diferentes motivos, pois estamos sempre aprendendo, nos apropriando da cultura e integrando-a na dinâmica dialética das complexas relações humanas.
Por fim, não podemos nos esquecer de que “quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado” (BAKHTIN, 2003,p. 319). Esse será meu próximo novelo a ser desatado na tese de doutorado e essa é a versão final desse texto, o que não significa um fim às discussões iniciadas nesse texto.
Referências
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BAKHTIN, Mikhail. O autor e o personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal; introdução e tardução do russo: Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal; introdução e tradução do russo: Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy or the Act. (tradução para uso didático e acadêmico de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza).Austin: University of Texas. Press, 1993
BAKHTIN, Mikhail.Apontamentos de 1970-1971. Mikhail. Estética da criação verbal; introdução e tradução do russo: Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail.Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal; introdução e tradução do russo: Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: martins Fontes, 2003.
BONILLA, Maria Helena Silveira. Escola aprendente: para além da sociedade da informação. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Bakhtin e a psicologia. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de (Orgs.) Diálogos com Bakhtin . 4ª ed. Curitiba: Editora UFPR, 2007 .
MACHADO, Irene A . Os Gêneros e a ciência dialógica do texto. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de (Orgs.) Diálogos com Bakhtin . 4ª ed. Curitiba: Editora UFPR, 2007
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.
TEZZA, Cristóvão. Sobre o autor e o herói – um roteiro de leitura. In: FARACO, Carlos Alberto;TEZZA Cristóvão; CASTRO, Gilberto (Orgs). Diálogos com Bakhtin. 3ª ed. Curitiba: ed. UFPR, 2001
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