Os textos foram publicados por ordem de chegada.
Para ler os textos sobre temas específicos, clique no tema, no menu ao lado.
Para ler os textos de autores específicos, clique no nome do autor, no menu ao lado, mais abaixo.
Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

Prática de leitura: compreensão responsiva de Bakhtin na construção do leitor ativo

Shirlei Neves dos Santos
Rute Almeida




1. Introdução


No que diz respeito ao ato de ler, há (mais ou menos) 25 anos, seu aprendizado no espaço escolar dizia respeito à codificação e à decodificação das formas da língua, ligadas a necessidades estritamente escolares. As discussões e preocupações acadêmicas sobre o tema, já a partir da década de 80, apontavam que o fato de as pessoas reconhecerem o código da língua escrita e saberem decodificá-lo em exercícios específicos de uso escolar (alfabetizadas) não lhes garantia necessariamente o saber usar esse conhecimento em práticas sociais significativas e aplicadas em contextos extra-escolares. São essas considerações que fazem deslocar o eixo de ensino da língua da forma em si para o uso e reflexão.


2. Letramento


A noção de letramento pretende recobrir as práticas de ensino de leitura e de escrita que vão além do simples ato de ler e escrever conhecido como alfabetização. Ser letrado significa que o aluno sabe fazer uso do ato de ler e escrever em situações sociais concretas e específicas, muitas vezes necessárias e exigidas pela sociedade ao sujeito que se posiciona como cidadão que participa e co-constrói as relações sociais, políticas e econômicas como também culturais, por isso, significativas.


Além disso, o contexto atual exige que se ultrapasse o modelo de letramento que trata o sistema de leitura e escrita enquanto produto acabado do qual o aluno precisa apenas apropriar-se – o modelo autônomo cognitivo (Street, [1984] in Paes de Barros, 2005). É preciso considerar que as atividades de leitura e de escrita estão intrinsecamente relacionadas com o contexto social e cultural nos quais os sujeitos estão inseridos – o modelo ideológico social. Nessa perspectiva, o sentido do que se lê está intrinsecamente ligado a esses lugares e as práticas aí recorrentes.


Partindo dessas considerações, podemos afirmar que há vários letramentos e agências, mas a escola continua sendo a mais importante. Então, é ela que deveria ampliar e buscar abrigar as mais variadas formas de letrar de que seria possível de forma a contemplar todas as práticas de uma coletividade pertinentes à constituição de um cidadão crítico e participativo. Entretanto, o que se percebe, salientam Soares (1998) e Rojo (2004), ambas in (Paes de Barros, 2005), é que os sujeitos escolarizados, muitas vezes, não conseguem dar conta de práticas letradas fora da escola e, por outro lado, sujeitos não escolarizados conseguem atender às demandas sociais de letramento de forma restrita, porque limitados pela ausência de letramento escolar.


Uma das agências mais importante, não se pode negar, é a esfera artística. Aqui consideramos especificamente a canção, porque, conforme Padilha (2006) é uma “forma de enunciar especial” enquanto manifestação artística presente na cultura de todos os povos em todas as épocas e espaços. Ela sempre esteve estritamente ligada às manifestações populares desde longa data. Segundo a mesma autora (p. 85), “trata-se de um gênero que proporciona, além do prazer artístico manifesto, muitas possibilidades de interface verbal seja em termos de sentido, seja em termos de apreensão dos caracteres prosódicos de uma língua” (ibidem).


Ainda de acordo com Padilha (2006, p. 104), desde os anos 70, a letra de canção faz parte das práticas de leitura na sala de aula, respondendo aos apelos de se apresentar, submeter o aluno a uma diversidade textual. Questiona, entretanto, como se vem dando a leitura desse gênero no espaço escolar. A autora adverte que há limites e possibilidades no tratamento escolar da letra de canção e propõe que essa leitura se dê numa dimensão discursiva “dando relevo à compreensão e reflexão sobre os espaços de produção, circulação e recepção, bem como sobre o diálogo do material linguístico com as condições de produção” (ibidem). Restringir-nos-emos a esse último aspecto tendo em vista que nosso principal objetivo é mostrar como se dá a inter-relação locutor-objeto-interlocutor por meio da comunicação verbal enquanto fenômeno da vida real.


A noção de compreensão responsiva ativa de Bakhtin pode trazer muitas contribuições às propostas pedagógicas de ensino de leitura no espaço escolar. Possibilita a orientação de nossas ações no que diz respeito ao modo como conduzimos o seu ensino na prática de sala de aula. Bakhtin assevera que é a compreensão ativa da palavra em seu sentido particular que possibilita a comunicação entre os interlocutores: “todo ato de compreensão é uma resposta, na medida em que introduz o objeto da compreensão em um novo contexto...” (Bakhtin/Volochinov, 1929: 94). Sua visão de linguagem enquanto ato de realização concreta, pela interação entre os sujeitos falantes, a nosso ver, responde adequadamente às necessidades atuais de ensino de leitura, pela escola.


3. Compreensão responsiva ativa


Conceber que a dinâmica da linguagem e o seu sentido ocorrem pela interação verbal entre os sujeitos do discurso pressupõe que ambos tenham conhecimento da situação social na qual se insere a comunicação sócio-verbal, partilhem de um horizonte espacial comum e conheçam o material pelo qual a comunicação é concretizada. Tomando essas considerações no que diz respeito ao ensino de leitura, nas palavras de Faraco (2000), “o professor precisa reconstruir os determinantes contextuais – contexto histórico imediato ou distante, situação do autor nesse contexto (seus valores), influências estilísticas e/ou ideológicas do autor - geradores do texto”. A compreensão desse todo discursivo leva a um ato de resposta “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (Bakhtin, [1952-53] 2003: 272). Sendo assim:


“o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente...e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência de enunciados anteriores...– aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já os supõe conhecido do ouvinte” (Bakhtin, [1952-53] 2003: 272).


É assim que Bakhtin constrói a noção de sujeito enquanto um ser ativo, eticamente comprometido e responsável por suas ações e decisões e responsivo ao outro. O sujeito bakhtiniano não é passivo às relações sociais como também não age de maneira absolutamente individual. O sujeito é um ser profundamente constituído nas teias sociais, e é nessa inter-relação com o social que toma uma atitude responsiva em relação à vida, ao mundo, a si mesmo e ao outro. Citando Bakhtin “(in: Souza, 1999: 29) ‘tudo neste mundo adquire significação, sentido, valor somente em correlação com o homem – com isso que é humano’ (1919-1921: 61)”. Esta relação apreciativa eu – outro se dá na comunicação social intermediada pela comunicação verbal realizada por meio de enunciados concretos.


Bakhtin ([1952-53] 2003: 296) define “enunciado concreto como um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo” e seus limites são determinados pela alternância dos sujeitos falantes. A noção de “alternância dos sujeitos falantes” remete-nos à questão de que o outro não pode ser considerado como um destinatário passivo que se limita a compreender o enunciado do sujeito locutor: “... esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não são ouvintes passivos mas participantes ativos da comunicação discursiva” (Bakhtin [1952-53] 2003: 301).


A compreensão ativa sempre ocorre seja pela réplica no diálogo cotidiano seja pela resposta silenciosa de efeito retardado mais próprio aos diálogos da comunicação cultural mais complexa. Ao compreender o sentido discursivo do ato linguístico o interlocutor “concorda ou discorda (total ou parcialmente) completa-o, aplica-o, prepara para usá-lo” (ibidem). A compreensão só se torna possível porque os falantes partilham o conhecimento comum do contexto sócio-histórico e ideológico. E isso engendra o ato de resposta ativa, fazendo com que cada enunciado concreto realizado em uma esfera de atividade humana específica torne-se um elo na comunicação discursiva. Uma resposta a outros enunciados que o antecederam e espera uma resposta dos que o precederem – num diálogo ininterrupto.


4. Leitura da letra de canção “Roda-viva”


A letra de música “Roda-viva” foi escrita por Chico Buarque em 1967 e lançada ao público em LP em 1968. Circulou antes como parte da trilha sonora da peça teatral de mesmo nome, de autoria do mesmo autor, encenada pelo Grupo Oficina, também pertencente ao mesmo. A numeração dos versos foi feita por nós para facilitar os apontamentos na análise. Apresentamos a letra a seguir:


Roda-viva

1 Tem dias que a gente se sente

2 Como quem partiu ou morreu

3 A gente estancou de repente

4 Ou foi o mundo então que cresceu

5 A gente quer ter voz ativa

6 No nosso destino mandar

7 Mais eis que chega a roda-viva

8 E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

1 A gente vai contra a corrente

2 Até não poder resistir

3 Na volta do barco é que sente

4 O quanto deixou de cumprir

5 Faz tempo que a gente cultiva

6 A mais linda roseira que há

7 Mais eis que chega a roda-viva

8 E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

1 A roda da saia, a mulata

2 Não quer mais rodar, não Senhor

3 Não posso fazer serenata

4 A roda de samba acabou

5 A gente toma a iniciativa

6 Viola na rua, a cantar

7 Mais eis que chega a roda-viva

8 E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

1 O samba, a viola, a roseira

2 Um dia a fogueira queimou

3 Foi tudo ilusão passageira

4 Que a brisa primeira levou

5 No peito a saudade cativa

6 Faz força pro tempo parar

7 Mais eis que chega a roda-viva

8 E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração*



O contexto sócio-histórico de surgimento dessa letra é a instauração, no Brasil, do regime militar iniciado em 1964. Em uma conjuntura maior, o mundo vive a época das polarizações sociopolítica e econômica, a partir das quais os países são chamados a se posicionarem numa ordem bipolar: neoliberais ou comunistas, capitalistas ou socialistas, tendo como representantes antagônicos os norte-americanos e os soviéticos.


Nos anos 50, alguns movimentos sociais começam a se organizar apontando para uma simpatia desses grupos para com as causas comunistas, aproximando o Brasil do eixo soviético. É em reação a essa simpatia e ameaça comunista que surge o regime militar como forma de preservar, de qualquer maneira, os interesses da elite conservadora brasileira e, por extensão, os interesses norte-americanos. É nesse sentido dicotômico que as classes posicionam-se na luta e na defesa de um ou outro princípio de acordo com seus interesses e valores. A elite conservadora deseja a ordem secular, já os movimentos sociais emergentes clamam por mudanças.


É nesse embate de interesses ideológicos que vemos a letra em questão. E o contexto de produção no qual se insere autoriza tal visão. A peça da qual “Roda-viva” funcionou como trilha sonora foi dirigida por Celso Martinez, diretor que, juntamente com Chico e outros intelectuais, pregavam, veladamente, a volta da democracia. O conteúdo da peça teatral estava marcado por apologias à democracia e à liberdade de expressão, atitudes tidas pelos representantes do regime como socialistas e subversivos da ordem estabelecida. Em uma das apresentações da peça Roda-viva, em julho de 1968, integrantes armados do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, destruíram parte dele e intimidaram os atores. A peça foi proibida pela censura pouco depois do acontecimento (Napolitano, 2004).


Um rápido passar pela biografia do autor também contribui para nos auxiliarmos a olhar seu posicionamento. Chico Buarque é filho de pais intelectuais, seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, recebia frequentemente pessoas intelectuais a casa com as quais Chico convivera, dentre elas Vinícius de Morais. O autor recebeu através dos estudos no colégio Santa Cruz de São Paulo, na cidade de São Paulo, orientação social em sua formação. No contexto sócio-histórico da ditadura militar, Chico Buarque cria arte engajada com propostas sociais e contra o regime. Através de suas músicas de protesto expressava sua esperança numa sociedade livre e democrática. Sendo, por isso, um alvo predileto dos censores da ditadura (ididem, 2001).


Orientados pela proposição bakhtiniana da noção de compreensão responsiva ativa de que esta adquire formas várias de acordo com o campo de atividade humana onde se realiza o enunciado concreto, como também às funções que aí adquire e as condições comunicativas em que se realiza, esse enunciado concreto, situado na esfera artística, a reflete e a refrata pela forma composicional, o estilo e o tom que lhe é impresso. Entretanto, por estar direcionado à vida, o conteúdo de “Roda-viva” ultrapassa a esfera artística, sendo orientado por motivações da esfera sociopolítica.


Começamos então pelo título da letra “Roda-viva”, o qual é bastante sugestivo. Prestamos atenção às duas acepções que registra o Dicionário Houaiss para darmos seguimento a nossa reflexão: Roda-viva [Datação 1899 c.f]. S.f. 1. Movimento incessante; atividade, azáfama 2. Grande atrapalhação; barafunda, confusão. No contexto em que aparece na letra da canção podemos considerar as duas acepções. Na letra, ela expressa potencialmente uma ideia de movimento que provoca confusão e, além disso, quando fazemos a leitura atenta da letra, percebemos que ela recobre ou representa por meio da metáfora uma realidade/um objeto em que, na perspectiva do autor, representa a estagnação e a morte.


É interessante apontar que, na época da instauração do regime, atuava uma unidade da Policia Militar denominada Rota, a qual, devido aos atos rotineiros de truculência, tortura e a assassinatos, tornou-se símbolo da violência institucionalizada. Provavelmente o autor joga com as palavras através da substituição do fonema [d] por [t] criando a metáfora Roda que remete à Rota, a ação dessa unidade policial.


A organização formal em estrofes interrompidas sempre pelo mesmo estribilho com pequena variação de palavras, intercalados pelo refrão, torna o enunciado compacto e entrecortado, que remete a noção do movimento interno presente no enunciado de ação quebra de ação. No decorrer dos versos das estrofes há um movimento de ação por parte de determinados sujeitos “a gente” que é interrompido a partir do v. 7º de cada estrofe “Mais eis que...” até o refrão “leva pra lá” pela ação da roda-viva.


O contexto sócio-histórico de surgimento da letra e o posicionamento social do autor autorizam-nos a inferir que aquilo de que trata a letra de música é a ação de resistência ao/negação do regime militar – a “Roda-viva”. É um momento de radicalização política, no qual as pessoas [a gente] são impedidas de manifestar seus desejos e decidir seus destinos. Os representantes do regime defendiam essa forma de governar como meio de “manutenção da ordem social”, contra os “subversivos comunistas”.


Entretanto, pelo tom expressivo do enunciado, percebemos que o autor discorda profundamente do posicionamento dos representantes do regime. O autor compreende o discurso do outro e com ele polemiza, ainda que de forma codificada. Como bem afirma Bakhtin, “toda compreensão plena real é ativamente responsiva e fase inicial preparatória para a resposta” ([1952-53] 2003: 272). Sendo assim, o autor responde ativamente ao discurso dos representantes do regime discordando dele e, por sua vez, espera uma compreensão responsiva ativa dos seus interlocutores, com os quais contam como parceiros no discurso [a gente], expressão repetida seis vezes, em três das quatro estrofes. Nesse sentido, o autor considera que seus interlocutores estão posicionados em relação a esse objeto no mesmo lugar que o dele.


Um vídeo veiculado pelo provedor de acesso www.youtube.com., quando da apresentação da música, no Festival de Música da TV Record no ano de 1967, interpretada por Chico Buarque e o Grupo MPB4, mostra a compreensão responsiva dos interlocutores de profundo compartilhamento [as pessoas cantam num misto de saudade e alegria, aplaudem], colocando-se, assim como esperava o autor, como parceiros, companheiros naquele dizer, é como se o olhar expressivo do autor sobre aquele objeto também fosse o deles. Assim, podemos inferir que a recepção positiva com que é recebida pelos interlocutores é a resposta de que eles, conhecedores da situação porque nela inserida, juntam-se ao autor num gesto de concordância com o que diz.


O estilo do enunciado “Roda-viva” é condicionado pela esfera de sua produção – a esfera artística como também pela orientação do autor sobre o objeto do seu enunciado e sobre os seus interlocutores. A escolha de metáforas – figura da qual lança mão para representar o objeto de forma codificada, a qual só pode ser descodificada por aqueles que compartilham da situação de produção do seu enunciado – é própria da linguagem artístico-literária. O autor usa toda a simbologia da linguagem literária, envolvendo de referências ingênuas o objeto de seu enunciado – brinquedos de criança – mas que no fundo aponta para algo muito sério e que o incomoda.


Reflete também a orientação do autor em relação ao objeto do seu dizer – o regime. Referir-se ao objeto de forma codificada, cifrada é também condição para evitar possíveis censuras e até mesmo tortura, pois viviam sob o ato AI-5, sob o qual a tortura foi legalizada. Assim é que roda-viva, palavra de um campo semântico usualmente estranho à ditadura, passa a representar esta última; da mesma forma os versos “Faz tempo que a gente cultiva/A mais linda roseira que há” pode estar referindo-se à democracia que supõe a liberdade de seus cidadãos de ação e decisão, a qual foi carregada pra lá, objeto de desejo e a saudade da qual alimenta a luta contra o regime.


Nesse sentido, o autor não é um falante passivo que se restringe a compreender. O autor tem consciência de sua situação e de suas condições: sabe que vive sob um regime sociopolítico que o impede de agir e expressar suas ideias e opiniões. E a tomada de consciência, como afirma Bakhtin, por um sujeito socialmente organizado, “pode tomar a forma do protesto” (1929: 115), assim, responde ativamente: “A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar”, isto é, nega as pretensões dos enunciados do Outro ao qual se opõe, resistindo a eles: “A gente vai contra a corrente/Até não poder resistir”, ainda que a luta tenha na tessitura de força do regime, pouca dimensão: “Na volta do barco é que sente/O quanto deixou de cumprir”. O sujeito posiciona-se sempre ativamente em relação ao outro.


O tom da resposta compreensiva ativa de discordância/negação das ações do regime ditatorial deixa transparecer nas marcas lexicais e gramaticais selecionadas pelo autor. O tom de dor e tristeza é marcado pelas palavras (partiu, morreu v. 2 I), (ilusão, saudade, vs. 2 IV); a estagnação (estancou, v. 2 I), (deixou de cumprir, v. 4 II,), especialmente marcada pelo estribilho repetido no final de todas as estrofes (Mais eis que chega a roda-viva/E carrega...pra lá, (v.s 7 e 8)). Esse estribilho introduz o movimento contrário a ação de resistência do autor e, por vir no final de cada estrofe, a ação do movimento representada no estribilho é mais forte à ação do autor, apontando para a sensação de desolamento em relação à situação.


O protesto é ativo, mas, talvez, “não seguro de si” (Bakhtin, 1929: 116). Conjeturamos que isso ocorra devido ao fato de ter consciência que um determinado grupo social domina ou faz prevalecer, inclusive pela força, seus valores e interesses em detrimento de todos os outros grupos sociais que compõem a sociedade, faça com que o autor reaja ativamente, mas não seguro, pois está confuso e atrapalhado pelo turbilhão da “Roda-viva”. Ainda assim, ele insiste na resistência e na negação do regime, marcas deixadas pelas escolhas lexicais negativas (a gente vai contra (v. 1 II)), (não poder (v. 2 II)), (não quer...não Senhor (v. 2 III)), (não posso (v. 3 III)); e escolhas lexicais de ação (quer...voz ativa (v. 5 I), toma a iniciativa (v. 5 III)); e, a “saudade cativa”, (v. 5 IV) alimenta a luta e o confronto de resistência ao regime/seus representantes.


5. Conclusão


Assim, a “roda-viva” contrariamente do que se espera enquanto movimento dinâmico, vivo, provoca no autor uma visão contraditória – é movimento de estagnação e morte. Isso se deva, talvez, ao fato de a profusão de ações (perseguições, censuras), por parte do regime, provoque uma confusão na percepção da realidade, por consequência, confusão mental que o autor vê como distúrbios sentimentais. Ainda que o movimento da roda-viva, do regime torne confusos os sentimentos do autor: “O tempo rodou num instante/Nas voltas do meu coração [refrão]”, podemos concluir nossa análise afirmando que, ainda nas condições mais radicais e difíceis de ação e expressão, o sujeito sempre será um respondente ativo em relação aos outros. Ao realizar esse movimento de leitura de um enunciado específico, pretendemos ter contribuído para as reflexões em torno do ensino de leitura numa perspectiva lingüístico-discursiva na formação do leitor ativo.





Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1929 (trad. ing. p/ port. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 5ª ed., São Paulo: Hucitec, 1990).

BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochinov). Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal, 1979 (trad. port. Paulo Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2006).

FARACO, Carlos Alberto e CASTRO, Gilberto. Por uma teoria lingüística que fundamente o ensino de língua materna (ou de como apenas um pouquinho de gramática nem sempre é bom). Educar em Revista. Curitiba: PR (15), s.p. 2000.

LUNGARETTI, Celso. Rota continua exautando a ditadura militar. Retirado de: www.direitos.org.br, acessado em: 17.09.2009.

MPB4 e Chico Buarque. Roda-viva. Disponível em: www.paixãoeromance.com/60decada. acessado em agosto 2009.

NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955/1968). Estudos Históricos. Rio de Janeiro 928), 2001, p. 103-124.

___________________ A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância poética (1968/1981). Revista Brasileira de História. São Paulo (v. 24, n.º 47), 2004, p. 103-126.

PAES DE BARROS, Cláudia G. Letramento Digital – considerações sobre a leitura e a escrita na Internet. Polifonia. Cuiabá: EdUFMT (12), p. 133-156, 2006.

PADILHA, Simone J. Limites e possibilidades do ensino-aprendizagem do gênero canção no ensino fundamental: alguns elementos para reflexão. Polifonia. Cuiabá: EdUFMT (12), p. 83-106.

Poesia ponto.com. Retirado: www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/poesias, acessado em agosto 2009.

SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFCH/USP, 1999.

Vídeo - MPB4 e Chico Buarque. Roda-viva: www.youtube.com, acessado em agosto de 2009.




* Álbum: Chico Buarque de Hollanda (1968). Disponível em www.tvcultura.com.br, acessado em agosto de 2009.

Nenhum comentário: