Juliana de Sousa Pinto; Alexandre Costa
Se a Igreja é o local e veículo do sagrado, então ficamos mais próximos de Deus
pelo simples fato de pertencer e participar de sua vida.
Taylor
1. Encontro da prática religiosa com a prática acadêmica: definição do objeto
A prática da religião católica sempre me acompanhou, recebi a religião como um legado deixado pela minha família e desde bem pequena me dediquei aos serviços paroquiais mais diversos, entre eles, a catequese, o ministério da palavra e o ministério da eucaristia; para tanto, participei ao longo de muitos anos de formações específicas ministradas por religiosos, religiosas, leigos e padres que tinham como objetivo preparar o leigo para a função à qual foi designado. O que nunca me ocorreu, no entanto, foi a possibilidade de encontro dessas práticas religiosas com as práticas acadêmicas e ainda menos o atravessamento de uma em relação à outra, sobretudo, no tocante às práticas acadêmicas da faculdade de Letras3. No tempo apropriado, como diz o Eclesiastes 3, 1-8, fora proposto aos alunos da minha turma que redigissem um artigo de final de disciplina que contemplasse um discurso em específico, nessa oportunidade, o discurso religioso, sobremaneira, o católico, me deixava bastante intrigada, o mesmo ocorria com Marta, amiga e colega de curso, porém, ela se interessava bastante pelo discurso espírita, pois, se tratava da prática religiosa à qual ela sempre se dedicou, a doutrina kardecista.
Embora não soubéssemos o que escrever, embora não soubéssemos o que poderia, de fato, vir a se tornar o objeto desse artigo, eu e Marta, procuramos o professor Alexandre, responsável pela disciplina, que após longa conversa nos ajudou a definir as linhas gerais do artigo a mim naquele momento coube contemplar uma descrição do folheto litúrgico, espécie de roteiro da missa destinado aos fiéis para que acompanhem os ritos da celebração, uma primeira tentativa de recorte do objeto homilia e o caráter responsivo que lhe é inerente característica que a mim, naquela oportunidade, era muito visível; à Marta coube a descrição da estrutura da sessão espírita com especial ênfase para a noção de polifonia. Com aquele artigo, no entanto, no que toca a mim, não se deu o recorte, mas a definição do objeto e o cruzamento das práticas católicas e acadêmicas por mim desenvolvidas. O objetivo maior ao escrever o referido artigo, era o de conseguir uma boa nota e, por conseguinte a aprovação4, mas não me detive nesse ponto; primeiro pelo interesse que me causou o estudo da homilia e depois pelas possibilidades de pesquisa que o campo religioso nos oferecia, a mim, a Marta e ao professor Alexandre.
As leituras e pesquisas foram se desenvolvendo, mais estudantes e mais professores se interessavam pela proposta de estudo do discurso religioso e assim foi organizado o Nous: grupo de estudos críticos e aplicados ao discurso religioso, sob a liderança do professor Alexandre Costa e do professor Wanderley Geraldi, que conta, além da pesquisa acerca da homilia, com uma pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras e sobre as práticas religiosas em relação ao demônio, todas sob a orientação do professor Alexandre. Quanto à homilia, o primeiro passo que se fez necessário dar foi o de buscar a sua aparente origem, embora o termo origem não me pareça muito adequado, mas era importante buscar na tradição discursiva católica a delimitação dessa homilia, sua estrutura e o tratamento que a Igreja Católica dava a ela. O primeiro documento que, de fato, possibilitou essa delimitação foi um documento do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM) de 1983 que se intitula A Homilia, cujas linhas gerais reproduzo a seguir.
2. Tradição e estrutura constitutiva da homilia
Antes de Jesus, a homilia fixara suas raízes no povo bíblico de Israel. Antes da vinda do Messias e no seu tempo, terminada a leitura do texto bíblico na sinagoga, fazia-se a homilia que sempre se encerrava com o qaddis, oração aramaica da qual Jesus, provavelmente, teria tomado as duas primeiras petições do Pai-nosso. No evangelho de Lucas, capítulo quatro, versículos de dezesseis a trinta, o evangelista documenta a primeira homilia cristã. Jesus entrou na sinagoga, em dia de sábado, segundo o seu costume e levantou-se para ler, ora, lhe fora dado o livro do profeta Isaías, então, escolheu o capítulo sessenta e um, intitulado a boa nova5que anunciava a chegada do Messias; terminada a leitura sentou-se e começou a falar-lhes. Nesta homilia, o próprio Jesus fora pregador e protagonista.
Em João, capítulo seis, versículos de vinte dois a cinqüenta e nove, Jesus faz um longo comentário sobre o pão da vida usando textos do Antigo Testamento para abordar a páscoa e sua aplicação ao presente dos ouvintes e a situação conjuntural, ou seja, a tradição pascal judia como antecipação da páscoa cristã. Outro exemplo de homilia feita por Jesus, encontra-se em Lucas capítulo vinte quatro, versículos de treze a trinta e cinco, trata-se da caminhada de Emaús. Durante a caminhada para a aldeia, Cristo explicou aos dois discípulos o que fora dito sobre si a começar por Moisés, percorrendo todos os profetas em todas as escrituras. O comentário homilético era recorrente, também, entre os apóstolos, em Atos, capítulo vinte, versículo de sete a doze, encontra-se o relato a cerca de um discurso de Paulo realizado durante uma reunião de caráter claramente litúrgico.
Etimologicamente, ‘homilia’ vem da palavra grega homilia que significa ‘reunião’, ‘conversa familiar’, derivando-se do verbo grego homilien, de mesmo significado. Retoricamente, com a palavra grega se designa aquele gênero de oratória mais simples e familiar em oposição ao “discurso”. Uma homilia se distingue de um sermão pelo fato de que a primeira era exposta de modo familiar pelos pastores e era uma espécie de conversa e a assistência entre eles; o sermão, ao contrário, era feito a partir do púlpito de forma mais solene, era composto segundo as regras da retórica e da arte oratória. Liturgicamente, a homilia é parte integrante da liturgia da palavra. Note-se que até antes da reforma litúrgica conciliar dizia-se que, depois do Evangelho, a liturgia era interrompida para que os fiéis ouvissem a homilia.
Ocorre que em 1960, o Papa João XXIII, ao se pronunciar, determinou que depois da leitura do evangelho, aos domingos e dias de festa, fosse dirigida ao povo uma breve homilia, e que esta não devia sobrepor-se à celebração da missa, mas que a missa deveria ser interrompida enquanto era pronunciado o comentário homilético (CELAM, 1983); o terreno para a reabilitação da liturgia, e junto com ela a homilia, estava preparado. Em 1963, o Concílio Vaticano II promulga a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, o documento anunciou “uma reforma litúrgica geral” (SC 21) com o objetivo de dar primordial importância à Escritura e que esta fosse explicada durante a homilia (SC 24), para tanto uma parte bem maior das Escrituras deveria ser lida dentro do espaço litúrgico reservado a cada ano (SC 51).
Compreende-se espaço litúrgico a partir da definição de liturgia (‘leitourgia’ do grego ‘laos’, ‘povo’, e érgon’, ‘obra’) é o oficio de louvação do “povo de Deus” e a celebração de “seu mistério no Cristo”. Liturgia é a escuta da experiência original do mistério de Deus em Jesus e em suas testemunhas primeiras, ou seja, os autores do Novo Testamento e suas comunidades. Na homilia deve existir uma tensão fecunda entre a atualidade da vida comunitária e pessoal de hoje e o passado fundador que é re-presentado. Há um caminho que vai da liturgia à vida e um caminho que vai da vida à liturgia. Toda homilia pauta-se em determinado trecho do evangelho previamente selecionado pela Igreja Católica de acordo com o ciclo trienal da liturgia que comporta os anos A, B e C.
Em princípio, as leituras são diferentes em cada um dos três anos, porém, nas festas maiores ocorre que todas as leituras são idênticas nos três anos do ciclo, é o caso de festas como o natal, a páscoa e o pentecostes. A liturgia deve percorrer um caminho que vai da espera do messias à realidade final tomando como fio condutor os evangelhos de Mateus, ano A; de Marcos, ano B; e de Lucas, ano C. A cada ano do ciclo é conferido um acento próprio determinado pelo evangelista. No ano A, o acento está na pessoa de Jesus que proclama Deus como pai e se coloca à sua disposição. O evangelho de Marcos, ano B, é o modelo querigmático, é o primeiro anúncio, proclama que Jesus é o Messias. Lucas, ano C, é o evangelho da graça e da misericórdia de Deus. Jesus anuncia a libertação aos que no mundo ocupam o último lugar. Cada ano litúrgico se divide em dois tempos denominados “tempos fortes”, são eles o período natalino e o período pascal, alternados com dois momentos do tempo comum (KONINGS, 2004). Pois bem, consideradas as linhas gerais de delimitação da homilia e sua tradição discursiva, passemos a considerar as noções de compreensão e dialogia bakhtinianas e sua aplicação ao estudo da homilia.
3. A noção de compreensão e a perspectiva dialógica bakhtinianas: preceitos teóricos para o estudo da homilia
Uma das maiores contribuições de Bakhtin para o desenvolvimento desse estudo sobre a homilia, sem dúvida, é o capítulo em que se trabalha a questão sobre os gêneros discursivos que se encontra na obra Estética da Criação Verbal, a começar pela consideração das esferas da atividade humana e sua relação com a utilização da língua, pois, esta utilização se realiza em forma de enunciados concretos e únicos, produzidos pelos integrantes de uma ou outra dessas esferas. Cada enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada delas através de seu conteúdo, de seu estilo verbal e de sua construção composicional; e cada esfera ao utilizar-se da língua “elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”, os gêneros do discurso. O referido autor pontua que a variedade dos gêneros do discurso e a variedade das atividades humanas são infinitas e inesgotáveis porque cada esfera de atividade comporta um repertório que vai ampliando-se e diferenciando-se, assim como a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Para designar uma esfera ou uma instância de produção discursiva, Marcuschi (2002), em retomada da discussão da noção de ‘gênero discursivo’6, refere-se ao conceito de “domínio discursivo”. Segundo ele, os domínios discursivos não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos, como o discurso religioso. A atividade religiosa não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo uma prática discursiva dentro da qual podemos identificar um conjunto de gêneros que lhe são próprios: jaculatórias, novenas, ladainhas etc.
O gênero discursivo homilia, por conseguinte, é parte das práticas religiosas católicas e de seus efeitos constitutivos sobre o modo de agir dos fiéis, suas identidades, seus conhecimentos e crenças. Especialmente se considerarmos as postulações de Bakhtin (2000) sobre a relação entre gêneros discursivos ‘primários’ (mais simples) e ‘secundários’ (mais complexos). Em seu processo de formação, os gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários que se constituem na comunicação verbal espontânea. A compreensão de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa, ou seja, toda compreensão é prenhe de resposta. A compreensão responsiva ativa pode se realizar diretamente como um ato ou pode permanecer como responsiva muda (ou compreensão responsiva de ação retardada), porém, mais cedo ou mais tarde, o que foi ouvido e compreendido encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte, nesse caso, no fiel católico. A compreensão responsiva é a fase inicial para uma resposta que o locutor, o então padre ou ministro extraordinário da palavra, postula. Este espera do ouvinte uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução.
A compreensão responsiva, portanto, pressupõe a ação de sujeitos, no tocante à homilia temos um sujeito ao qual Geraldi7 chamou “o sujeito respondente”, segundo o referido linguista “toda ação do sujeito é sempre uma resposta a uma compreensão de outra ação e que provocará, por seu turno, novamente uma resposta baseada numa compreensão que sobre ela for construída pelo outro”, dessa forma, temos a noção bakhtiniana de responsividade e, por sua vez, uma noção de sujeito respondente que se funda na contraposição entre o eu e o outro numa direção dupla que se orienta tanto para o passado quanto para o futuro numa ação presente. Geraldi salienta, no entanto, que este sujeito é sempre incompleto, “é sempre de uma incompletude fundante”, pois, somente a relação com o outro pode lhe dar existência. Com essa exposição breve da minha pesquisa e da memória do grupo Nous, objetivava somente preparar terreno para uma possível conversa futura, pois, há muito mais o que discutir bakhtinianamente sobre a homilia.
Referência:
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
CELAM. A Homilia. São Paulo: Edições paulinas, 1983.
KONINGS, Johan. Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis (anos A B C). 3ª ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2004.
SC Sacrosanctum Concilium. Constituição sobre a sagrada liturgia. 7ª ed. São Paulo, Paulinas, 2006.
3 Embora pudesse contribuir muito para a nossa conversa, prefiro desconsiderar a prática acadêmica teológica para dar maior ênfase às práticas acadêmicas inseridas no campo das Letras, sobretudo, por se tratar de práticas nas quais me encontro inserida.
4 Aliás, objetivo que todo bom aluno almeja atingir, comigo e a Marta não seria diferente.
5 Bíblia Sagrada, São Paulo: Editora Ave-Maria, 2004.
6 Denominada pelo autor de gênero de texto.
7 GERALDI, Wanderley. Sobre a questão do sujeito.
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