Luiz Marcelo Brandão Carneiro
Olá a todos! No ano passado, estive também no congresso, e aí mesmo tive um esclarecimento muito importante com relação ao meu projeto de mestrado. Tratava-se da uma possibilidade de aplicação das teorias de Bakhtin sobre Watchmen, a história em quadrinhos que estudo, que tem se mostrado profundamente polifônica e dialógica. O que ofereço aqui é um trecho do meu trabalho de mestrado, que coloca Bakhtin sobre meu objeto de estudo.
POLIFONIA E DIALOGISMO DE BAKHTIN
Este estudo também apontou a necessidade de se realizar o exame da narrativa à luz da polifonia e do dialogismo bakhtinianos, uma vez que a obra estudada se mostra, como se verá, essencialmente polifônica e dialógica.
Um quadrinho deve ser convocado nesse momento para, isoladamente, funcionar como um quadro-resumo (dentro da “tradição watchmeniana” de constituição de quadros-resumo, a ser evidenciada em tópico de mesmo nome) da presença da polifonia e, de forma mais direta e evidenciante, do dialogismo. No entanto, uma pequena contextualização faz-se necessária. Trata-se do mesmo quadrinho sobre o qual se discorreu no tópico “A desconstrução do arquétipo dos heróis”, naquela ocasião falandose sobre a fala condenatória de Rorschach: o quadrinho 5 da página 10 do capítulo II (ver anexo XX), no qual vê-se a imagem dos vigilantes mascarados reunidos, após serem convocados e ciceroneados pelo Capitão Metropolis, com vistas à formação de uma equipe de vigilantes.

Na narrativa relativa à esta reunião (que se encontra toda na narrativa em flashback - CII,P9,Q5 a CII,P11,Q7), o Capitão Metropolis, que logo desaparecerá da trama, dá as boas vindas a todos e inicia sua exposição acerca da necessidade da formação de um grupo de “crimebusters/combatentes do crime” (CII, P9, Q5) ou de “masked adventurers/aventureiros mascarados” (CII, P10, Q1). A discussão, que só terá um fim na página 11, quadrinho 7, é em si bastante polifônica e dialógica, e tem seu ápice na imagem da página 10, quadrinho 5 (ver anexo XX).
Na imagem supracitada, na perspectiva do leitor, o Comediante, de costas para a cena de fundo, ocupa o primeiro plano, na direita do quadrinho, vistos apenas uma pequena parte de sua cintura, uma parte de seu tórax e seu braço direito e mão direita (mão que segura, sobre um jornal, um charuto), o que deixa as demais personagens em segundo plano. O corpo do Comediante e a fumaça do charuto, que sobe até o balão de fala de Rorschach, dividem o quadrinho em três porções facilmente reconhecíveis, no segundo plano.
E as imagens do segundo plano são díades postas em pauta, bem dentro do espírito da polifonia e do dialogismo bakhtinianos. Sempre tomando a perspectiva do leitor como referência, partindo-se da esquerda para a direita, a seguinte seqüência de personagens é vista: no separador dialógico da esquerda (borda esquerda do quadrinho/lado esquerdo da fumaça do charuto), o Dr. Manhattan e Janey Slater, sua primeira companheira; no separador dialógico do centro (lado direito da fumaça do charuto/lado esquerdo do braço do Comediante), Rorschach e o Capitão Metropolis; no separador dialógico da direita (lado direito do braço do Comediante/borda direita do quadrinho), o segundo Coruja e Ozzymandias.
Há dois balões de fala: o primeiro que se lê, de acordo com o roteiro tradicional de leitura (de cima para baixo, da esquerda para a direita) é de Rorschach (localizado entre o lado esquerdo do braço do Comediante e a borda esquerda do quadrinho, tomando quase toda a parte superior do separador dialógico do centro e pouco mais da metade da parte superior do separador dialógico da esquerda); e a seguir o de Ozzymandias (que toma quase toda a parte inferior do separador dialógico da direita).
Esse ordenamento realizado no parágrafo anterior pela divisão das personagens nos separadores dialógicos, não é gratuito: a fumaça do charuto do Comediante isola, à sua esquerda, o Dr. Manhattan e Janey Slater, que estão tendo uma discussão que se saberá promovida pelo interesse despertado no Dr. Manhattan por Laurie Juspeczyk (a mais nova integrante da equipe; na ocasião com apenas 16 anos de idade); entre o lado direito da fumaça e o braço do Comediante, ocupando uma porção quase central da cena, vê-se Rorschach e o Capitão Metropolis: Rorschach, tomando sua posição de protagonista, coloca, via sua fala, uma perspectiva com relação à formação do grupo de vigilantes mascarados que será combatida por Ozzymandias.; e, sob o triângulo formado pelo vão entre o braço e o tórax do Comediante, estão o Coruja e Ozzymandias, o Coruja estático qual estátua, evocando os predicados de atenção e de observância que lhe competem na história e na tradição ornitológica; e Ozzymandias, sentado, com a face mascarada tensa, aponta o dedo indicador direito para Rorschach, como lhe convém sua posição de antagonista.
Voltando à análise esquerda-direita, é importante notar que os dois separadores físicos das díades dialógicas citadas acima são, mesmo que parte e anexo de um mesmo personagem, sumariamente opostos e excludentes em termos físicos: o braço do Comediante é o braço de um militar, de um herói de guerra, com músculos definidos e firmes, evidenciados na penumbra pela pouca luz que sobre ele se deposita; a mão do Comediante segura o charuto cerrada, firmemente depositada sobre um jornal em uma mesa: o charuto está aceso, consumida já mais que sua metade, e dele sobe a fumaça que se constituirá em uma barreira tênue, intoxicante e a princípio vaporosa, de imprevisível traçado, mas que marca a cena com uma trajetória ascendente pontuada e curvilínea, que funciona como elemento de separação tanto quanto o poderoso braço do personagem.
O corpo do Comediante, como se disse, está na penumbra. A única luz que sobre ele se deposita vem da direita da cena e ilumina apenas parcialmente o interior de seu braço, o que contribui para evidenciar sua força e musculatura. Imediatamente abaixo do corpo do Comediante estão o Coruja e Ozzymandias. O Coruja está um pouco atrás de Ozzymandias, o que configura na cena um terceiro plano. Ozzymandias, então, ocupa a posição central do separador dialógico da direita. O dedo em riste que aponta para Rorschach, como se notou, é característica de seu antagonismo, mas é importante também notar que, por conta das cores de seu manto/fantasia, Ozzymandias parece, em comparação com os outros personagens, mais iluminado, algo solar, com o brilho dourado de seu pálio e de sua tiara-auréola parecendo evidenciar-lhe predicados de maior relevância e de esclarecimento, predicados que ele mesmo não se cansa de evidenciar na obra e que são também reiterados por outras fontes.
Tomando-se a possibilidade de constituição de um terceiro plano na cena, como foi evidenciado no parágrafo anterior, no tocante ao separador dialógico da direita, no qual Ozzymandias aparece um pouco mais destacado, nota-se que, também nos outros dois separadores dialógicos da cena, um personagem é evidenciado. No do centro, Rorschach (como demanda sua condição de protagonista); e no da esquerda, o Dr. Manhattan (como o Comediante, de costas para a cena).
Assim, nos terceiros planos dos separadores dialógicos encontram-se Janey Slater, o Capitão Metropolis e o Coruja. No Capítulo III, o leitor saberá que Janey Slater foi abandonada pelo Dr. Manhattan, após três anos de relação, por conta do envolvimento dele com Laurie Juspeckzyk (CIII,P6,Q1). Depois da frustrada reunião de convocação da equipe (CII,P9,Q5 a CII,P11,Q7), o Capitão Metropolis não mais aparecerá na história, nem mesmo na narrativa em flashback.
O Coruja, como convém sua herança ornitológica e seus predicados desenvolvidos na história, apenas observa a cena. Ele tem a face calma, tranqüila, ponderada. O Capitão Metropolis tem a face transtornada e seu olhar parece mesmo algo vesgo, como se quisesse olhar, ao mesmo tempo, individualmente para Rorschach e para Ozzymandias. Janey Slater olha apenas para o Dr. Manahattan e, como ele, não se importa com o restante da cena que se desenrola. Seu olhar, se vazasse o corpo do Dr. Manhattan, se dirigiria para fora do quadrinho, o que é marcante, se pensarmos que dirigir o olhar para fora do quadrinho é dirigi-lo para fora do círculo dialógico, portanto (círculo dialógico do qual em breve não mais participará).
Nos segundos planos dos separadores dialógicos, díades dialógicas que serão bem estabelecidas na história são marcadas: em momentos variados da história, cada um dos personagens nos segundos planos (Dr. Manhattan, Rorschach e Ozzymandias) se oporá aos outros dois. Ozzymandias é o antagonista do protagonista Rorschach, mas também embaterá com o Dr. Manhattan; Rorschach, no centro, é o maior rival de Ozzymandias e se oporá também ao Dr. Manhattan, sendo inclusive morto por ele, no último capítulo (CXII,P24,Q4); e o Dr. Manhattan, como já se estabeleceu, rivaliza em algumas situações tanto com Rorschach e como com Ozzymandias.
O Coruja ocupa um posto peculiar no terceiro plano: é o único personagem neste nicho da hierarquia dialógica do quadrinho que não desaparecerá da trama ou perderá sua importância. O Coruja ganhará mesmo destaque especial, particularmente no Capítulo VII, no qual suas virtudes de observância, calma e ponderação se tornarão evidentes. E é interessante notar que ele também se diagladará, de certa forma, com o Dr. Manhattan: Daniel Dreiberg, sua identidade secreta, apaixona-se por Laurie Juspeckzyk, a segunda companheira do Dr. Manhattan, e, no já referido Capítulo VII, o “capítulo do Coruja”, vai formar com ela um casal que perdurará até o final da história, inclusive com a aprovação do Dr. Manhattan (CXII,P25,Q1 a Q7).
Postadas essas considerações acerca do quadrinho 5 da página 10 do Capítulo II como uma espécie de reumo representativo da questão da polifonia e do dialogismo em Watchmen, é primordial fazer notar que a voz de Rorschach faz-se ouvir um pouco mais do que as outras. Afinal de contas, é a voz do protagonista. Ela é ouvida em seus discursos diretos, em discursos indiretos, em respostas ao seu discurso e em seu Diário, cujos trechos se espalham, na forma de boxes de discurso que evocam a figuratividade de papéis rasgados, por toda a narrativa (e que, no “final que não termina” da obra, poderá aparecer publicado no tablóide sensacionalista “New Frontiersman” – ver tópico “As citações textuais dos finais dos capítulos/títulos”, box “Contexto narrativo do capítulo”).
A voz/discurso de Rorschach opõe-se à voz de Veidt/Ozzymandias, principalmente desde o momento em que se descobre que Ozzymandias é, na verdade, o “grande vilão”, e por conseqüência o antagonista. A voz do Comediante é a voz da paródia, da pilhéria, da desconstrução da aura pudica que esconde a entranha de uma sociedade apodrecida (por isso o Comediante aparece de costas para a cena na qual um abobalhado Capitão metropolis tenta estabelcer uma equipe de “crimebusters/combatentes do crime” (CII,P9,Q5). Ao esbravejar do Comediante se opõe a voz de Daniel Dreiberg/Coruja, homem de valores sólidos. O Coruja é a voz dos estabeleceres, dos solidificares, do tentar manter o que há de bom e, até mesmo, a voz dos lugares-comuns do “homem-comum”.
Portanto, como diz Bakhtin: “o problema gira em torno da última dialogicidade, ou seja, da dialogicidade do último todo” (Bakhtin, 1997: pág 17). Dentro da perspectiva da polifonia, o dialogismo em Watchmen é o construtor da narrativa. São as presenças, as ações e os discursos das várias personagens e, em especial, das personagens principais, que edificam o enredo, provendo-o de motivos, de causalidades, de embates discursivo-narrativos que fornecem material para a arquitetura mosaical por sobre a qual se desenvolve a história. Bakhtin diz que “a vontade artística da polifonia é a vontade da combinação de muitas vontades” (Bakhtin, 1997: pág.21), “que as vozes, aqui, permanecem independentes” (Bakhtin, 1997: pág.21). Completando esse recorte com uma citação que o teórico russo faz de Otto Kaus, “a multiplicidade de posições ideológicas equicompetentes e a extrema heterogeneidade da matéria constituem a peculiaridade fundamental” (Bakhtin, 1997: pág.17) de Watchmen.
Olá a todos! No ano passado, estive também no congresso, e aí mesmo tive um esclarecimento muito importante com relação ao meu projeto de mestrado. Tratava-se da uma possibilidade de aplicação das teorias de Bakhtin sobre Watchmen, a história em quadrinhos que estudo, que tem se mostrado profundamente polifônica e dialógica. O que ofereço aqui é um trecho do meu trabalho de mestrado, que coloca Bakhtin sobre meu objeto de estudo.
POLIFONIA E DIALOGISMO DE BAKHTIN
Este estudo também apontou a necessidade de se realizar o exame da narrativa à luz da polifonia e do dialogismo bakhtinianos, uma vez que a obra estudada se mostra, como se verá, essencialmente polifônica e dialógica.
Um quadrinho deve ser convocado nesse momento para, isoladamente, funcionar como um quadro-resumo (dentro da “tradição watchmeniana” de constituição de quadros-resumo, a ser evidenciada em tópico de mesmo nome) da presença da polifonia e, de forma mais direta e evidenciante, do dialogismo. No entanto, uma pequena contextualização faz-se necessária. Trata-se do mesmo quadrinho sobre o qual se discorreu no tópico “A desconstrução do arquétipo dos heróis”, naquela ocasião falandose sobre a fala condenatória de Rorschach: o quadrinho 5 da página 10 do capítulo II (ver anexo XX), no qual vê-se a imagem dos vigilantes mascarados reunidos, após serem convocados e ciceroneados pelo Capitão Metropolis, com vistas à formação de uma equipe de vigilantes.

Na narrativa relativa à esta reunião (que se encontra toda na narrativa em flashback - CII,P9,Q5 a CII,P11,Q7), o Capitão Metropolis, que logo desaparecerá da trama, dá as boas vindas a todos e inicia sua exposição acerca da necessidade da formação de um grupo de “crimebusters/combatentes do crime” (CII, P9, Q5) ou de “masked adventurers/aventureiros mascarados” (CII, P10, Q1). A discussão, que só terá um fim na página 11, quadrinho 7, é em si bastante polifônica e dialógica, e tem seu ápice na imagem da página 10, quadrinho 5 (ver anexo XX).
Na imagem supracitada, na perspectiva do leitor, o Comediante, de costas para a cena de fundo, ocupa o primeiro plano, na direita do quadrinho, vistos apenas uma pequena parte de sua cintura, uma parte de seu tórax e seu braço direito e mão direita (mão que segura, sobre um jornal, um charuto), o que deixa as demais personagens em segundo plano. O corpo do Comediante e a fumaça do charuto, que sobe até o balão de fala de Rorschach, dividem o quadrinho em três porções facilmente reconhecíveis, no segundo plano.
E as imagens do segundo plano são díades postas em pauta, bem dentro do espírito da polifonia e do dialogismo bakhtinianos. Sempre tomando a perspectiva do leitor como referência, partindo-se da esquerda para a direita, a seguinte seqüência de personagens é vista: no separador dialógico da esquerda (borda esquerda do quadrinho/lado esquerdo da fumaça do charuto), o Dr. Manhattan e Janey Slater, sua primeira companheira; no separador dialógico do centro (lado direito da fumaça do charuto/lado esquerdo do braço do Comediante), Rorschach e o Capitão Metropolis; no separador dialógico da direita (lado direito do braço do Comediante/borda direita do quadrinho), o segundo Coruja e Ozzymandias.
Há dois balões de fala: o primeiro que se lê, de acordo com o roteiro tradicional de leitura (de cima para baixo, da esquerda para a direita) é de Rorschach (localizado entre o lado esquerdo do braço do Comediante e a borda esquerda do quadrinho, tomando quase toda a parte superior do separador dialógico do centro e pouco mais da metade da parte superior do separador dialógico da esquerda); e a seguir o de Ozzymandias (que toma quase toda a parte inferior do separador dialógico da direita).
Esse ordenamento realizado no parágrafo anterior pela divisão das personagens nos separadores dialógicos, não é gratuito: a fumaça do charuto do Comediante isola, à sua esquerda, o Dr. Manhattan e Janey Slater, que estão tendo uma discussão que se saberá promovida pelo interesse despertado no Dr. Manhattan por Laurie Juspeczyk (a mais nova integrante da equipe; na ocasião com apenas 16 anos de idade); entre o lado direito da fumaça e o braço do Comediante, ocupando uma porção quase central da cena, vê-se Rorschach e o Capitão Metropolis: Rorschach, tomando sua posição de protagonista, coloca, via sua fala, uma perspectiva com relação à formação do grupo de vigilantes mascarados que será combatida por Ozzymandias.; e, sob o triângulo formado pelo vão entre o braço e o tórax do Comediante, estão o Coruja e Ozzymandias, o Coruja estático qual estátua, evocando os predicados de atenção e de observância que lhe competem na história e na tradição ornitológica; e Ozzymandias, sentado, com a face mascarada tensa, aponta o dedo indicador direito para Rorschach, como lhe convém sua posição de antagonista.
Voltando à análise esquerda-direita, é importante notar que os dois separadores físicos das díades dialógicas citadas acima são, mesmo que parte e anexo de um mesmo personagem, sumariamente opostos e excludentes em termos físicos: o braço do Comediante é o braço de um militar, de um herói de guerra, com músculos definidos e firmes, evidenciados na penumbra pela pouca luz que sobre ele se deposita; a mão do Comediante segura o charuto cerrada, firmemente depositada sobre um jornal em uma mesa: o charuto está aceso, consumida já mais que sua metade, e dele sobe a fumaça que se constituirá em uma barreira tênue, intoxicante e a princípio vaporosa, de imprevisível traçado, mas que marca a cena com uma trajetória ascendente pontuada e curvilínea, que funciona como elemento de separação tanto quanto o poderoso braço do personagem.
O corpo do Comediante, como se disse, está na penumbra. A única luz que sobre ele se deposita vem da direita da cena e ilumina apenas parcialmente o interior de seu braço, o que contribui para evidenciar sua força e musculatura. Imediatamente abaixo do corpo do Comediante estão o Coruja e Ozzymandias. O Coruja está um pouco atrás de Ozzymandias, o que configura na cena um terceiro plano. Ozzymandias, então, ocupa a posição central do separador dialógico da direita. O dedo em riste que aponta para Rorschach, como se notou, é característica de seu antagonismo, mas é importante também notar que, por conta das cores de seu manto/fantasia, Ozzymandias parece, em comparação com os outros personagens, mais iluminado, algo solar, com o brilho dourado de seu pálio e de sua tiara-auréola parecendo evidenciar-lhe predicados de maior relevância e de esclarecimento, predicados que ele mesmo não se cansa de evidenciar na obra e que são também reiterados por outras fontes.
Tomando-se a possibilidade de constituição de um terceiro plano na cena, como foi evidenciado no parágrafo anterior, no tocante ao separador dialógico da direita, no qual Ozzymandias aparece um pouco mais destacado, nota-se que, também nos outros dois separadores dialógicos da cena, um personagem é evidenciado. No do centro, Rorschach (como demanda sua condição de protagonista); e no da esquerda, o Dr. Manhattan (como o Comediante, de costas para a cena).
Assim, nos terceiros planos dos separadores dialógicos encontram-se Janey Slater, o Capitão Metropolis e o Coruja. No Capítulo III, o leitor saberá que Janey Slater foi abandonada pelo Dr. Manhattan, após três anos de relação, por conta do envolvimento dele com Laurie Juspeckzyk (CIII,P6,Q1). Depois da frustrada reunião de convocação da equipe (CII,P9,Q5 a CII,P11,Q7), o Capitão Metropolis não mais aparecerá na história, nem mesmo na narrativa em flashback.
O Coruja, como convém sua herança ornitológica e seus predicados desenvolvidos na história, apenas observa a cena. Ele tem a face calma, tranqüila, ponderada. O Capitão Metropolis tem a face transtornada e seu olhar parece mesmo algo vesgo, como se quisesse olhar, ao mesmo tempo, individualmente para Rorschach e para Ozzymandias. Janey Slater olha apenas para o Dr. Manahattan e, como ele, não se importa com o restante da cena que se desenrola. Seu olhar, se vazasse o corpo do Dr. Manhattan, se dirigiria para fora do quadrinho, o que é marcante, se pensarmos que dirigir o olhar para fora do quadrinho é dirigi-lo para fora do círculo dialógico, portanto (círculo dialógico do qual em breve não mais participará).
Nos segundos planos dos separadores dialógicos, díades dialógicas que serão bem estabelecidas na história são marcadas: em momentos variados da história, cada um dos personagens nos segundos planos (Dr. Manhattan, Rorschach e Ozzymandias) se oporá aos outros dois. Ozzymandias é o antagonista do protagonista Rorschach, mas também embaterá com o Dr. Manhattan; Rorschach, no centro, é o maior rival de Ozzymandias e se oporá também ao Dr. Manhattan, sendo inclusive morto por ele, no último capítulo (CXII,P24,Q4); e o Dr. Manhattan, como já se estabeleceu, rivaliza em algumas situações tanto com Rorschach e como com Ozzymandias.
O Coruja ocupa um posto peculiar no terceiro plano: é o único personagem neste nicho da hierarquia dialógica do quadrinho que não desaparecerá da trama ou perderá sua importância. O Coruja ganhará mesmo destaque especial, particularmente no Capítulo VII, no qual suas virtudes de observância, calma e ponderação se tornarão evidentes. E é interessante notar que ele também se diagladará, de certa forma, com o Dr. Manhattan: Daniel Dreiberg, sua identidade secreta, apaixona-se por Laurie Juspeckzyk, a segunda companheira do Dr. Manhattan, e, no já referido Capítulo VII, o “capítulo do Coruja”, vai formar com ela um casal que perdurará até o final da história, inclusive com a aprovação do Dr. Manhattan (CXII,P25,Q1 a Q7).
Postadas essas considerações acerca do quadrinho 5 da página 10 do Capítulo II como uma espécie de reumo representativo da questão da polifonia e do dialogismo em Watchmen, é primordial fazer notar que a voz de Rorschach faz-se ouvir um pouco mais do que as outras. Afinal de contas, é a voz do protagonista. Ela é ouvida em seus discursos diretos, em discursos indiretos, em respostas ao seu discurso e em seu Diário, cujos trechos se espalham, na forma de boxes de discurso que evocam a figuratividade de papéis rasgados, por toda a narrativa (e que, no “final que não termina” da obra, poderá aparecer publicado no tablóide sensacionalista “New Frontiersman” – ver tópico “As citações textuais dos finais dos capítulos/títulos”, box “Contexto narrativo do capítulo”).
A voz/discurso de Rorschach opõe-se à voz de Veidt/Ozzymandias, principalmente desde o momento em que se descobre que Ozzymandias é, na verdade, o “grande vilão”, e por conseqüência o antagonista. A voz do Comediante é a voz da paródia, da pilhéria, da desconstrução da aura pudica que esconde a entranha de uma sociedade apodrecida (por isso o Comediante aparece de costas para a cena na qual um abobalhado Capitão metropolis tenta estabelcer uma equipe de “crimebusters/combatentes do crime” (CII,P9,Q5). Ao esbravejar do Comediante se opõe a voz de Daniel Dreiberg/Coruja, homem de valores sólidos. O Coruja é a voz dos estabeleceres, dos solidificares, do tentar manter o que há de bom e, até mesmo, a voz dos lugares-comuns do “homem-comum”.
Portanto, como diz Bakhtin: “o problema gira em torno da última dialogicidade, ou seja, da dialogicidade do último todo” (Bakhtin, 1997: pág 17). Dentro da perspectiva da polifonia, o dialogismo em Watchmen é o construtor da narrativa. São as presenças, as ações e os discursos das várias personagens e, em especial, das personagens principais, que edificam o enredo, provendo-o de motivos, de causalidades, de embates discursivo-narrativos que fornecem material para a arquitetura mosaical por sobre a qual se desenvolve a história. Bakhtin diz que “a vontade artística da polifonia é a vontade da combinação de muitas vontades” (Bakhtin, 1997: pág.21), “que as vozes, aqui, permanecem independentes” (Bakhtin, 1997: pág.21). Completando esse recorte com uma citação que o teórico russo faz de Otto Kaus, “a multiplicidade de posições ideológicas equicompetentes e a extrema heterogeneidade da matéria constituem a peculiaridade fundamental” (Bakhtin, 1997: pág.17) de Watchmen.
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