Juliana Bernardes Tozzi [1]
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche)
Neste texto, proposto como ensaio, compartilho alguns pensamentos que me introduzem ao objetivo que venho me propondo de tentar percorrer uma análise das imagens e das representações instituídas e mais legítimas que, em um tempo e sociedade determinados, se articulariam a um campo cultural cujos produtos se valeriam deste processo de instituição para firmar-se e impor-se. Tento pensar este campo enquanto espaço de embate em que jogam “vozes outras” (com ideários distintos e distintivos), ainda que não ocupando aí posições “dominantes”.
a) A linguagem e o humano
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. (BAKHTIN, 2003, p. 261)
Em primeiro lugar, tomo que considerar qualquer material imerso na atividade humana de comunicação exige a compreensão das consequencias trazidas pelo entendimento de que esta é uma produção historicamente determinada.
Assim, uma das premissas que me acompanham é de que a fala e a escrita, estes veículos anunciadores de imagens e das ideias dos discursos sociais, contam da atividade de fabricação humana, constituída pelo estar no mundo dos sujeitos, de seus grupos e comunidades.
Matéria produzida pelo humano, forma fabricada de atribuir, recriar, perpetuar ou transgredir significação para as coisas do mundo, a linguagem parece, num diálogo de premissas materialistas, adquirir possibilidade de discussão enquanto produção que reveste, permeia, perpassa e transpassa todas as atividades culturalmente constituídas e sendo por meio destas continuamente reinventada.
Assim, de início, ao tomar materiais do escrito de um tempo e espaço social pretendendo a análise dos ideários aí dados a conhecer, concebo estes sentidos como pertencentes à produção cultural do humano, de modo histórico e circunstancialmente localizado – articulados simbolicamente a um antes, a um agora e a um depois ao qual se fundem (1) imagens e concepções da realidade, (2) intenções de comunicação e (3) possibilidades (outras) dadas pela reinvenção do ato de significar as coisas.
b) Comunicação: enunciados como elo
Interpretando, com Mikhail Bakhtin (2003), os enunciados enquanto as unidades básicas de sentido pelos quais podemos abordar a instigante tarefa de compreensão das situações comunicativas da atividade humana, o que se coloca introdutoriamente para a minha tarefa é a insistência na premissa que entende um enunciado como elo, pelo caráter de endereçamento que o constitui. Enunciado que, vale sempre acentuar, conforme ensina a análise do mesmo autor, jamais se propõe envolto a uma suposta neutralidade nesta sua vida propositiva.
Ora, se o que se pensa se pensa sempre de um lugar para outro, poderíamos imaginar os enunciados enquanto matéria do pensamento itinerante por essência: que parte de um espaço para deslocar-se e constituir novas penetrações em outros – de modo a continuar vivendo no movimento das práticas de apropriação dos homens e das mulheres.
Esta perspectiva recorda as colocações do historiador Michel de Certeau (2007) que, ao estudar o modo como as práticas populares reinventam as formas instituídas de apresentação do mundo, ressalta o movimento da criação inerente à apropriação cultural dos sujeitos históricos que as tomam como objeto de sua atividade. O autor vai, então, dizer com relação à propriedade dos materiais da escrita:
A ilha da página é um local de passagem onde se opera uma inversão industrial: o que entra nela é um “recebido”, e o que sai dela é um “produto”. As coisas que entram na página são sinal de uma “passividade” do sujeito em relação a uma tradição; aquelas que saem dela são as marcas de seu poder de fabricar objetos. No final das contas, a empresa escriturística transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriação do espaço exterior. (p. 226)
Este caráter de interatividade que reveste todo ato comunicativo e seus produtos, mediante a linguagem é, então, como Bakhtin (2003) nos ensina, permeado pelo sentido relacional, dado pelo e através do campo da sua configuração:
A expressão do enunciado, em maior ou menor grau responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados dos outros e não só a relação com os objetos do seu enunciado... (p. 298)
c) Porque quem fala, se fala...
Quando passo a considerar, então, dada a não-neutralidade dos enunciados, que quem fala, fala sempre de um lugar e com uma intenção constituída por/ neste lugar, passo a reconhecer os conteúdos das mensagens comunicativas aí faladas como veículos anunciadores de valores, ideias, concepções e, enfim, formas de se sentir, pensar e reagir às coisas do “vasto mundo” que são próprios de determinados grupos, ainda que não possam ser desprendidas da cultura de um tempo e espaço social maiores.
Aproximo-me, então, da aventureira tarefa de tentar compreender como as coisas declaradas na cena social se compõem em uma rede de enunciação que compartilha e distingue – por isso que os enunciados passam, para mim, a poderem ser discutidos enquanto matéria daquilo que se pretende dizer (com a pretensão do dizer legítimo), de modo jamais neutro ou isento dos lugares que se ocupa.
Assim, quando penetramos a lembrança de cenas que retratam os movimentos do social nas propostas de divulgar, difundir e instaurar determinadas verdades de valor, lemos e escutamos posicionamentos que dizem, propõem seus dizeres e que, ao fazê-lo, se contam – o que significa que contam da participação histórica de seus agentes no mundo, a qual jamais poderia ser justificada em termos de uma essência de estar “a-histórica”, “a-circunstancial”.
Como Grillo (2003) nos convida a pensar, a articulação do estudo do enunciado considerando esta produção imersa em um campo em que se posicionam diversos agentes que lutam pela legitimação de seus dizeres e de suas práticas (perspectiva interpretada à luz dos trabalhos da Sociologia da Cultura de Pierre Bourdieu: 1996), pede que consideremos os aspectos sociológicos envolvidos na produção, recepção e circulação dos enunciados. Esta perspectiva pareceu-me ser ilustrada por Bakhtin com maestria e notável originalidade na obra “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”.
Disto, sou levada a concluir que todo e qualquer conteúdo trazido por um enunciado – considerando a sua produção em uma cadeia comunicativa historicamente constituída e a sua proposição em um campo com regras próprias de dizeres e formas de se dizer – deve ter a interpretação das representações por ele evocadas/ sugeridas enquanto “... produto de todo um trabalho social de construção de um grupo e de uma representação dos grupos, que se [insinua] docemente no mundo social...” (BOURDIEU, 2003, p. 40), as quais, por meio de não lineares processos históricos, se instituem como verdades de valor e de sentido imanentes.
Através do sentido quase que universal assumido por determinadas mensagens que se instituem enquanto “representações oficiais”, ou “partilhadas por todos”, urge que elas sejam revisitadas como construções das instituições, das organizações e dos cérebros que adquiriram o direito de por uma época falar, a fim de se discutir como, mesmo na hegemonia delas, outras vozes se articulam e se compõem.
d) Falas “instituídas”
Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom... em cada época e em todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições, expressas e conservadas em vestes verbalizadas... Sempre existem essas ou aquelas idéias determinantes dos “senhores de pensamento” de uma época, verbalmente expressas... (BAKHTIN, 2003, p. 294).
Tomar com Bakhtin que “não falamos sozinhos” pode significar, então, o entendimento de que, em primeiro lugar, nossa imersão nas situações de comunicação é ativa porque em nós ecoa o diálogo com o outro, este outro interagente de nossa fábrica verbal – e de nossas palavras que funcionam, então, no movimento iminente e contínuo da proposição.
Significa ainda a compreensão de que somos falantes daquilo que, por meio de nossa síntese, se recria de significação, porque antes de tudo a fala é herdeira: não só do que virá, mas do anterior que a torna possível e a constitui no potencial que celebra.
Mas como operar com a identificação e a compreensão daqueles discursos instauradores das “verdades” mais legítimas de uma sociedade que por artimanhas inúmeras instituem-se a-temporal e a-espacialmente?
De que forma reconhecer a polifonia de vozes que os constituem resgatando a tradição que os compõem na arqueologia de sua constituição?
Como cultivar a sensibilidade e intelectualidade operante de identificar as marcas de representações criativas ou distintivas dos grupos que sobrevivem ou contra-vivem em relação aos mesmos?
Estas são algumas indagações e apontamentos que trazem um sentido reticente, o qual tenta aqui se mover por caminhos de aprofundamento teórico reclamados pela inusitada condição do “sujeito-pesquisador dos começos”, com seus não-saberes e primeiras considerações e perguntas – as mais iniciantes talvez – e que aqui se compartilham.
Destes apontamentos iniciais e provisórios, escolho que fique, na sua hora conclusiva, a dúvida trazida pela voz de quem é “das coisas da filosofia”. Nessa voz, há muito do que quero melhor explorar e que eu poderia, genericamente e sem as especificidades trazidas pelo objeto de meu estudo, traduzir pelas questões: “como dialogar com as representações que orientam a atividade dos agentes culturais na proposição de produtos que classificam públicos para a circulação dos mesmos? Como estas representações poderiam ser discutidas em termos de representações compartilhadas e/ ou distintivas em uma rede de enunciação verbal própria de um campo produção? Como ler, por meio delas, a cultura de um tempo e de uma sociedade que se conta?
Entre as representações (Chartier: 1996) de um tempo e espaço sociais e que orientam as práticas culturais dos seus sujeitos, todo um conjunto de imagens, ideários e modelos emerge como material que demanda uma operação metodológica dialógica com os discursos de uma sociedade e de uma temporalidade maiores, sabemos.
Por isso mesmo, interpretar o conteúdo dos enunciados numa perspectiva relacional, quer dizer invadir nossa operação metodológica do interesse e da necessidade de dialogar com a concepção de mundo da sociedade e do tempo que os mesmos participam e que lhes imprimem esta potencialidade de decifração e constituição.
Tomo que, nesta sociedade, certos dizeres e formas de se pensar se revestem de uma hierarquia cujas implicações quero melhor compreender nos termos colocados pela reflexão de Chauí (2000); talvez assim, possa avançar para além da imanência de determinadas proposições que corremos sempre o risco de esvair das relações humanas que as constituem e que, enquanto “verdades absolutas” proferidas pela “autoridade competente”, instauram e celebram o mercado movido pelos produtos fabricados pela reinvenção da posse das mesmas “verdades”, valendo então retomar que:
O discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (esses termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem... é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. (CHAUÍ, 2000, p. 07)
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
[1] Mestranda do Grupo Alfabetização, Leitura e Escrita (ALLE), da Faculdade de Educação/ Unicamp. Texto produzido com apoio do CPq-Brasil.
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