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A Palavra, o Outro, a Dialogia: alguns pressupostos teóricos bakhtinianos

Alda Mendes Baffa

1. Introdução

Neste trabalho, procuramos contemplar algumas concepções bakhtinianas e seu círculo a fim de compreender, diante de textos e discursos,a possibilidade de promover um debate, cujo ponto de partida seria a manifestação de outros interlocutores, de outros debatedores e que pudessem, de forma geral, dar sustancialidade as nossas reflexões. Pensando assim, é que recuperamos alguns conceitos, alguns recortes e neles tomamos um posicionamento contemporâneo diante de algumas tendências históricas discursivas do passado a fim de promover uma discussão no presente.

Posto isso e antes de fazer qualquer consideração acerca dos conceitos bakhtinianos, que é o nosso propósito, é necessário, em primeiro lugar, indagarmos em que época viveu este pensador, pois acreditamos que para se entender a obra e o pensamento de um autor, é necessário contextualizá-lo. Esse fato adquire uma especial relevância quando se trata deste autor, Mikhail Bakhtin, pois sua obra traz a marca do tempo em que viveu, e poucos pensadores se sentiram tão atraídos pelas diferenças no mundo quanto ele. Bakhtin atribuía a maior importância ao “não-finalizado”, ao “vir-a-ser” e, portanto, não podemos, jamais, lhe atribuir um caráter conclusivo, um Bakhtin único e definitivo: “Bakhtin era um ferrenho opositor dos cânones, e pretender que alguma versão de sua pessoa seja a correta significaria estreitar numa camisa-de-força o filósofo da variedade, monologizar o cantor da polifonia”(Clark e Holquist 1998, p. 32). Por este viés é que procuramos fomentar algumas indagações sobre a obra deste pensador num determinado contexto histórico pelo qual atravessava o nosso país, ou seja, o discurso de uma classe formadora de opinião na época da ditadura militar.

2. A filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin e algumas idéias no lugar ou fora do lugar comum.

Quando refletimos para este universo da comunicação neste início de século, verificamos que as ideologias contemporâneas, de uma certa forma, universalizaram o mundo moderno, vivemos o mundo da comunicação generalizada, em que o desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação e informação que, mais recentemente, ganham incremento, fazendo com que, cada vez mais, aumente a possibilidade de comunicação entre as pessoas. Com isso, interagir nesta esfera de comunicação significa realizar atividades discursivas constantes em diferentes modalidades. Neste movimento, Bakhtin vem sendo visto, crescentemente, como um dos principais pensadores. Suas obras transitam pela lingüística, psicanálise, teologia, teoria social, a poética histórica, a axiologia e a filosofia da linguagem e, principalmente, as mídias. Sobre ele escrevem Clark e Holquist:

“Apresentava-se ao mundo como um indivíduo esquivo, contraditório e enigmático. Discriminava entre suas atividades públicas e sua vida privada do espírito, entesourando esta última ao máximo. Em seus pronunciamentos públicos, acomodava-se ao regime e à sua retórica. Quando solicitado a corrigir seus textos por motivos de censura, em vez de ficar ofendido ou mostrar-se aflito, passava sobre o assunto com um dar de ombros. Contudo, os textos de Bakhtin estão longe de ser meros exercícios de acomodação. Podem ser lidos em muitos níveis e ele sabia exprimir neles com grande habilidade as suas próprias idéias. Em seus escritos era simultaneamente um ideólogo apaixonado em relação a seu modo de ver e um ventríloquo impassível em relação às locuções aceitáveis em termos políticos”. Opunha-se fundamentalmente à noção de que possa haver uma “verdade única” (1998, p.30).

Mikhail Bakhtin (1895-1975) é tido como um dos pensadores mais fascinantes e enigmáticos do século 20. Dono de uma obra rica e original, publicou em 1929 seu trabalho sobre Dostoiévski e depois desta data nos brindou com várias obras e textos. Moscovita de nascimento, seus livros trazem uma lição de afirmação democrática e antiautoritária. Ele, que foi vítima direta da violência stalinista, mostra, nos seus textos, a importância da multiplicidade de vozes em nosso mundo. Sua luta antiautoritária revelou-se sobretudo em seus estudos sobre a linguagem: “a linguagem autoritária reduz tudo a única voz, sufocando a variedade e riqueza que existe na comunicação humana”, escreve Schaiderman na abertura do livro Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido, de Bete Brait (org.). Schaiderman também analisa a chegada de Bakhtin ao Brasil. Diz ele que, em meados dos anos 60, Bakhtin já era lido nos países ocidentais, mas, “em nosso meio, porém, era quase impossível conseguir seus textos no original. Em 1964, as livrarias russas em nosso país tiveram todos os seus livros retirados para “exame”, numa verdadeira operação militar, que acabaria em incineração pura e simples” (p.16).

2.1 A censura, regime militar e o professor

Era a época da ditadura militar aqui no Brasil, portanto, época de censura e, nessas condições, era difícil tratar de Bakhtin e dialogismo, principalmente na esfera da educação e total perseguição e vigilância aos professores e por quê? O professor é um formador de opinião e sua fala está atravessada de discursos, por exemplo, Bakhtin conceitua linguagem como uma visão de mundo, explorando as relações entre linguagem e sociedade, procurando explicar em que medida a ideologia determina a linguagem, revelando suas idéias marxistas na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Neste livro, expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem, colocando como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura socioideológica:

“A fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais (...) A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação , implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder. Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro ou mesmo de sistema (assim, a língua sagrada dos padres, o “terrorismo verbal” da classe culta), esta relação fica ainda mais evidente.” (1999, p.14,15)

Com efeito, para Bakhtin a palavra é a “arena” na qual se confrontam os valores sociais contraditórios. Os conflitos manifestados no uso da língua refletem os conflitos de classe. Segundo a nossa censura, o regime militar da época (1964) acreditava que o professor representava uma ameaça ao regime militar, pois o professor tinha uma das maiores armas subversivas1: a palavra, uma vez que, tomando como base Bakthin, a ideologia determina a linguagem nas interações com seus alunos e a palavra.

2.2 A fala do professor e o perigo do discurso atravessado

Bakhtin (1999) valoriza a fala e a enunciação, afirmando sua natureza social e não individual: a palavra “é o fenômeno ideológico por excelência. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (p.36). Segue explicando que a palavra é o material privilegiado da “comunicação na vida cotidiana”. É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam. A palavra revela nossa consciência interior (discurso interior). E é devido a esse papel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona “como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideológico” (Bakhtin, 1999, p. 37).

A fala do professor em sala de aula é constituída por palavras. Palavras que calam, sugerem, transmitem ideologias, sugerem poder ou interagem numa relação dialética de fala e escuta entre interlocutores. É preciso lembrar que a palavra “está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (Bakhtin, 1999).

Assim, as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e na escola, nas diferentes reuniões sociais, no dia-a-dia, enfim, as diferentes formas de interação verbal acham-se estreitamente vinculadas às condições de uma situação social. Para se estudar e conhecer o discurso do professor é primordial que se conheça em que circunstâncias a interação verbal aluno-professor formador acontece na escola. A palavra, a interação verbal, a enunciação, vêm marcadas pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados. É preciso contextualizar os discursos dos professores para que reflitam sutilmente as mais imperceptíveis mudanças, ideologias e transformações do sistema educacional de nossa época.
Como definir a palavra do professor ? Quais são seus laços com a situação social em que está inserido? Dá voz ao aluno-professor para que ele fale, argumente, opine e se forme como sujeito autônomo, percebendo as lutas sociais, ideológicas que se travam no interior do discurso pedagógico?

Assim, as palavras, as enunciações do professor, precisam encontrar eco no seu interlocutor, seu aluno, e abrir espaço para que este se posicione. Para Bakhtin, a enunciação é “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, é um elo da cadeia dos atos da fala” e, desta forma, se a enunciação do professor formador for:

“... uma enunciação isolada fechada-monológica, desvinculada de seu contexto lingüístico e real, à qual se opõe, não uma resposta potencial ativa, mas a compreensão passiva[...], resulta numa teoria completamente falsa da compreensão“. (Bakhtin, 1999, p:98,99)

Nesse tipo de enunciação, não há contrapalavras, pois ela tende a fechar sentidos. Qualquer tipo de compreensão deve ser “ativo, deve conter já o germe de uma resposta”.

Mas o que seria compreender a enunciação de outrem segundo Bakhtin? E aí que encontramos a enunciação do professor: o que seria compreendê-la?

... Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão... A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (Bakhtin, 1999, p. 131-132)


Complementando essa citação, diríamos, conforme Bakhtin, que a significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da “interação do locutor e do receptor produzido por meio do material de um determinado complexo sonoro”. Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação, já que “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (Bakhtin, 1999, p. 113).

Bakhtin enfatizou o dialogismo que se caracteriza como a “inscrição do discurso do outro no discurso do enunciador”.(Barros, 1994) Isso quer dizer que as palavras de um falante estão sempre perpassadas pelas palavras do outro; que, para constituir seu discurso, um enunciador necessariamente elabora o seu discurso a partir de outros discursos. Bakhtin não estava falando da troca de palavras entre interlocutores, mas de uma dialogicidade interna do discurso:

...”reservando o termo dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso e empregando a palavra polifonia para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem. Trocando em miúdos, pode-se dizer que o diálogo é condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, conforme variem as estratégias discursivas empregadas. Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única voz. Monofonia e polifonia são, portanto, efeitos de sentido, decorrentes de procedimentos discursivos, de discursos por definição e constituição dialógicos.” (Barros, apud Brait (org.), 2001, p. 35)

Tendo como referência o dialogismo e a polifonia, será o professor formador o entabulador de um grande diálogo com seus alunos, no qual, polifonicamente, se ouvem as diferentes vozes. Nas interações discursivas que ocorrem na sala de aula, para explicar a concepção de voz que permeia a obra de Bakhtin, é importante, em primeiro lugar, entender o conceito a partir do princípio da exotopia, em que só o outro pode nos dar acabamento, assim como só nós podemos dar acabamento a um outro, porque, do lugar onde estamos, o nosso olhar visualiza apenas um horizonte. Só o outro tem um excedente de visão, motivado pelo espaço e pelo tempo, que pode completar o que falta ao nosso próprio olhar. Por este princípio de Bakhtin (2000), eu só posso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro. A minha palavra (fala, voz) está inexoravelmente contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento.

Em suma, a voz jamais fala sozinha. Ela é dialógica, estando nela incluída tanto a polêmica, quanto o consenso. A dialogicidade da voz não se circunscreve ao quadro estreito do diálogo face a face. Pelo contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perspassada sempre pela palavra do outro, é sempre e invevitávelmente também a palavra do outro. Falar do outro é, necessariamente, dar voz ao outro – a voz é um dos conceitos centrais do pensamento bakhtiniano, implica o mundo, para além de uma análise psicologista ou individualizada do dialogismo eu-tu, vai permitir, a partir do dialogismo, a polifonia das palavras. Ao ser lida, por via oral, escrita ou através da imagem, a palavra polifônica está carregada de histórias, está carregada de histórias das palavras dos outros. Dessa forma, o sentido da voz, em Bakhtin, é mais de ordem metafórica, porque não se trata concretamente de emissão vocal sonora, mas da memória semântico-social depositada pela palavra (Pessoa, 1999, p.18)

Se, como diz Pessoa, “a dialogização interna da palavra é sempre perpassada pela palavra do outro”, também a voz do professor é perpassada pela palavra do aluno e vice-versa.

3. Considerações finais

Procuramos fomentar algumas discussões, pois a palavra é a “arena” na qual se confrontam os valores sociais contraditórios, com isso, constata-se que a voz do professor jamais fala sozinha, ela está atravessada por várias outras vozes. Desta forma, acreditamos que esta pesquisa e especialmente considerando o período de repressão militar, suscitamos alguns contrapontos e a possibilidade de enriquecer num dialogismo próprio do discurso bakhtiniano.
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1. Zuenir Ventura, em seu magistral trabalho: 1968 O ano que não terminou, no capítulo: Os passos da paixão, principalmente no governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, explicita a caça aos intelectuais deste pais, entre muitos outros, a perseguição aos professores, jonalistas e artístas.

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