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Algumas contribuições de Bakhtin para a área de aquisição da linguagem.

Alessandra Jacqueline Vieira

É possível encontrar e aplicar a teoria de Bakhtin em diversas linhas de pesquisas relacionadas à linguagem, pois ela nos deixou grandes contribuições, ajudando a entender e interpretar alguns aspectos relacionados à comunicação verbal. A área de aquisição da linguagem é um exemplo, pois se apropria das concepções de Bakhtin para explicar alguns fenômenos da linguagem infantil. É preciso entender a linguagem da criança a partir de suas relações com o ‘outro’. Quando trabalhamos com aquisição da linguagem temos de ter em mente que a relação interacional é fundamental, pois é a partir da interação entre a criança e o adulto (ou entre outras crianças) que ela cresce intelectualmente e desenvolve sua linguagem.

É nas trocas de conversas, na relação com outro, que a criança apreende e começa a compreender o mundo à sua volta. Desde seu nascimento, o infante é estimulado por sons prosódicos, que é o que primeiro ele entende da fala do adulto. É por volta dos nove ou dez meses que a criança passa a compreender o significado de algumas palavras, mas sempre por meio dos estímulos fornecidos pelo ‘outro’, que, na maior parte das vezes, são os próprios pais.

A teoria elaborada por Bakhtin sobre a linguagem pode ser encontrada desde a sua emergência, ou seja, no início do processo de aquisição da linguagem, pois a criança, desde muito pequena, se apropria da fala do ‘outro’, partindo de enunciados simples - como nas imitações da fala do adulto - até chegar às formas mais elaboradas, retirando as palavras de um determinado contexto de fala e inserindo-as em outro. É o que pretendemos discutir neste trabalho, relacionando o processo de interação, a relação dialógica, o intuito discursivo e a posição do ‘outro’ para a criança no processo de comunicação verbal.

Criticando as correntes linguísticas vigentes, que definiam a comunicação ou por meio de um sistema abstrato ou por processos individuais, que não caracterizavam efetivamente o processo de comunicação verbal, Bakhtin elabora suas teorias relacionadas à linguagem e a comunicação. Contrariando as idéias de Humboldt e até mesmo de Saussure (mesmo considerando seu trabalho muito importante para a linguística), ele evidencia a verdadeira natureza do processo comunicativo. A essas teorias, Bakhtin tecerá grandes críticas, defendendo, assim, suas concepções sobre a linguagem; dessa forma, ele nomeia a teoria de Saussure como um ‘objetivismo abstrato’ (língua como sistema abstrato) e a de Humboldt como ‘subjetivismo idealista’ (a língua enunciação individual). (BAKHTIN, 1995). Para Bakhtin, Saussure ignora o fato de que, além das formas da língua, há também as formas de combinação dessas formas da língua, ou seja, ignora os gêneros do discurso.

Nesse sentido, Bakhtin demonstrará que a linguagem é um objeto social e a comunicação só é possível por meio de enunciados completos, ou seja, por enunciados passíveis de respostas, em um determinado contexto discursivo. As noções de ‘receptor’, ‘emissor’, etc, trabalhadas nas gramáticas, não representam a realidade da linguagem, pois no processo de comunicação verbal, os enunciados pressupõem o outro e o interlocutor espera uma posição responsiva ativa do outro - tomando a posição de enunciador em determinados momentos. Ou seja, os sujeitos participantes de uma dada comunicação se interrelacionam e tudo isso depende da noção de acabamento do enunciado.

É necessário o acabamento para tornar possível uma reação ao enunciado [...] A totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (de compreender de modo responsivo) é determinada por três fatores indissociavelmente ligados no todo orgânico do enunciado: 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento. ((BAKHTIN, 1997: 299)

Essas noções são percebidas pela criança logo que começa a emergir a linguagem, o que notamos nos momentos em que a criança interage com o ‘outro’, como nas situações de perguntas e respostas. No contexto explicativo, a criança espera uma posição responsiva do outro, sabe que o outro também espera uma posição responsiva dela, e, ao argumentar com seu interlocutor, utiliza estratégias para defender sua argumentação de acordo com o que já foi dito, demonstrando seu ponto de vista.

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal. Tem fronteiras nítidas, determinadas pela alternância dos sujeitos falantes (dos locutores), mas dentro dessas fronteiras, o enunciado [...] reflete o processo verbal, os enunciados dos outros e, sobretudo, os elos anteriores (às vezes os próximos, mas também os distantes, nas áreas da comunicação cultural). (BAKHTIN, 1997: 319).

Ao afirmar isso, o autor deseja mostrar que o enunciado só pode ser entendido no interior do todo verbal, ou seja, através das palavras do ‘outro’, utilizando-se de tudo o que já foi dito sobre o objeto, pela concepção que se tem do ‘outro’, e pressupondo ou precavendo-se das possíveis respostas do ‘outro’. Apesar de Bakhtin não ter falado especificamente da linguagem da criança, o fenômeno do dialogismo pode ser encontrado desde a emergência da fala na criança. É por meio dessa relação dialógica que a criança é inserida na ideologia de seu mundo social, sendo inserida também em sua própria cultura.

A criança apreende o mundo por meio da palavra do outro, no processo de interação. Toda a fala de qualquer sujeito é dirigida ao outro, possui um destinatário, ou seja, é voltada para o social e só alcança seu sentido completo nesse todo social:

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mudo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. (BAKHTIN, 1997: 293)

Ao falar sobre gêneros do discurso em Estética da criação verbal, Bakhtin define o enunciado e o diferencia das categorias do sistema, como as palavras e a oração. As palavras e as orações, como unidades do sistema da língua, não possuem expressividade, não carregam, por si sós, o sentido completo. É somente na cadeia da comunicação verbal, ou seja, no interior do enunciado, que ela adquire determinada expressão pretendida pelo ouvinte. Quando queremos dizer algo, não selecionamos palavra por palavra para criar o sentido, pensamos no todo de nosso intuito discursivo, no que queremos dizer, para, então, escolhermos a palavra que nos dará o sentido almejado. E isso pode ser observado desde o início do surgimento da linguagem infantil.

O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero determinado. Esse tipo de gênero existe sobretudo nas esferas muito diversificadas da comunicação verbal oral da vida cotidiana (inclusive em suas áreas familiares e íntimas). (BAKHTIN, 1997: 301)

Nesse sentido, podemos inferir que uma criança não aprende as palavras isoladas, ao contrário, ela as recebe na relação com o outro, para posteriormente aplicá-las em contextos completamente diferentes. Daí se segue que ninguém aprende as palavras em dicionários, com sentidos completos e fechados, mas no processo de interação com a linguagem do outro, pois, as palavras só adquirem seu sentido completo no processo de comunicação, determinada por seu contexto enunciativo. Em Discurso na Vida e Discurso na Arte, o autor nos dá o exemplo da palavra bem, que, descontextualizada, não adquire seu sentido concreto. Outro exemplo poderia ser a palavra “felicidade”, que em geral, está relacionada ao contexto de alegria, mas que, eventualmente, poderia ser utilizada com um sentido irônico, como no enunciado “Esse trabalho só me traz felicidade!”, que fora de contexto poderia suscitar outras interpretações.
As particularidades de uma comunicação são aprimoradas pela criança e, por meio da interação com o outro, ela adquire gradativamente os gêneros discursivos pertencentes à sua realidade; ela recebe, também, novos conhecimentos - como a escrita- e aprende a incorporar em sua fala os diversos gêneros utilizados pelas várias esferas de comunicação das quais ela participa. A criança aprende a fazer uso dos enunciados alheios, contestando-os, aprimorando-os, modificando-os, etc., conforme a necessidade no momento da enunciação.
Assim, a criança também faz uso das palavras do outro. Os nossos enunciados são sempre uma resposta aos enunciados anteriores e a tudo que já foi dito sobre determinado ‘objeto’ (BAKHTIN, 1997) e com a fala da criança não é diferente. As crianças fazem uso das palavras a ela dirigida, aplicando-as em outras situações discursivas. Assim, o autor explicita sobre a noção de palavras:

Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. (BAKHTIN, 1997: 313).

Não há diálogo no interior do sistema, entre sentenças, mas, sim, entre pessoas. A criança não aprende a falar por meio de orações e palavras descontextualizadas, mas por enunciados concretos, dentro de determinados contextos. Com o passar do tempo, ela consegue aprimorar e modificar os enunciados recebidos e inseri-los nos contextos necessários para defender ou argumentar seu ponto de vista. “As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (BAKHTIN, 1997: 314).

As teorias de Michael Bakhtin nos ajudaram muito a compreender as questões relacionadas à linguagem, entendidas não dentro do sistema da língua, mas como processo de comunicação verbal. Apesar de não ter tratado especificamente da linguagem da criança, sua teoria é perfeitamente aplicável, uma vez que considera o social, a interação, as relações dialógicas, a relação do outro na constituição da linguagem.

A partir do exposto, tentamos demonstrar como as concepções de Bakhtin contribuem para compreendermos de que modo ocorre a emergência da linguagem na criança, principalmente no que diz respeito ao processo interacional e as relações dialógicas da linguagem. O homem não pode ser compreendido fora a sua realidade social. Assim, ele é, desde seu nascimento, um ser social por natureza e depende de trocas interacionais com o outro para se desenvolver.

Referências

BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ____ Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Discurso na vida e discurso na arte (1926). Trad. Inédita de Cristovão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art”, publicado como apêndice in: Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist critique. New York: Academic Press, 1976.
JOBIM E SOUZA, S. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1994.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
______. Aprendizagem e Desenvolvimento Intelectual na Idade Escolar. In: VIGOTSKII, L.S; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. Trad. Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

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