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Ensaio sobre a desrazão dialógica: apontamentos sobre uma ontologia da compreensão
Alexandre Costa
Nunca conheci quem tivesse levadoporrada.
Todos os meusconhecidos têm sido campeõesemtudo...
Toda a gentequeeu conheço e quefalacomigo
Nunca teve umatoridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senãopríncipe - todoselespríncipes - na vida...
Quemme dera ouvir de alguém a vozhumana
Que confessasse nãoumpecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, sãotodos o Ideal, se os oiço e me falam.
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Como posso eufalarcom os meussuperioressemtitubear?
Neste ensaio gostaria de tratar dos paradoxos produzidos pelaassunçãoradical de uma perspectiva bakhtiniana na formação do professor e no trabalhoescolar. Parto do princípio de que posso, porcomodidade, apenasapontarquestões teóricas que julgo serem fartamente conhecidas pormeusinterlocutores: tomoparamim a mais-valia de suarepetiçãoexaustivaemcomentáriosacadêmicos. Meupecadocapital, no entanto, é medar o direito de partilharcommeusinterlocutorescertaangústia axiológica: o entremeio do comentário de autoridade e do acabamento estético da assimetria institucional seria o lugarlegítimo e seguro do trabalhoacadêmico?
Ninguém o sabe, é claro; e não é coisaque se pergunte, mesmoporqueisso “não existe”. A nãoserque se tenha, porexemplo, de trabalharcom a formação do professor na disciplina de estágio curricular; a nãoserque se cometa o atotemerário de acompanhar os estagiários no âmbito do trabalhoescolar da “escola-campo”; a nãoserquenão se queira usar da críticafácil aos documentosoficiais da educação, como se isso desfizesse suadensidade constitutiva. E, mesmoassim, neste casoainda seria necessárioabrirmão do acabamento mágico dos gestos enunciativos eruditos e do ilusionismopeloqual é possívelfazerbrotar o conhecimento objetivado de uma cartolachamada de “não-lugar”.
Gostaria que fosse possíveldiscutir, nesta roda de conversas bakhtinianas, os meios de recuperação dos efeitos constitutivos disso que chamarei de desrazão dialógica: a assunção de uma práxis derivada da preservação metodológica da eventicidade, do reconhecimentoradical do ato de compreensãocomonúcleo constitutivo e inalienável da açãopedagógica, diante da “razão instrumental” do controle e da produtividade na educação.
Parto daquilo que Geraldi me permite pensaremseutextoA aulacomoacontecimento, mastambém do quenãome autoriza a dizer: a validade do conhecimentoacadêmico depende de suaobjetivaçãomesmoque o ato de compreensão esteja no espaço de eventicidade da ética. E incluo nesse propósito uma derivação axiomática de Para uma filosofia do ato, mesmoquejásaibaqueseuúltimopostulado possa ser invertido[2]:
“a) arealidade do Ser é sempre o devir, o processo;
b) o discursoteórico é sempre uma objetivaçãoparcial dessa realidade;
c) todo e qualquernível de objetivaçãonão está isentoemrelação às suaslimitações, ou seja, deve reconheceroperacionalmentesuaprecariedade;
d) a produtividade de qualquerabordagem objetivante resulta dos níveis e relaçõesque possa construirpara o Real, de acordocomseuspropósitos;
e) tododispositivo teórico-metodológico, ou seja, objetivo, será sempremaisprodutivoquantomenosdepender dos aspectos do Realque exclui.”
Gostaria, portanto, de pensar as práticas de formação do professor e do trabalhoescolar, considerando as demandas de objetivação e de acabamento estético da interaçãocomo epifenômenos da ética de uma ontologia da compreensão.Advirto, entretanto, que de minhaconsideraçãosobre a primazia da eventicidade implicada no atoético da compreensãonão decorre queela seja suficiente. Acredito que as práticas se dão emcontextosaltamente estruturados e que o apagamento da necessidade de seugerenciamentonão é outracoisasenão o re-estabelecimento da soberania do sujeito.
Como se vê, uma ‘ontologia da compreensão’ não é equiparável, emprincípio a uma ‘ontologia do presente’ ou, pelomenos, não o é nostermoscomo esta última tem sido considerada porpesquisadores ligados às análises do discurso, às linguísticas aplicadas e às historiografias que se tomam como “pós-modernas”. Talproposta, enfim, talvez seja também “destinada ao fracasso”, como a tentativa de Bakhtin de estabelecersuaobjetivação do Ser, o quenãome impede de tentar dizê-lo e colherprazerosamentesuasrefraçõesresiduais.
Discutirei a seguir a relaçãoparadoxalentre a constituição de umdispositivo de geração de compreensão, objetivado a mais de duas décadasnosParâmetros Curriculares Nacionais, e de uma novaordem de discurso na educaçãobrasileira, cujas condições de produção desativam sistematicamente taldispositivonosaparelhos de formaçãoacadêmica e escolar. Nesta discussão, incluo o modocomo as diferentesperspectivas da ‘ontologia do presente’ e da ‘ontologia da compreensão’ podem ser diferenciadas e mesmo tratadas como contraditórias.
A constituição do dispositivo de geração de compreensão
Comoresultado de intensosdebatesacadêmicos e também, em alguma medida, das práticas da sociedadeeducacional organizada[3], a partir de meados da década de 1990 começou a ser implantada no Brasil uma novaordem de discurso da educação. Seufundamentobásico, segundome parece[4], foi o estabelecimento de uma novamatriz epistemológica para o trabalhoescolarbrasileiro e, por consequência, para a formação do professor. Pormeio da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o Estadobrasileiro definiu desdeentãoque as práticasescolares sejam organizadas sobre os eixos epistemológicos da interdisciplinaridade e da transversalidade e de sua operacionalização pormeio da organizaçãopedagógicaemtorno dos gêneros discursivos.
Emdiscordânciaparcial da formulaçãoinicial dos PCN e de alguns de seus comentadores, pensoque os novosparadigmas permitem uma reconfiguração do trabalhoescolarque seria descritível, minimamente, nosseguintestermos:
1.Os eixos epistemológicos da interdisciplinaridade e da transversalidade e sua operacionalização pormeio dos gêneros discursivos atravessam a organizaçãodisciplinar das condições de produção tradicionais do aparelhoescolar, gerando a deformação de suasrelações de tempo, espaço e interação.
2.A organizaçãodisciplinar mantém uma permanênciahegemônica, a qual, no entanto, se reduz gradativamente à medidaquepráticascomo as de projetospedagógicos reorganizam os elementosredundantes dos compartimentos tradicionais.
3.A interdisciplinaridade produz uma verticalização do processo abstratizante dos conhecimentos objetivados das disciplinas tradicionais pormeio do reconhecimento de noçõesquelhessãocomuns: ordem, código, perspectiva, tradição etc.
4.A transversalidade, emmovimentocontrário, concretiza as noções abstratas do conhecimentoobjetivo das disciplinas tradicionais, recortando narrativamentequestões do mundo da vida centradas nãoapenas no seureconhecimentomas no seuenfrentamentocomo situações-problema.
5.Os gêneros discursivos, comounidades da açãopedagógica, demandam a entrada de práticas de sociaisemcondições de produçãomenos escolarizadas e são constitutivamente relativos à transversalidade.
Tomados esseselementos da formacomo os compreendemos, os PCN constituiriam umdispositivo de geração de compreensão, trazendo a eventicidade da contrapalavra para o espaçoescolar e demandando o gerenciamentodialógico implicado nas questõestransversais e na organizaçãopedagógica centrada emgêneros. É nesse sentidoquepensoque essa parametrização pode servistacomo uma expansãooperacional dos princípiosque Geraldi aponta no já referido textoquetrata do acontecimentocomo constitutivo do ensino. Aliás, é emPortos de passagemque parametrização para o ensino de língua portuguesa vai buscarumtratamento da operacionalização dialógicaparaquestões discursivas, textuais e gramaticais[5]. O textooficial recupera a abordagem das atividades de linguagempormeio de sua categorização em ‘linguísticas’, ‘epilinguísticas’ e ‘metalinguísticas’, uma classificação operacionalperfeitamente homológica aos elementos da novamatriz epistemológica:
1.A primazia das atividades linguísticas é condizente com o uso da linguagem a serviço de práticasreais e implicadas emquestõestransversais;
2.A implicação dos sujeitos participantes ematividades densas de propósitos e consequências demanda o trabalho epilinguístico, derivando paratodos os camposdisciplinares a reflexãosobre a linguagem.
3.O trabalho epilinguístico constitui a necessidade metalinguística, cujaobjetividade é transferível a qualqueroutrocampo de saberes.
Assumidas essas relações, me arriscaria a dizerque os novoselementos constitutivos do trabalhoescolar tornam suaorganização operacionalizável porséries de séries de acontecimentos e de suasrelações de compreensão, sujeitos às demandas de acabamento estético das interações e da objetivação dos conhecimentosdisciplinares, semprecom a primazia do princípio da respondibilidade. De fato, é possíveldizerque essa proposição curricular tem emergido no espaço da educaçãobrasileira e, em alguma medida, deformou as práticas tradicionais de ensino. O que discutirei a seguir, no entanto, é como a novaordem de discurso da educação implementou-se de modo a reduzir os efeitosacima mencionados.
Uma alegoriamaniqueísta: o Mal se faz melhorpeloscaminhos do Bem
Os mecanismos de redução dos efeitos da proposição desse dispositivo de geração de compreensãosão reconhecíveis em, pelomenos, trêsespaçosoudireções, os quais passarei a discutir, aindaquemuitobrevemente.
Emprimeirolugar, desde os governos de Fernando Henrique Cardoso e aindanos de Lula, as condições de implementação das políticas públicas de educação se produzem, emgrandemedida, no avesso da direção dos PCN. Seusdoispilaresprincipaissão a adesãovertical e reprodutiva aos conteúdos e formatos dos programasfederaisimpostapelageração de acesso a recursos financeiros, de umlado, e a formação continuada dos professores, de outro. Comrelação ao primeiroaspecto, à autonomia da produção do projeto político-pedagógico das escolassob a autoria de seusdocentes, impõe-se uma cadeia de pacotesprontossempre reproduzidos porinstâncias burocráticas que se encontram fora do trabalhoescolar e usufruem de condiçõesfinanceiras e técnicasabsurdamentesuperiores às das escolas. Comrelação ao segundo, os processos de formação continuada são produzidos a partir da reafirmação ideológica da incompetência do professorado e da produção de capacitações fragmentárias e sempre hierárquicas. Seufuncionamento é muitomaisbenéfico, simbólica e financeiramente, para as instituições de ensinosuperior e seusprofessores do quepara as escolas e seusdocentes.
Emsegundolugar, os locais de formaçãodocenteinicial e de reflexãosobre o ensino funcionam de modoplenamentedisciplinar, com raras experiências de interdisciplinaridade e de transversalidade. Apesar da modaacadêmica de proclamardiscursossobre trandisciplinaridade, sobrerompimento dos compartimentos tradicionais do conhecimento e sobreagendaséticas, bastaexaminar o funcionamento dos cursos de formação do professorparaverificar o contrário. Vige na Universidadebrasileira o produtivismo dos rankings acadêmicos e a produção de pseudo-espaços transdisciplinares quesão verdadeiras sociedades de discurso, no sentido foucaultiano, e emcujofuncionamento se pode reconhecerdiferentes “darwinismos institucionais”[6].
Essa lutapredatóriaporespaços e recursos simbólicos e financeiros, meleva a referir, finalmente, o aspectomaisperverso e maiscurioso da discussão dessa temática. No escopo da razão instrumental quelhe é característica, o produtivismo acadêmico constitui representações apologéticas de simesmo, sempre baseadas na proclamação do rompimento das demandas de objetivação de suaspráticas e dos conhecimentosquelhes conferem identidade. Ao condenar as demandas de objetivação de suaspráticas de pesquisa e de ensino, as novassociedades de discursoque surgem no interior da academia constituem espaços de engajamento de pesquisadores e de todo o alunado pormeio do princípio da repetição autorizada do comentário: os recém-chegados são interpelados a repetir os comentáriosmelhor avaliados poraquelesque têm maispoder; produz-se, então, umcampo de objetividadecomoumespaço de implicitude.
A vontade de verdadeque rege os discursos e as práticas acadêmicas afasta-se, cadavezmais, dos processos de compreensão dos enunciados, alojando-se, sobretudo, emposições enunciativas hierarquicamente submetidas ao império de umsujeitoerudito e de suasreferências às origens soberanas da palavra. Nosdias de hoje, de formasurpreendente, ressurge o valor de verdadereguladopelareferência de autoria. Pode-se questionar, portanto, porqueesse a vontade de verdade da academia se tem afastado do acabamento estético de uma interlocução constituída peloacontecimento da compreensão, reafirmando-se imperativamenteemposições enunciativas. Pode-se perguntarporqueisso ocorre justamente no auge das “ontologias do presente”.
Umaspectorecorrente desse processo de “invocação do direito à descontinuidade” é a autoliberação de qualquerdemanda de objetivação, resguardando a soberania de sujeitossoberanoscujaprincipalatividade é a de fortalecer o acabamento estético de seuslugares enunciativos. Uma ontologia da compreensãosó pode constituir-se emsentidocontrário: a assunção de umespaço de objetividadequelhe retire o poderabsoluto da palavra. É exatamente a estabilidademínima e pouca dos campos de objetividadeque permite a sujeitoscomacúmulosdesiguais de capitalpolítico e simbólico encontrarem-se e constituírem espaçoséticos de compreensão.
Finalmente, e paraacharummodo de encerrar essa reflexão, talvez seja possívelinvocar a noção de refração do trabalho bakhtiniano (ou de “difração”, talqual aparece n’Arqueologia do saber de Foucault). É evidenteque no processopermanente de respondibilidade, peloqual os enunciados se refratam ad infinitum, tododiscursoteórico será apenasmaisumcomentário. A questão é como se pode ou se deve lidarcom os resíduos de permanênciaque tendem a formarcampos de objetividadeparaqualquerárea das práticassociais. No âmbito das práticas educativas, seja no trabalhoescolarou na formaçãoinicialou continuada do professor, pode-se perguntar, porexemplo, de quemaneira seria possívelinstaurarumtrabalho interdisciplinar e cooperativo semque se produza umespaçomínimo de objetividade e de categorização a partir do qual se instaure o difícilprocesso de interlocuçãoe de acabamento estético dessa jáfrágilposição de sujeito. E o quevalepara os professores, entreseuspares, valeemdobropara os professoresemformação.
Comojá disse, essa discussãotalvez seja desnecessária, inadequada e, comcerteza,deselegante. Masaindaquenão seja assuntodigno da nobreza acadêmica, confessoqueme interessa. Tenho aprendido queaquiloque é constitutivo é muitomais impactante do que o que é simplesmentemanifesto; e tenho descobertoque o desconforto dos meusalunosnão advém de ter de entregartarefasoureproduzirdiscursos linguístico-pedagógicos oumesmo de operacionalizarintervençõespráticas na escolacommelhoresoupiorescondições de trabalho. Paramuitos, nãoparatodos é verdade, o despropósito é ter de lidarcom o gerenciamentodialógico da propostatransversal e interdisciplinar do trabalhoescolar.
A dialogia, pensoeu, é hojeuma “desrazão” no espaço da razão instrumental das práticas acadêmicas. Do lado de fora da academia, a insuficiência das nossas tantas “ontologias do presente”, é essa sua “autossuficiência”. Reconhecemos o mundo, indicamos soluções, desconstruímos tudo ao nossoredorpormeio de uma palavrasoberanaquefinalmente libertou-se de qualquerresponsabilidade, de qualquer responsividade: a vontade de verdade reduziu-se finalmente a uma vontade de potênciavirtual.
Referências bibliográficas
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BOURDIEU, Pierre. Os usossociais da ciência. Para uma sociologiaclínica do campocientífico. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.
COSTA, Alexandre. O fantasma estruturalista e a análise de discursocrítica. In: Anais do III SimpósioInternacionalsobreanálise do discurso. BeloHorizonte: UFMG, 2008. [2008a]
COSTA, Alexandre. Interdisciplinaridade e transversalidade: consideraçõessobre a epistemologia do trabalhoescolarbrasileiro. In: Cadernos de Linguagem e Sociedade. V. 9 (2) Brasília: Thesaurus, 2008. p. 25-44. [2008b]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2002.
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GERALDI, João Wanderley. A aulacomoacontecimento. Aveiro, Portugal: Universidade de Aveiro, 2004.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
PESSOA, Fernando. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
SAVIANI, Dermeval. Da nova LDB ao NovoPlanoNacional de Educação: por uma outrapolíticaeducacional. 5. ed. Campinas: AutoresAssociados, 2004.
[1]Poemaemlinhareta, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (adaptado).
[2] A últimaderivação axiomática já foi categoricamente contestada peloprofessor Geraldi, a quem agradeço a orientaçãoopositiva. (VerCosta, 2008a).
[3] O termo é de Dermeval Saviani (2004) e se refere a diferentespráticas de ação e reflexão dos trabalhadores da Educação.
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