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O riso na sala de aula

Maria Tereza Scotton

Um dos temas que considero mais fascinante na obra de Bakhtin é o riso. Tanto assim que o trouxe para estudos e pesquisas e para minha atividade docente, como também o incorporo em outras esferas de minha vida. Grande revitalizador do diálogo, o riso possui um caráter libertador.

Neste texto, procuro destacar a importância dos gêneros carnavalescos para a educação escolar, através da interpretação de um evento ocorrido em uma sala de aula de quinto ano do ensino fundamental. Na ocasião, a professora propôs à turma a leitura do livro “Poemas para brincar” de José Paulo Paes (1990).

A professora entrega um exemplar a cada aluno e comenta que o livro tem poemas divertidos. Curiosas, as crianças começam a ler o livro. Riem muito. Não se contêm e levantam da carteira para mostrar ao colega, rompendo com a ordem estabelecida nas aulas – as crianças assentadas nas carteiras enfileiradas.

A alegria toma conta da sala de aula, com os meninos e as meninas lendo em voz alta, prazerosamente, anotando o de que mais gostaram, principalmente os poemas engraçados como estes:

RESPOSTA

Vá plantar batata.

Depois você descasca?

- Vá lamber sabão.

Pois não. Mas me empresta a sua língua que a minha já está limpa.

Vá ver se eu estou na esquina.

Fui e nada vi: o bobo estava aqui.

- Vá caçar sapo.

Cacei, aqui está: mande logo pro papo.

CEMITÉRIO

1.

Aqui jaz um leão

Chamado Augusto.

Deu um urro tão forte,

Mas um urro tão forte,

Que morreu de susto.

(...)

A produção oral e popular é fecundada pela letra nos poemas. A partir de frases populares que ficaram consagradas para constranger pessoas inconvenientes, o poeta José Paulo Paes cria respostas para que aqueles que são considerados chatos resgatem sua dignidade. As crianças, para quem as frases já devem ter sido ditas, encantam-se com as respostas inventadas. O cemitério, lugar normalmente desagradável, torna-se, poética e irreverentemente, local onde estão pessoas ou bichos que tiveram morte absurda, engraçada. A morte, neste caso, torna-se motivo de riso.

A poesia de José Paulo Paes traz para a sala de aula o riso, marca do homem, riso festivo que relativiza toda superioridade (BAKHTIN, 1996), através dos elementos ambivalentes do carnaval que os poemas contêm, como, por exemplo: o sério-cômico, a coroação-destronamento, o livre contato familiar entre os homens, o sublime e o grotesco, a alegre relatividade que impede que o pensamento se imobilize na seriedade unilateral. A lógica carnavalesca é a do mundo às avessas (BAKHTIN, 2002). Através da linguagem carnavalesca da paródia, muitas “camadas” da vida podem ser apreendidas, conscientizadas e expressas.

A paródia é um elemento inseparável dos gêneros carnavalizados. Trata-se da criação do duplo destronante do mesmo mundo às avessas.

A palavra paródia, etimologicamente, significa um canto paralelo (para-ode), ou seja, trata-se de um discurso duplamente orientado que leva em conta o discurso do outro, o segundo contexto. Ao falar a linguagem do outro, o autor permite que ela se instale em seu próprio discurso, ao mesmo tempo, reveste essa linguagem de uma orientação diametralmente oposta à do outro. “A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes” (BAKHTIN, 2002, p. 194).

As duas vozes, sendo hostis, não se fundem, contudo entram em contradição ou contrariedade, por meio do emprego irônico e todo emprego ambíguo do discurso do outro.

As palavras do outro, revestidas de um novo acento (ou valor), tornam-se bivocais pela nova compreensão e avaliação que recebem. Instaura-se assim uma relação dialógica com as palavras do outro. Ao mesmo tempo em que se opera uma subversão da autoridade da palavra do outro, imprime-se autoridade a novos dizeres. É possível revolver camadas da vida social, desfazendo-se supostas verdades e raciocínios, dessacralizar valores instituídos e desvelar uma outra face do mundo.

E as crianças ficam muito satisfeitas de apresentarem os poemas em voz alta, podendo dizer dentro da própria escola que férias é um período muito mais prazeroso do que o tempo de aula, apropriando-se da voz do poeta para relativizar o caráter normativo de verbetes. A ordem alfabética é mantida pelo poeta, tal como nos dicionários, mas as definições se aproximam da vida cotidiana, primando pela concisão e expressividade da linguagem:


O dicionário é ressignificado pelo poeta, que transgride normas de comportamentos sociais desejáveis sob a forma de poema, sugerindo às crianças o arbitrário da significação. O próprio poeta diz que “esta forma de dizer as coisas ao contrário do que são na realidade cria efeitos de surpresa e de extravagância com que se diverte a imaginação infantil” (PAES, 1996, p.20). Por isso, dá às crianças o gosto de rir.

A maioria decorou o poema que iria apresentar. Um menino chegou a memorizar o livro inteiro. Duas meninas que já haviam se apresentado, quiseram falar outro poema.

Interessante foi observar que, após as apresentações dos poemas pelos grupos, a professora entendeu que estava encerrada a atividade, só que as crianças quiseram repeti-la, apresentando novamente, tamanha era a alegria. Repetição, nesse caso, diferente de exercícios de escrita repetitivos e sim como prazer de brincar de novo, recriando no caso a experiência da brincadeira com as palavras – o “fazer sempre de novo” (BENJAMIN, 1994, p. 253).

Se para Bakhtin (TEZZA, 2003) a tarefa da poesia de seu tempo era a centralização cultural, nacional e política do mundo verbo-ideológico nos níveis sócio-ideológicos oficiais mais altos, na sala de aula a poesia vai se identificar com os níveis mais baixos. Como nos palcos das feiras e espetáculos bufões em que a literatura das fábulas, canções, provérbios e anedotas ridicularizavam as linguagens dos poetas, estudiosos, monges, cavaleiros e outros, desconstruindo ou relativizando a literatura considerada oficialmente autêntica e incontestável, a presença dos textos de José Paulo Paes e sua interação com os alunos questionam a rigidez de uma burocracia que vigora na educação escolar. Constata-se, então, que a alegria e a gargalhada festiva não comprometem o conhecimento. Se o riso é a marca do homem, que seja também uma marca da escola.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média: o contexto de Françoise Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1996.

______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

PAES, J. P. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 1996.

______. Poesia para Crianças. São Paulo: Giordano, 1996.

TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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