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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

Diálogo na formação continuada de professores

Marília Curado Valsechi1

“o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas” (Bakhtin, 2003, p.300)


O conceito de “diálogo” é fundamental para a compreensão do pensamento bakhtiniano, razão pela qual se estabelece uma identificação do pensamento do Círculo como a “metáfora do diálogo” (FARACO, 2009, p.60). Faraco (2009) afirma que tal identificação tem levado a um habitual e generalizado uso do termo “dialogismo”. O autor chega a considerar o conceito como palavra muitas vezes “mal-dita” pelos diferentes sentidos que podem ser atribuídos a ele, como a troca de turnos em uma conversa face a face, a representação das conversas nas narrativas escritas ou ainda o sentido de “consenso”, “entendimento”; nenhum deles correspondente à significação do termo bakhtiniano.

O diálogo, no pensamento do Círculo, se refere a um conceito mais amplo, isto é, à noção de que os enunciados constituem-se em réplicas a enunciados anteriores, aos discursos prévios de enunciadores (à “voz alheia”). Todo enunciado é “um elo da cadeia da comunicação discursiva”, repete várias vezes Bakhtin (2003, p. 272, 279, 289, 296, 299, 300, 306), no livro “Estética da Criação verbal2”. Portanto, ressalta o autor, por mais que aparente ser monológico, o enunciado é sempre resposta (ativa) a enunciações anteriores. Ele nunca será um ato individual, pois sua natureza é social. Desde a sua forma mais primária de construção, isto é, no discurso interior, existe a orientação social do enunciado, pois o social já está na estrutura da atividade mental. Como afirma Voloshinov (1981)3 mesmo “os discursos mais íntimos, eles, também, são inteiramente dialógicos: eles são atravessados pelas avaliações de um ouvinte virtual, de um auditório potencial, mesmo se a representação de tal auditório não aparece de forma clara no espírito do locutor”.

Portanto, a enunciação nunca poderá ser uma criação individual, pois é formada por uma teia de discursos sociais já incorporados no discurso interior do enunciador por meio das interações já estabelecidas ao logo de suas experiências (cf.VOLOSHINOV/BAKHTIN, 2004)4.

O diálogo bakhtiniano está estreitamente ligado à atitude responsiva ativa, em que todo e qualquer enunciado se constitui. Assim, ainda que a compreensão não se efetue, sempre há uma resposta, que não necessariamente virá logo em seguida do enunciado; e essa resposta é sempre uma reação ativa.

Faraco (2009), falando sobre o conceito de diálogo do Círculo bakthiniano, apresenta as três dimensões de seu significado. Segundo o autor, conceber a linguagem dialógica implica considerar que “todo dizer não pode deixar de se orientar para o ‘já dito’”, ou seja, todo enunciado constitui-se em réplica a enunciados anteriores; “todo dizer é orientado para a resposta”, o que implica que o enunciado não só se constitui como uma réplica, mas também espera uma resposta e “todo dizer é internamente dialogizado”, ou seja, é heterogêneo, constituído no confronto de múltiplas vozes. (FARACO, 2009, p.59-60).

Vejamos, no excerto de interação abaixo5, correspondente ao final do segundo módulo de um curso6 de formação continuada inserido no Programa Teia do Saber, como as relações dialógicas se fazem presentes no enunciado do formador e do professor alfabetizador.



1

2

3

4

5

6

T66

Lucas:

a gente ESPERA que no trabalho que vocês escrevam que apareça aquilo que vocês aproveitaram do curso./.../ E a gente espera muito que vocês considerem o texto como um todo, como uma unidade, e não apenas um exercício de aprendizado da escrita. Porque, por exemplo, se você apenas... se a atividade principal é pegar um texto, fatiar, depois recolar, isso é uma atividade que está voltada para a pura decodificação do texto

/.../

7

8

9

10

T71

Carmem:

e essa questão da reescrita do texto com os recortes das palavras, porque eu acredito que muitos façam, é por exemplo assim, é uma música que geralmente a criança já saiba, já conheça, você trabalha aquela musiquinha e aí o que acontece, ela vai reescrever essa música que ela conhece /.../

11

12

13

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T72

Beatriz:

porque ela vai colocar em jogo as hipóteses dela, ela vai tentar descobrir qual é, quem é pré-silábico, silábico e alfabético, vai pegar o ve::rso inteiro, então eles vão cantando e vão vendo, vão fazendo esse jogo na hora de montar.

/.../

15

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T75

Lucas:

Mas eu acho ainda que fica voltado para essa relação do texto, né? do texto escrito com/ como registro... do som, né? se não tiver esse outro trabalho que ela apontou... fica nisso.

18

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20

21

22

23

T6

Carmem:

não, sim, mas a musiquinha também dentro de um contexto, é isso que eu to falando, a gente sempre, essas duas atividades são coisas que a gente tem feito muito, até porque tem muita gente que faz o Letra e Vida e são atividades sugeridas, então todo mundo ta fazendo, a gente sabe. E o que acontece? É bem dentro disso, você ta trabalhando um conteúdo, você não vai pegar uma música do nada.


Nesse trecho de interação, o formador está discutindo com os professores em formação – professores alfabetizadores – sobre o trabalho da avaliação final do curso, a avaliação do segundo módulo (projeto de leitura). Notamos que o discurso do formador constitui-se como um discurso acadêmico, que é orientado pela prática acadêmica de teorização, que valoriza, sobretudo, a consistência teórica. O professor alfabetizador, por sua vez, está orientado para a prática de ensino, pautado em teorias que concebe serem mais convenientes para seu trabalho. A diferença na orientação discursiva entre ambos é o que leva ao conflito, ao impasse na interação entre formador e professor alfabetizador.

Em virtude dessas diferentes orientações, o formador faz críticas em relação à concepção que baseia a prática do professor alfabetizador, procurando enfatizar que as atividades de recortar o texto, para depois colar frases em uma seqüência temporal ou causal, não contemplam uma concepção de texto enquanto “unidade de sentido” – defendida no curso – e acabam reduzindo a prática da leitura como “pura decodificação do texto”. É importante ressaltarmos que, ao exemplificar uma atividade voltada unicamente para um exercício de decodificação do texto escrito (linhas 4-6: Porque, por exemplo, se você apenas... se a atividade principal é pegar um texto, fatiar, depois recolar, isso é uma atividade que está voltada para a pura decodificação do texto.), o formador está fazendo referência aos trabalhos elaborados pelos professores alfabetizadores em função da avaliação do primeiro módulo do curso (um plano de aula de leitura), em que muitos alfabetizadores elaboraram atividades de colocar frases na seqüência correta do texto. O discurso do formador, portanto, constitui-se em uma atitude responsiva crítica em relação aos trabalhos realizados para a primeira avaliação, com os quais ele estabelece relação dialógica.

O diálogo estabelecido entre o discurso do formador e o do professor alfabetizador – textualizado no plano de aula – reafirma aqui o caráter da tensão, do conflito, que Voloshinov (1929, p.80 apud FARACO, 2009, p.69) denomina de “tenso combate dialógico”: “qualquer enunciado concreto (...) faz uma declaração de acordo ou de desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapostos, como se alheios uns dos outros, mas encontram-se num estado de tensão constante, ou de interação e conflitos ininterruptos”.

Em resposta à apreciação avaliativa crítica do formador, as professoras alfabetizadoras contra-argumentam, tentando mostrar como a atividade de recortar e colar as frases tem contexto, aquele fornecido pela versão musicada do texto escrito (linha18: “não, sim, mas a musiquinha também dentro de um contexto”). Na réplica à crítica do formador, as professoras alfabetizadoras revozeam o discurso da psicogênese da língua escrita, mantendo com este fortes ressonâncias dialógicas, explicitado pelo uso dos termos “pré-silábico”, “silábico” e “alfabético”. E nessa relação dialógica, observamos uma ressignificação dos conceitos da teoria da psicogênese da escrita, de Ferreiro e Teberosky (1985), que, de indicadores das fases de desenvolvimento das hipóteses da criança em relação ao domínio da escrita, passam a ser utilizados para a personificação e classificação dos próprios alunos (linha 12: “quem é pré-silábico, silábico e alfabético”). Essa ressignificação pode ser considerada como resultante de um processo de apropriação de saberes, veiculados em outros contextos formativos, como é o caso dos cursos Letra e Vida7, que seguem a perspectiva construtivista para a alfabetização. A mudança de significado resultante da apropriação, ou seja, do processo de tornar própria a palavra do outro, é esperada, já que segundo Bakhtin (1998, p.141), “o discurso de outrem incluído no contexto sempre está submetido a notáveis transformações de significado”.

Observamos aqui que formador e professoras alfabetizadoras estão tratando de objetos diferentes, devido à diferença na orientação discursiva de cada um, levando ao impasse nesse diálogo (no sentido estrito do termo). De um lado, o formador afirma que mesmo quando a música é apresentada dentro de um contexto, permanece a relação “do texto escrito como registro do som” se a atividade principal consistir na simples ordenação de frases segmentadas (linhas 15-16: “Mas eu acho ainda que fica voltado para essa relação do texto, né? do texto escrito com/ como registro... do som, né?”). De outro lado, a professora alfabetizadora compreende a réplica do formador como uma crítica à falta de “contextualização” das atividades e, então, responde que o texto trabalhado – que é de conhecimento decorado do aluno –, é tratado dentro de um contexto, já que seu tema está inserido em um dos conteúdos escolares previstos; contestando, assim, a crítica de seu interlocutor. Notamos, portanto, que as professoras alfabetizadoras não percebem a diferença entre os objetos referidos: práticas pedagógicas de leitura e as concepções de texto e leitura que as embasam, por parte do formador, e o domínio do sistema ortográfico, por parte das professoras alfabetizadoras. O enunciado “É bem dentro disso, você ta trabalhando um conteúdo, você não vai pegar uma música do nada” evidencia que a professora alfabetizadora considera ambas as perspectivas como semelhantes. A réplica das professoras alfabetizadoras à crítica do formador reafirma a tese de Bakhtin (2003, p.275) de que “cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui uma conclusibilidade específica ao exprimir certa posição do falante que suscita resposta, em relação à qual se pode assumir uma posição responsiva”. Compreende-se “posição responsiva” como a resposta que o outro falante emite imediatamente ao seu interlocutor em função do enunciado do falante (se concorda, discorda, avalia,...) (BAKHTIN, 2003, p.278).

A referência ao discurso dos cursos “Letra e Vida”, com o qual as professoras estabelecem nítidas relações dialógicas, funciona como uma estratégia argumentativa para conferir autoridade ao ponto de vista das alfabetizadoras, que tomam o discurso desse programa, portanto, como um “discurso de autoridade”, na concepção do Círculo bakhtiniano.

Segundo Bakhtin (1998), há duas formas de se relacionar com o discurso do outro: tomando-o como a “palavra autoritária”, que, como tal é reverenciada e transmitida, e como a “palavra interiormente persuasiva”, a qual será assimilada pelo nosso discurso e, no processo de apropriação, se tornará a “nossa palavra” (BAKHTIN, 1998, p.145). No excerto analisado, as professoras alfabetizadoras tomam o discurso do “Letra e Vida” como um discurso de autoridade, visto que mostram uma adesão incondicional das atividades sugeridas nesse programa. A professora, ao colocar não só a si própria, mas todos que participam do referido curso, como seguidores de seus ensinamentos (linhas 20-21: “até porque tem muita gente que faz o Letra e Vida e são atividades sugeridas, então todo mundo ta fazendo, a gente sabe”.), evidencia que os saberes veiculados no curso do Letra e Vida são muito valorizados entre os alfabetizadores. Por outro lado, aceitando, ou aderindo, incondicionalmente ao discurso (ou à voz) do curso Letra e Vida, as professoras alfabetizadoras estão negando outros enunciados, outras vozes sociais, como é o caso do enunciado do formador, que não segue a perspectiva construtivista da psicogênese da escrita, mas uma perspectiva sócio-interacional, baseada numa concepção bakhtiniana da linguagem e sócio-cultural da escrita, própria dos Estudos do Letramento. Isso deixa evidente a tese do Círculo de Bakhtin de que “diversas vozes alheias lutam pela sua influência sobre a consciência do indivíduo”. (BAKHTIN, 1998, p.148) Assim, observamos a atuação do discurso do formador como uma força centrípeta, que busca impor a sua voz sobre a heteroglossia que constitui a palavra, no caso, do professor alfabetizador.

Nesse sentido, a análise colabora para mostrar como a palavra do formador, assim como a dos professores alfabetizadores, estão em “permanente diálogo entre diferentes discursos” (Brait, 2005, p.94).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. O discurso no romance In: ___. Questões de literatura e de estética. Tradução Aurora F. Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Editora Unesp, 1998.

______. Estética da Criação verbal. Tradução Paulo Bezerra 4a. ed. Martins Fontes, 2003.

FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Tradução Diana M. Lichtenstein, Liliana Di Marco e Mário Corso. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

VALSECHI, M. C. Desenredando os fios da Teia: análise de um curso de formação continuada no contexto do Programa Teia do Saber. 2009. 180 f. Mestrado (Lingüística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

VOLOSHINOV, Valentin N. Estrutura do enunciado.Tradução Ana Vaz para uso didático com base na tradução francesa de Todorov, T. (La structure de l’énoncé) publicada em Mikhaïl Baklhtine. Le principle dialogique, suivi de Ecrits du cercle de Bakhtine, Paris, Seuil, 1981.

VOLOSHINOV/BAKHTIN, Marxismo e filosofia da linguagem.11.ed. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira São Paulo: Hucitec, 2004.




1 Mestre em Lingüística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP).

2 Há duas datas que costumam ser retomadas como a data original desta obra, 1953/1979.

3 A data original deste texto é 1930.

4 A versão original deste texto data de 1929.

5 Esse trecho de interação foi analisado na minha dissertação de mestrado Desenredando os fios da Teia: análise de um curso de formação continuada no contexto do Programa Teia do Saber, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), em 2009.

6 Trata-se do curso oferecido, em 2006, por uma equipe do Grupo Letramento do Professor, ambos coordenados pela Profa. Dra. Angela Kleiman, pertencente à categoria “Ler para Aprender”, do Programa “Teia do Saber”, em uma parceria entre o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP) e a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEESP).

7 “Letra e Vida” corresponde ao antigo Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), de âmbito nacional, que continuou a ser oferecido no estado de São Paulo com essa nova designação. Iniciado em 2003, os cursos do Letra e Vida são coordenados por Telma Weizs, uma das autoras responsáveis pela divulgação dos estudos de Emília Ferreiro no Brasil, que também coordenou a equipe pedagógica concebedora do PROFA.

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