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O intuito discursivo possibilitando reflexões sobre o desempenho narrativo de uma criança com atraso de linguagem

Evani Andreatta Amaral Camargo

Introdução

Alguns conceitos bakhtinianos me inquietaram e, ao mesmo tempo, abriram caminhos para a discussão das hipóteses levantadas na tentativa da solução de problemas (que, muitas vezes, resultaram em outros) nas buscas teóricas e predominantemente práticas em minha atuação profissional. Como fonoaudióloga e supervisora de estágios nessa área, deparei-me com crianças e adolescentes que apresentavam alterações e atrasos no desenvolvimento lingüístico decorrentes, ou não, de alterações orgânicas. Os conceitos que têm me orientado na busca da solução apontada acima são os seguintes: alteridade, intuito discursivo (querer dizer do locutor), enunciação e gênero discursivo. Neste texto pretendo discutir o intuito discursivo, que se realiza no inacabamento constituinte, tendo com exemplo o desempenho narrativo de uma criança em desenvolvimento lingüístico.

Para Bakhtin (1995, 1997), é na interlocução que os sentidos são produzidos, formados nos espaços discursivos, constituídos socialmente em um determinado momento histórico. Desta forma, o sentido e o sujeito são sempre indeterminados e se completam no processo de interlocução, no espaço discursivo e pela historicidade da linguagem (GERALDI, 1997).

Tal autor também argumenta que, nesta perspectiva, o sujeito e a linguagem são mutuamente constitutivos, ancorados nas condições de produção extralingüísticas, assim como na produção econômica da sociedade na qual o sujeito vive. Desta forma, os sentidos construídos nas sucessivas interlocuções vão sendo estabelecidos pelos indivíduos e decorrem do contato que cada um deles tem com diversos interlocutores. Além disso, a língua enquanto sistema é somente uma abstração, o importante é a significação que adquire no contexto, ao ser usada pelos falantes, de modo a possibilitar a construção dos sentidos nas enunciações. Ao dirigirmos a palavra a um interlocutor, ela assume uma função específica, variável, dependendo de se tratar de uma pessoa de um mesmo grupo social ou não, de pessoas ligadas ou não por laços estreitos etc.

A palavra é orientada em função do interlocutor e tem duas faces, é determinada tanto pelo fato de proceder de alguém, como por se dirigir a outrem. Constitui justamente o produto da interação entre locutor e ouvinte, e é por meio da palavra que o homem se define em relação ao outro e à coletividade. Nesta perspectiva, os sujeitos não são vistos somente como “sujeitos falantes”, “usuários de códigos lingüísticos”, mas como sujeitos psicológicos e sociais. De acordo com Faïta:

... a atribuição de ‘sentido’ a um objeto (a uma palavra) não é uma operação de etiquetagem, mas sim o produto de uma relação que cada indivíduo, cada locutor ou interlocutor constrói a seu modo. Trata-se, pois, de uma operação que implica uma grande parte de subjetividade, o ponto de chegada de um processo e não um procedimento totalmente estabelecido. (FAÏTA, 1997: 159).

A interlocução configura-se pela sucessão de enunciados e cada um deles sempre se realiza como réplica ao anterior. É uma unidade real, sendo que as fronteiras de cada um estão determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, que pode ser observada no diálogo, pois, nesse caso, os enunciados dos interlocutores (réplicas) alternam-se regularmente. O que a réplica permite, por mais fragmentária que seja, é uma posição do interlocutor. Desse modo, “as pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística) ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda da língua – palavras, combinações de palavras, orações...” (BAKHTIN, 1997, p. 297).

Assim, a possibilidade de réplica, na qual estão implícitas a argumentação e a contra-argumentação, permite aos falantes que sejam dadas ressignificações aos sentidos que estão sendo construídos. Pode-se inferir, portanto, que aqui há a possibilidade das intervenções nos processos terapêuticos. Além disso, a idéia da indeterminação permanente do sujeito, que se reconstitui a cada interação verbal, possibilita a investigação para a análise do processo terapêutico fonoaudiológico.

Complementando, gostaria de trazer a idéia de outro autor, Vigotski (1984, 1987), para quem a estrutura e a formação da atividade psíquica realizam-se no processo do desenvolvimento social da criança, em colaboração com o meio social com o qual ela se relaciona, o que resulta nas funções mentais superiores (linguagem, cognição e memória volitiva, por exemplo). Para isso, faz-se necessário, portanto, tal contato; e o desenvolvimento, para este autor, decorre do aprendizado, que, por sua vez, em uma inter-relação dinâmica é impulsionado pelo desenvolvimento anterior. Desta forma, aprendizado e desenvolvimento ocorrem no processo de mediação, em colaboração com o outro, ou no contato com os objetos e signos culturais. O social, portanto, é o lugar no qual a aprendizagem e o desenvolvimento ocorrem.

Para estabelecer a discussão sobre narrativa, que é um dos focos deste texto, adoto a definição de Labov (1972): um modo de recapitular experiências passadas em uma seqüência verbal de proposições na mesma ordem de eventos em que o fato ocorreu. Segundo ele, a estrutura da narrativa é composta pelos seguintes elementos: resumo ou síntese; orientação, ação complicadora (inédito ou episódio inesperado); evolução; avaliação; resolução e finalização ou coda. A avaliação tem a função de informar a carga dramática e/ou emocional da situação/eventos, sendo a razão de ser da mesma, já que é por meio dela que o narrador indica o porquê da história (fato) ser ou não contável (reportável). Desta forma, a reportabilidade é um conceito fundamental para este autor, tanto para caracterizar uma narrativa, quanto por ser através dele que os sujeitos colocam-se, manifestam sua subjetividade; assim, cada sujeito escolhe a história ou fato que quer contar e o quê vai ser realçado, trazendo aí sua motivação, além de concepções, opiniões e posições políticas, históricas etc. É o que caracteriza de fato a narrativa. Apesar de nem todas as narrativas apresentarem todos os elementos dispostos por Labov, são fundamentais a ação complicadora e a reportabilidade do fato ou história a ser narrada. Além disso, para ele, a avaliação traz o posicionamento pessoal do narrador. O autor argumenta que ela pode ocorrer em um momento determinado ou perpassar toda a narrativa.

Aqui é possível fazer uma co-relação com o ‘querer dizer’ ou intuito discursivo da teoria bakhtiniana. É o momento em que a voz do sujeito que narra pode ser identificada. Não é à toa que os falantes escolhem determinados fatos ou histórias para narrar, como também não é à toa que marcam determinadas passagens de tais relatos. Desta forma, talvez esteja aqui uma possibilidade de se trabalhar com as dificuldades lingüísticas, dando elementos para que crianças/ pessoas com tais dificuldades possam lançar mão disto, ou seja, de sua ‘voz’, de seu intuito discursivo. É preciso identificar o quê os sujeitos narram e o quê apagam de histórias, fatos vividos ou relatados e o porquê. Assim, avalio que este seja um ponto fundamental para emergir a subjetividade da criança que aqui apresento, bem como de outros sujeitos com dificuldades lingüísticas.

Faz-se também fundamental que o adulto interlocutor dessa criança a auxilie a construir a narrativa com o que ela sabe da história narrada; ou sobre as experiências vividas pela criança com dificuldades de linguagem: informações dadas pela família, nome de familiares, passeios preferidos da criança, nome de animais domésticos etc. Narrar significa recapitular ações vivenciadas na ordem em que ocorreram. Ao se tratar de relatos pessoais, é necessário considerar aquilo que foi da experiência da criança. Se a criança não relata independentemente, o adulto tem que compartilhar tais conhecimentos para ajudá-la a construir o que quer dizer, ou seja, seu intuito discursivo.

O Episódio

Para apresentar a proposição acima, trago parte de um dado de um atendimento clínico fonoaudiológico, coletado em um projeto realizado em uma clínica-escola de Fonoaudiologia do interior de São Paulo. Trata-se de uma criança, Be, de 7 anos e um mês, que havia começado o atendimento fonoaudiológico um ano antes. Apresentava como hipóteses diagnósticas fonoaudiológicas: Alteração Fonoarticulatória, de Linguagem Oral e de Motricidade Oral, e Atraso na Aquisição da Linguagem Escrita. Apresentou atraso no desenvolvimento da linguagem e no desenvolvimento neuropsicomotor.
O episódio para discussão foi filmado e a transcrição segue abaixo.

Situação: O atendimento fonoaudiológico era realizado em dupla, sendo que na sala de terapia havia mesas pequenas encostadas, formando uma mesa maior. A terapeuta (Ter) estava sentada ao lado do companheiro de grupo de Be (Cv). Ela estava sentada em frente. Cv tinha como diagnóstico fonoaudiológico alteração fonoarticulatória e um leve atraso de linguagem.
Sobre a mesa havia uma cesta de plástico com materiais usados em terapia: livros de história, quebra-cabeças e canetas hidrocor. Após montar um jogo de quebra-cabeça, cujas figuras eram de gato e cachorro, a Ter propôs que as crianças e ela fizessem um desenho. Enquanto desenhavam, conversavam sobre cachorro, gato, filhotes. Cv solicitou à terapeuta que escrevesse o número 5, e então as crianças passaram a falar em 5 filhotes.

Para a discussão e análise dos dados, a transcrição foi feita baseando-se no sistema de codificação estabelecido pelo BDN, Banco de Dados Neurolingüísticos. Este modelo de Banco de Dados foi elaborado por um grupo de pesquisadores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) – UNICAMP, coordenado pela Profa Dra Maria Irma Hadler Coudry, para análise da linguagem de sujeitos cérebro-lesados (FEDOSSE, 2008). Entendo que este modelo pode ser efetivo para a análise da linguagem de Be, o sujeito aqui trazido, pelas características apresentadas por ele.

N. da linha (turno de fala)

Sigla (ou nome) do locutor

Transcrição da Fala

Observação sobre a condição de produção do enunciado verbal

Observação sobre a condição de produção do enunciado não verbal

1

Ter

O que tem no trabalho da gata? Onde a mãe levou os gatinhos?

2

Be

A mãe?

3

Ter

Não, a mãe da gata

4

Be

Levou eles passear, lá onde ela trabaia

5

Ter

Ah! Agora eu entendi! Ela levou os gatinhos pra trabalhar... pra passear ... ela levou os gatinhos onde ela trabalha pra passear!

Com a mão no rosto tentando entender

6

Be

É.

7

Ter

Os cinco, ela levou?

8

Be

Seis!

9

Ter

Seis?

10

Be

Seis gato! Um um que moeu...

Hesitação

Contando com os dedos da mão

11

Ter

Ah! Se morreu não foi!

Interrompendo Be

12

Be

É.

13

Ter

Se morreu, não foi. Não é?

14

Be

Um qui opeô e moeu!

Hesitação no início da fala

Vai tocando os dedos de uma mão ma outra, indicando contar

15

Ter

Quê? Operou e morreu?

16

Be

Opeou e moeu

17

Ter

Operou e morreu?

18

Cv

Operou e morreu!

......

29

Be

É, a mãe du gatu moeu!

30

Ter

A gatinha morreu?

31

Be

Daí. .. a mãe do gatinhu moeu, a mãe do gatinho moeu puque tava cum dor de cabeça, aí,sabe, a polícia atirou na cabeça que tava com dor de cabeça ...

Levanta e fica em pé ao lado da Ter

Gesto afirmativo com a cabeça

......

52

Ter

Ah! Tadinha. Além de ir trabalhar, levar 5 cinco gatinhos juntos, ainda morre atropelada?

53

Be

É.

Ênfase

54

Ter

Mas o bombeiro...

55

Be

Puquê aí u carro viu e atopelo! Ela tava aqui, oh! A hola que ele viu topelô! Puquê o gato atopelô. A van atopelô assim...

Em pé, ao lado da Ter, vai andando até a parede, passo a passo, como se estivesse representando algo

56

Ter

Mas, viu, ela foi atropelada ou a polícia que deu um tiro na cabeça dela porque ela estava com dor de cabeça e febre o dia inteiro?

57

Be

É! Hora que veio, que topelô.

Polícia falou assim: -Você não pode fazer assim não, vou atirar.

58

Ter

Mas não pode ser as duas coisas, pode?

Aproxima as mãos

59

Be

Pode!

60

Ter

Por quê? Como pode?

61

Cv

Porque... Por causa ela tava morrida e o carro matou mai ainda!

Ter olha para Cv

62

Ter

Ela já estava morrida?

Ri

63

Be

É


Discussão

Em relação à narrativa, verifica-se que a mesma está sendo dialogicamente construída por Be, a principal narradora, a terapeuta e o outro colega. A menina apresenta características do discurso narrativo (encadeia 2 eventos, usa o tempo perfeito, usa os operadores de narrativa), mas ainda não é uma narradora independente, se nos atermos ao sentido; usa a argumentação e tenta todo o tempo incluir fatos em sua narrativa para que a mesma seja “reportável” e para assim, ser o principal locutor. Neste ponto pode-se inferir a questão do intuito discursivo e do inacabamento constituinte do sentido que está sendo estabelecido nesta interação verbal. Be é a narradora neste momento, vai retomando, completando, colocando-se para não perder este lugar, de locutora; sendo difícil estabelecer se ela quer se fazer entender ou, se quer, simplesmente, não perder o turno discursivo. Como não havia um enredo fixo, como o de uma história contada, a criança passa a elaborar, baseada no que havia ocorrido na terapia anteriormente, a montagem de um quebra-cabeça de gato, a questão do número cinco que havia surgido; fatos que ela deve ter ouvido ou presenciado, misturando-os aos personagens. Pode-se verificar durante o episódio apresentado, uma negociação de sentidos. Be vai mudando o que fala para se manter no papel de locutor, como, por exemplo, nos turnos de 7 a 14, quando inicia a questão de morte, morrer etc, pra confirmar o número de gatos (5 ou 6), já que tem que ser cinco, um morreu – esse vocábulo acaba modificando o enredo que estava sendo elaborado.

Fica claro neste episódio como, mesmo com um fato que foge da realidade, a criança se coloca e vai se constituindo como sujeito (ao menos sujeito discursivo), conseguindo-se identificar como isso se dá pela tentativa de argumentação e da necessidade da reportabilidade.

Nos trechos do episódio aqui apresentado, a terapeuta tenta resgatar o que Be narra, tentando organizar o texto baseado na realidade; provavelmente pelo papel que é dado ao fonoaudiólogo, o de tentar possibilitar o desenvolvimento lingüístico. Retoma com a criança uma lógica de encadeamento dos fatos e poderia estar também tentando com que a criança criasse uma história, que embora fictícia, com personificação dos personagens, compusesse tal encadeamento.

A criança, ao mesmo tempo em que parece saber que tem dificuldades para se fazer entender, como se assim tivesse se constituído enquanto interlocutor, também parece ter consciência de que possui conteúdos interessantes para relatar e quer ocupar o lugar na interlocução. O colega assume aí um papel fundamental; ao endossar a fala de Be, dá voz a ela e, assim, ela pode identificar este lugar (turnos 18 e 61). A terapeuta, também, permite esta construção, já que dá o aval, embora, nem sempre, entenda e resgate o intuito discursivo da criança, o que se configura como uma das características da enunciação e porque não dizer, do processo terapêutico.


Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda, 1997.
FAÏTA, D. A noção de gênero discursivo em Bakhtin: uma mudança de paradigma. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, p.159-178.
FEDOSSE, E. Processos Alternativos de Significação de um Poeta Afásico. Campinas. Tese (Doutorado em Lingüística) - Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
GERALDI, J.W. Portos de Passagem. São Paulo: Livraria Martins Fontes Ltda, 1997.
LABOV, W. Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1984.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1987.

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