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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

As modalidades: Língua oral, Língua escrita e Verbo-visual e as relações dialógicas entre interlocutores e entre os discursos

Elvair Grossi
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1 Introdução
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Este trabalho procura, dentro de um contexto contemporâneo, analisar um pequeno recorte, o Cavalo bento de Chicó, do Auto da compadecida, de Ariano Suassuna, levando em conta as modalidades: língua oral, língua escrita e verbo-visual (filme) e as relações dialógicas
entre interlocutores e entre os discursos, em esferas e lugares diferentes, marcando diferentes significados dentro de um
mesmo tema, a partir de autores, como Bakthin e seu Círculo, Beth Brait, Irene Machado, Marcuschi, Kerbrat-Orecchioni e outros teóricos que possam fornecer alguns substratos teóricos.
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O texto O cavalo bento de Chico mostra que a literatura ainda é [...] uma das maneiras de reconstituição do e
vento conversacional (BRAIT, 2003, p.229), um discurso dentro do discurso, com início, desenvolvimento e fim, o que propicia uma investigação detalhada. Como uma estória dentro da história, é possível observar como uma modalidade se apropria de outra modalidade, ou seja, as variações nos textos escrito, oral e verbo-visual. No texto verbo-visual (filme), a ausência de enunciado, sua marca constitutiva, remete a um significado mais dinâmico.
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2 Elementos que constituem e estruturam o texto escrito a partir do oral
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Em o cavalo bento de Chicó... , a passagem do oral para o escrito marca a relação entre as duas linguagens, uma apropriando-se da outra, o texto escrito constituindo-se a partir do oral, como mostra a fala de Chicó:
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Chicó ― Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento.
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João Grilo ― Que é isso, Chicó? (Passa o dedo na garganta.)(...)
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No texto ocorre alternância de turnos[1] entre Chicó e João Grilo, comum na linguagem oral, para manter a dinâmica do texto e motivar a interação. Segundo Bakhtin/Vololochinov (1992), as interações discursivas são constituintes do processo de construção de significado ou entendimento, visto como negociação entre enunciador e enunciatário, em que pode ocorrer disputa e embate. Em Chicó e João Grilo, interlocutores desta interação, há muitos traços comuns: ambos são pobres, solteiros, grandes companheiros e amigos, havendo até certa lealdade entre eles, o que acentua a estabilidade no nível das igualdades. João Grilo, analfabeto, é inteligente, dotado de grande sabedoria. Chicó, de muita imaginação, é medroso e mentiroso, o que vai se intensificando no desenrolar da interação. João Grilo rejeita as histórias de Chicó, imaginárias e folclóricas, e questiona as fontes, exigindo provas racionais de algumas passagens. Quando Chicó diz: Bom..”, no início do turno, poderia exprimir uma circunstância pelo
advérbio bom, que, segundo Marcuschi (2006), é um marcador conversacional, cuja função é dar continuidade ao diálogo.
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Chicó, ao dizer Bom,
toma uma posição e argumenta: ... eu sei como esse povo é cheio de coisas..... Como um conhecedor nato de sua gente, recobra uma memória coletiva, reinterpreta e rememora, atualizando todo um contexto histórico e social.
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Não sendo o sujeito fundador desse discurso, Chicó busca na tradição oral os relatos populares, lendários, folclóricos que fazem parte de sua formação cultural e social. Tais relatos ganham status de linguagem escrita, em que se imprimem as marcas da oralidade.
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Em o. povo é cheio de
coisas ..., linguagem típica da oralidade, não há definição de coisas, que generaliza toda uma situação, tendo apenas efeito semântico, de realce à palavra povo, típico da oralidade. O que vem confirmar, segundo nossas convicções, a forte presença da oralidade no estatuto da língua escrita..
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A passagem: ... eu mesmo já tive um cavalo bento ... traz uma expectativa ao interlocutor. A forma adverbial já indica ... em todo caso tive um cavalo bento ou . modéstia à parte, tive um cavalo bento. A expressão já só faz sentido pelo fato de o cavalo não ser comum, mas bento, dotado de elementos sobrenaturais, folclóricos, um cavalo que escapa à compreensão humana e se aproxima do mito, como o Pegasu
s da mitologia grega. O cavalo realiza tantas proezas, que provoca questionamento e ironia por parte de João Grilo:
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Que é isso Chicó? (passa o dedo na garganta.) (...)
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João Grilo busca uma explicação daquilo que não se explica, que faz parte da tradição oral e da memória coletiva, opondo-se ao discurso do “outro” pela entonação. Segundo Bakhtin/Volochinov (1992a), a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados ( p.112), procede de alguém e se destina a alguém, o que supõe uma réplica, uma reação. Fora dessa situação enunciativa, haveria apenas uma interrogação, ou melhor, uma pergunta feita por ele, numa relação de interlocução, pergunta/resposta, nada mais. ― Que é isso, Chicó?
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A fala de João Grilo, porém, não é apenas interrogação, mas exprime rejeição, oposição ao discurso do “outro”. Seu dizer produz um efeito de sentido, pois a enunciação é produto da interação entre o locutor
e o receptor..
Na mesma passagem, uma estrutura diferencia-se das demais, aparecendo uma única vez:
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Que é isso, Chicó? (passa o dedo na garganta)...
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Para Bakhtin, a interação entre interlocutores é o principio fundador da linguagem. A manifestação do discurso se dá por meio da linguagem verbal ou verbo-visual, sendo dialógica por natureza. Em ...o cavalo bento de Chico, as relações dialógicas se dão entre discursos e, principalmente, entre interlocutores. (passa o dedo na garganta), entre parênteses, observação do autor, é uma tentativa de reconstituir um traçado da linguagem visual. Quanto ao parêntese, ensina Cunha (2001):
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1. O parêntese, Sintaticamente, consiste na intercalação de um trecho de discurso entre duas partes do mesmo período ou mesma oração. A parte que sucede o parêntese é a continuação da parte que o antecede.2. Parêntese num nível superior ao sintático é a intercalação de um trecho de discurso entre duas partes de um segundo discurso cujo núcleo temático é diferente. Assim como no parêntese sintático à parte do segundo discurso que sucede o parêntese é a continuação da parte que o antecede. 3. O parêntese é uma digressão, um desvio do nú
cleo temático e prejudica o processamento do discurso, pois suspende uma construção para retomá-la mais adiante, obrigando assim o receptor a uma retenção provisória de termos sintáticos órfãos.
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Assim, no texto, passa o dedo na garganta, remete ao sentido de estar saturado, “cheio”, não suportar mais a fala do outro.
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Um estudo mais amplo do processo interativo mostra que cada enunciado ocupa seu lugar, porém, não de forma autônoma ou isolada. Cada fragmento do discurso tem seu valor. Para Bakhtin, o discurso é uma construção híbrida, inacabada, com vozes em concorrência e sentidos em conflitos. O que
vem entre parênteses também é manifestação do dialogismo, de quem enuncia, no caso, integra-se à voz de João Grilo e qualifica sua atuação. Como texto extraverbal ou oral, procura produzir ou imitar o diálogo gestual oral, face a face no texto escrito.
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3 Elementos que constituem e estruturam o texto verbo-visual (filme) a partir do escrito

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Analisamos, agora, como uma modalidade discursiva apropria-se de outra e as relações dialógicas e extensões de significado. O mesmo recorte, em texto verbo-visual ou fílmico, responde ao texto escrito, mostrando suas relações dialógicas de sentido.
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Conforme Bakhtin (1992c), : o enunciado deve ser considerado, acima de tudo, como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera: refuta-os, confirma-os, completa-os, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. (p. 316)
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Nessa perspectiva, nen
hum texto ou discurso se constrói sozinho, mas a partir de outro. Na abertura do texto de Suassuna, Chicó se posiciona:
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Chicó ― Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento.
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João Grilo ― Que é isso, Chicó? (passa o dedo na garganta.) (...)
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No texto verbo-visua
l , o roteiro, conjugado com as imagens, sofre um corte na oralidade:
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colocar tabela novamente
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O texto verbo-visual é um evento híbrido, com sincretismo de linguagens, som, cores e cenografia, de extrema importância na constituição do discurso. Sua materialidade dá densidade ao visual e contribui para um efeito de sentido pelo cruzamento das várias linguagens que se interpenetram e se entretecem, assegurando a imitação do real. A fala de Chico, no filme, é cortada, dando espaço apenas para Eu mesmo já tive um cavalo bento, o que é recuperado pela materialidade da imagem.
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O enunciador apresenta Chicó e João Grilo no mesmo plano, mostrando vários aspectos representativos: a cultura regional, os traços físicos, a postura e forma dos personagens bem caracterizados pela imagem, o que lhes dá certa autenticidade. Chicó e João Grilo, ao interagirem pela oralidade, movimentam-se, caminham e gesticulam, incorporando o texto verbal que, agora, além imagem, tem uma extensão ampla de significados pela ação da câmera. A câmera é o narrador por excelência que mostra uma enunciação, importante para sustentar o discurso verbal, no âmbito social, his
tórico e ideológico.
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RECORTE 2




João Grilo - Que é isso, Chicó?

RECORTE 3




João Grilo - estou ficando por aqui com suas histórias.

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Nos recortes 2 e 3, verificamos perfeita conjunção entre oralidade e visualidade. O discurso de Suassuna ganha corpo, totalmente ancorado pela imagem. João Grilo, por meio de gestos, reconstrói os traços constitutivos do outro discurso. Os fios dialógicos conferem à imagem outro significado, resultado das relações com outras imagens, como no recorte do cavalo bento:
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As diferenças entre os discursos escrito, oral e fílmico são muitas. O enunciador, ao construir seu discurso, ao praticar a linguagem, constrói sua própria imagem, pois fala de um lugar que é, segundo Bakhtin, sua esfera de atuação e relações dialógicas. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social (BAKHTIN, 1992a, p.33). Assim, as diversas esferas são diretamente influenciadas pela formas de produção, circulação e recepção do discurso.
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4 Considerações finais
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Cada texto, cada discurso tem uma esfera de atuação e se constitui, procedendo de alguém e destinando-se a alguém, pois cada enunciador tem um horizonte social bem definido. Assim, a análise do nosso corpus aponta, a partir do mesmo tema, diferentes formas de constituição, diferentes textos e discursos, todos relacionados e imbricados dialogicamente, pois um requer o outro para sua constituição. Além disso, o verbo-visual (filme) tem um poder mais impactante, dispensando muitas palavras. O autor constrói altenâncias entre estilo coloquial e culto, alguns dizeres entre Chicó e João Grilo, seriam incoerentes em virtude de suas limitações lingüísticas, o que confirma um certo lastro lingüístico culto do enunciador.
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[1] Cabe aqui um esclarecimento que julgamos importante, segundo Marcuschi (2006, p.18,19), o turno é uma operação básica do modelo conversacional, porém não dever ser tomado como a unidade por excelência deste modelo. Nesta nossa análise, o turno está representado na interação escrita entre Chicó e João Grilo e, conseqüentemente, na oralidade. Cada vez que um falante faz uso da palavra, seja Chicó ou João Grilo, temos um encadeamento dialógico, há um turno. O turno está ligado às várias situações de alternância, podendo ser de parada, de troca, de réplica, de interrupção, de silêncio etc.
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5 Referências Bibliográficas
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BAKHTIN, M. M/Volochinov. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução Michel Laud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992a.
________ . Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Tradução Aurora F. Bernardini. São Paulo: Unesp / Hucitec, 1992b.
__________. Estética da criação verbal. Tradução Maria E. G. Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992c.
_________ . Problemas da poética de Dostoievski. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BRAIT, Beth. O processo interacional. In: Pretti, D. (org.). Análise de textos orais. 5ª. ed. São Paulo: Humanitas, 2003.
_________ A natureza dialógica da linguagem: formas e graus de representação dessa dimensão constitutiva. In: FARRACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin.. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.
_________ (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. São Paulo: Editora da Unicamp, 1997.
_________ (org.). Bakhtin outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
_________ (org.). Bakhtin conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2007.
CUNHA, Celso & CINTRA, Luís F. Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª edição. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 2001
KERBRANT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da conversação: princípios e métodos. Trad. Carlos Piovezani Filho. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
KOCK, Ingedore Villaça et. Al. Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 5ª. ed. São Paulo: Ática.2006.
SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 34º ed. Rio de Janeiro: Agir, 2002.


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