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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

No embalar da multiplicidade de vozes contemporâneas: a alteridade

Tatiana Aparecida Moreira

Embora Bakhtin e o Círculo não sejam nossos coetâneos camaradas, o que eles escreveram pode ser assim considerado, ainda que seus escritos remontem ao início do século passado. Como já é de conhecimento dos muitos estudiosos dos postulados bakhtinianos e do Círculo, a abrangência, nas diversas áreas de conhecimento, de sua obra dá-se, em vários níveis e aspectos, principalmente no que tange ao dialogismo, mola propulsora de seus estudos. Faremos, então, algumas incursões em distintos terrenos, como o da tecnologia, o da educação e o da música, neste pequeno diálogo que manteremos com essas vozes.

Nada mais atual do que a consolidação da internet como um dos principais veículos de informação, entretenimento, negócios, enfim, como canal de relacionamentos nas mais diversas formas, seja o empresário que, ao anunciar seu produto, em determinado site, tem por objetivo a aquisição desse produto pelo consumidor, seja o internauta que está ali teclando com seu amigo em um site de bate-papo. Nesse processo está presente o dialogismo e se percebe o que Bakhtin (1995, p. 113) mencionava sobre o fato de que “[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”. Assim, a palavra, representada por tudo aquilo que está presente em um site, anúncios, informações, propagandas, entre outros, é a ponte lançada entre o site e quem está por trás dele, o webdesigner, profissional que elabora um website, e quem solicitou a sua produção, um jornal de grande circulação, por exemplo, e o outro, o internauta, que o acessa, estando ambos em atitude responsivo-ativa (BAKHTIN, 2003).

Prosseguindo o nosso diálogo com as vozes da atualidade, os profissionais da educação, principalmente o professor, são regentes de uma orquestra nem sempre fácil de ser conduzida, porque a educação já é dialógica por natureza, uma vez que toda a atividade verbal tem como base disseminar a “palavra de outrem” e a “palavra que parece ser a de outrem” (BAKHTIN, 1995), situação vivenciada nas escolas das diferentes regiões de nosso país. Dessa forma, como dizia Guimarães Rosa, em seu livro Grande Sertão: Veredas, de 1956, toda ação principia por uma palavra pensada, pegante, que vai rompendo rumo. No entanto, a condução das ações executadas no cotidiano escolar e os rumo(re)s que a educação do século XXI irão percorrer são difíceis de se saber, mas o que se experiencia, muitas vezes, em meio a heterogeneidade e a diversidade que representa a escola, é uma “terceira margem do rio”. Rio de águas brandas, caudalosas, revoltas e (des)encontradas com as quais nos deparamos e temos que nos adaptar e enfrentar para que consigamos estar, pelo menos, não à margem do sistema educacional, mas entre o rio e suas margens, metaforicamente representados pelos diversos sujeitos participantes do processo educacional.

O campo musical é amplo e complexo e não nos deteremos aos seus meandros e suas particularidades, uma vez que não vamos discorrer sobre isso. Apenas faremos alguns apontamentos sugeridos por Napolitano (2005) ao se analisar canção. Especificamente, utilizaremos, em nossa explanação, raps. Estes estão inseridos em um contexto, chamado movimento Hip Hop que conta com outros elementos, o break, a dança com muitos passos que surgiram na tentativa de se imitar os feridos em combate no Vietnã, o graffiti, as artes plásticas feitas pelos grafiteiros, o rapper ou MC (Mestre de Cerimônia) que produz e canta os raps, e o DJ, responsável pela mixagem dos sons. É um movimento em que a crítica, o questionamento, o protesto e a reivindicação fazem-se presentes, principalmente nos raps.

Pode-se dizer que entre MCs e raps é estabelecida uma correspondência que se dá em nível exotópico. Conceito bakhtiniano bem explicitado por Amorim (2006, p. 101), o qual “[...] designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e aquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro”. Exemplificando para que essa relação fique mais clara, mostraremos alguns trechos do rap “Da ponte pra cá”, do CD duplo Nada como um dia após o outro dia, de 2002, do grupo Racionais MC’s. Nesse rap, inicialmente, um profissional da “Rádio Êxodos”, aos 23 minutos de um novo dia, manda um “salve” aos “manos”, tendo ao fundo uma canção black music com os dizeres “excelent good night”. Antes de o locutor do rap começar a cantar, ouve-se um som de ave de rapina. O refrão “Não adianta querer, tem que ser tem que pá/O mundo é diferente da ponte pra cá/Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar/O mundo é diferente da ponte pra cá” é cantado por uma voz desfigurada. De uma maneira geral, nesse rap, é relatado o cotidiano difícil de quem mora “da ponte pra cá”, a Ponte João Dias, localizada na Zona Sul de São Paulo. Há, nesse rap, a saudação a alguns “manos” e a algumas “quebradas”:

A lua cheia clareia as ruas do Capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não? [...]
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa [...]
Nóis aqui, vocêis lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu? [...]
E cada favelado é um universo em crise [...]
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém [...]
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola [...]
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanum est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fio de baiano [...]
Mas firmão né, se Deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema [...]
Senhor guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse Capão Redondo, frio sem sentimento [...]
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela. (Da ponte pra cá)

Assim, nesse rap, pode-se observar que

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos. (BAKHTIN, 2003, p. 294-295)

Fizemos apenas algumas incitações sobre três campos distintos em nossa atitude responsiva para com eles, mostrando a relação de alteridade que mantêm com seus “outros”, pois “a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso (BAKHTIN, 2003, p. 348). É claro que há mais a se falar, mas encerrarmos, momentaneamente, nosso diálogo com essas vozes, citando, mais uma vez, Bakhtin (1995, p. 41):

[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados.

Referências Bibliográficas

AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95-114.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
______. Estética de Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música – história cultural da música popular. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
RACIONAIS MC's. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Unimar Music, 2002. 2 CDs.

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