Lucia F. Mendonça Cyranka
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A concepção bakhtiniana de linguagem oferece subsídios importantes para quem precisa compreender a premente questão das pressões escolares sobre os alunos procedentes de grupos sociais falantes de uma variedade linguística desprestigiada. Para esses alunos, a escola oferece a oportunidade de aprenderem o uso de um dialeto prestigiado socialmente, sob a condição de abandonarem e esquecerem o seu, que é considerado errado.
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Essa postura tradicional da escola implica, à luz das reflexões de Bakhtin sobre a linguagem, numa incompreensão fundamental do processo de construção do homem como ser social, que se constitui pela linguagem. Como ser pela linguagem, se ela é negada pela escola e pelo professor que não reconhece valor na história, nas experiências vividas, que ela veicula e, consequentemente, nas marcas dessas experiências que se vão imprimindo no léxico e mesmo na sintaxe desse dialeto considerado menor? Como ser pela linguagem com a palavra negada, sendo empurrado numa direção diferente daquela com que o sujeito chegou à escola, sem mesmo antes poder vislumbrar sentido nessa mudança de direção?
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Como se comunicar sem a palavra, que é material privilegiado da comunicação da vida cotidiana, vinculada a uma esfera ideológica? Negar a linguagem é negar, ao mesmo tempo, a ideologia que ela veicula. É impossibilitar a interação e, em última análise, a realização do um no outro. Segundo nos orienta Bakhtin (2006, p. 117), é indispensável a interação entre os participantes do discurso, sendo a palavra a ponte que os une:
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Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.
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Podemos deduzir, então, que a palavra, materializada como signo, deve ser propriedade comum entre os interlocutores, isto é, deve expressar o mesmo valor, do ponto de vista social e histórico; mas a experiência que o aluno leva à escola para representação de seu grupo social não é reconhecida.
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Nesse sentido, o discurso que a escola pretende construir não tem possibilidade de existência real porque, da sua construção só participa um enunciador. Se uma parte da enunciação, sua contraparte linguística, tem sua legitimidade contestada e mesmo negada, o discurso não se realiza.
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Para Bakhtin, o enunciado se produz num contexto que é sempre social, ainda que um dos interlocutores esteja distante. Portanto, quando se elimina um dos interlocutores por negar-lhe a qualidade do seu discurso, via má qualidade de sua variedade linguística, evidencia-se a violência simbólica já tratada por Bourdieu (1930/2002). Nesse contexto, o emissor jamais terá o outro como ouvinte ou leitor, a não ser que ele se dirija a um público que utiliza uma linguagem de valor social equivalente ao seu. A enunciação quando produzida para um público diferente do seu, que nega a qualidade, a legitimidade da palavra utilizada, não constitui diálogo.
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Penso, então, na solidão dos alunos das classes populares, vítimas dessa incompreensão e dessa violência que, em última análise, resulta num processo de desconstrução de sua condição humana, porque não podem se constituir como sujeitos de discurso, nem como interlocutores do discurso do professor. Esse é o capital cultural de que nos fala Bourdieu (op. cit, p. 310):
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Desta maneira, as disposições negativas no tocante à escola que levam a maioria das crianças das classes e frações de classe mais desfavorecidas culturalmente à auto-eliminação, como por exemplo, a depreciação de si mesmas, a desvalorização da escola e de suas sanções ou a resignação ao fracasso e à exclusão, devem ser compreendidas em termos de uma antecipação fundada na estimativa inconsciente das probabilidades objetivas de êxito viáveis para o conjunto da categoria social, sanções que a escola reserva objetivamente às classes ou frações de classe desprovidas de capital cultural. (Grifo meu).
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Do ponto de vista político dá-se um distanciamento entre esses grupos de falantes, escola e alunos: se a experiência individual dos sujeitos se dá na interação entre interlocutores, ela se torna restritiva no caso dos falantes das classes populares, que não entendem o discurso das classes que detêm o poder; por outro lado, não têm sua voz ouvida, ou compreendida por aqueles que se situam nas esferas consideradas superiores social e economicamente. Dá-se o apagamento de suas vozes. Em consequência, revela-se um empobrecimento nos enunciados dos interlocutores de ambas essas esferas, normalmente grávidos de sentido construídos nas experiências compartilhadas dos interlocutores. Entre os falantes das variedades linguísticas desprestigiadas e o da chamada variedade escolar/culta, esse identificação para construção de sentido não acontece.
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Pensando na questão dos gêneros como forma de acabamento do enunciado, elemento importante da construção do sentido, na interlocução, constato ainda, com preocupação, o discurso inconsistente que ainda se encontra em muitas escolas, convidando o aluno a um dizer sem forma, do que resulta uma resposta frequentemente caótica, que ele jamais daria se ouvido a partir de sua própria experiência e de seu grupo social. A sentença e a palavra só chegam a ser verdadeiramente expressão do sujeito, quando dentro de um enunciado completo. Os falantes de dialetos desprestigiados não têm acesso aos gêneros produzidos pelos grupos sociais com práticas de letramento legitimadas, por exemplo, na grande mídia. Suas práticas de letramento se restringem, portanto, a um universo menor, do que resulta a restrição de seu discurso, ao fechamento de sua cultura num mundo de menos liberdade e direitos.
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Então, também penso na solidão da escola, que não encontra ressonância em seu discurso e entrega à sociedade um contingente grande de jovens incapazes de ler e escrever com autonomia. Pior, de crianças e jovens que fogem da escola, marcados pelo insucesso, descrentes de sua competência como falantes de sua própria língua materna.
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Concluo reivindicando, à luz da reflexão bakhtiniana, a implementação de uma reflexão sociolinguística no trabalho escolar com a língua materna. Refiro-me a uma pedagogia culturalmente sensível que, como esclarece Bortoni-Ricardo (2005, p. 128) tem por objetivo criar em sala de aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvam padrões de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na medida em que se ativam nos educandos processos cognitivos associados aos processos sociais que lhes são familiares.
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Sonho e luto por uma escola, pública e/ou particular, que investe na construção de uma sociedade que acolhe o homem como sujeito de seu destino; como sujeito que constrói seu discurso em consonância com a palavra responsiva do outro, a palavra que reflete as mudanças e alterações sociais sem preconceitos. Gosto do que disse Bakhtin (op. cit. p. 202): “O destino da palavra é o da sociedade que fala.”
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Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M.M. (V.N.VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? São Paulo: Parábola, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. A 1ª ed. é de 1930.
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A concepção bakhtiniana de linguagem oferece subsídios importantes para quem precisa compreender a premente questão das pressões escolares sobre os alunos procedentes de grupos sociais falantes de uma variedade linguística desprestigiada. Para esses alunos, a escola oferece a oportunidade de aprenderem o uso de um dialeto prestigiado socialmente, sob a condição de abandonarem e esquecerem o seu, que é considerado errado.
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Essa postura tradicional da escola implica, à luz das reflexões de Bakhtin sobre a linguagem, numa incompreensão fundamental do processo de construção do homem como ser social, que se constitui pela linguagem. Como ser pela linguagem, se ela é negada pela escola e pelo professor que não reconhece valor na história, nas experiências vividas, que ela veicula e, consequentemente, nas marcas dessas experiências que se vão imprimindo no léxico e mesmo na sintaxe desse dialeto considerado menor? Como ser pela linguagem com a palavra negada, sendo empurrado numa direção diferente daquela com que o sujeito chegou à escola, sem mesmo antes poder vislumbrar sentido nessa mudança de direção?
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Como se comunicar sem a palavra, que é material privilegiado da comunicação da vida cotidiana, vinculada a uma esfera ideológica? Negar a linguagem é negar, ao mesmo tempo, a ideologia que ela veicula. É impossibilitar a interação e, em última análise, a realização do um no outro. Segundo nos orienta Bakhtin (2006, p. 117), é indispensável a interação entre os participantes do discurso, sendo a palavra a ponte que os une:
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Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.
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Podemos deduzir, então, que a palavra, materializada como signo, deve ser propriedade comum entre os interlocutores, isto é, deve expressar o mesmo valor, do ponto de vista social e histórico; mas a experiência que o aluno leva à escola para representação de seu grupo social não é reconhecida.
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Nesse sentido, o discurso que a escola pretende construir não tem possibilidade de existência real porque, da sua construção só participa um enunciador. Se uma parte da enunciação, sua contraparte linguística, tem sua legitimidade contestada e mesmo negada, o discurso não se realiza.
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Para Bakhtin, o enunciado se produz num contexto que é sempre social, ainda que um dos interlocutores esteja distante. Portanto, quando se elimina um dos interlocutores por negar-lhe a qualidade do seu discurso, via má qualidade de sua variedade linguística, evidencia-se a violência simbólica já tratada por Bourdieu (1930/2002). Nesse contexto, o emissor jamais terá o outro como ouvinte ou leitor, a não ser que ele se dirija a um público que utiliza uma linguagem de valor social equivalente ao seu. A enunciação quando produzida para um público diferente do seu, que nega a qualidade, a legitimidade da palavra utilizada, não constitui diálogo.
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Penso, então, na solidão dos alunos das classes populares, vítimas dessa incompreensão e dessa violência que, em última análise, resulta num processo de desconstrução de sua condição humana, porque não podem se constituir como sujeitos de discurso, nem como interlocutores do discurso do professor. Esse é o capital cultural de que nos fala Bourdieu (op. cit, p. 310):
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Desta maneira, as disposições negativas no tocante à escola que levam a maioria das crianças das classes e frações de classe mais desfavorecidas culturalmente à auto-eliminação, como por exemplo, a depreciação de si mesmas, a desvalorização da escola e de suas sanções ou a resignação ao fracasso e à exclusão, devem ser compreendidas em termos de uma antecipação fundada na estimativa inconsciente das probabilidades objetivas de êxito viáveis para o conjunto da categoria social, sanções que a escola reserva objetivamente às classes ou frações de classe desprovidas de capital cultural. (Grifo meu).
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Do ponto de vista político dá-se um distanciamento entre esses grupos de falantes, escola e alunos: se a experiência individual dos sujeitos se dá na interação entre interlocutores, ela se torna restritiva no caso dos falantes das classes populares, que não entendem o discurso das classes que detêm o poder; por outro lado, não têm sua voz ouvida, ou compreendida por aqueles que se situam nas esferas consideradas superiores social e economicamente. Dá-se o apagamento de suas vozes. Em consequência, revela-se um empobrecimento nos enunciados dos interlocutores de ambas essas esferas, normalmente grávidos de sentido construídos nas experiências compartilhadas dos interlocutores. Entre os falantes das variedades linguísticas desprestigiadas e o da chamada variedade escolar/culta, esse identificação para construção de sentido não acontece.
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Pensando na questão dos gêneros como forma de acabamento do enunciado, elemento importante da construção do sentido, na interlocução, constato ainda, com preocupação, o discurso inconsistente que ainda se encontra em muitas escolas, convidando o aluno a um dizer sem forma, do que resulta uma resposta frequentemente caótica, que ele jamais daria se ouvido a partir de sua própria experiência e de seu grupo social. A sentença e a palavra só chegam a ser verdadeiramente expressão do sujeito, quando dentro de um enunciado completo. Os falantes de dialetos desprestigiados não têm acesso aos gêneros produzidos pelos grupos sociais com práticas de letramento legitimadas, por exemplo, na grande mídia. Suas práticas de letramento se restringem, portanto, a um universo menor, do que resulta a restrição de seu discurso, ao fechamento de sua cultura num mundo de menos liberdade e direitos.
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Então, também penso na solidão da escola, que não encontra ressonância em seu discurso e entrega à sociedade um contingente grande de jovens incapazes de ler e escrever com autonomia. Pior, de crianças e jovens que fogem da escola, marcados pelo insucesso, descrentes de sua competência como falantes de sua própria língua materna.
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Concluo reivindicando, à luz da reflexão bakhtiniana, a implementação de uma reflexão sociolinguística no trabalho escolar com a língua materna. Refiro-me a uma pedagogia culturalmente sensível que, como esclarece Bortoni-Ricardo (2005, p. 128) tem por objetivo criar em sala de aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvam padrões de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na medida em que se ativam nos educandos processos cognitivos associados aos processos sociais que lhes são familiares.
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Sonho e luto por uma escola, pública e/ou particular, que investe na construção de uma sociedade que acolhe o homem como sujeito de seu destino; como sujeito que constrói seu discurso em consonância com a palavra responsiva do outro, a palavra que reflete as mudanças e alterações sociais sem preconceitos. Gosto do que disse Bakhtin (op. cit. p. 202): “O destino da palavra é o da sociedade que fala.”
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Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M.M. (V.N.VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? São Paulo: Parábola, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. A 1ª ed. é de 1930.
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