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A interação verbal como um aspecto de reflexão das imagens de si ao longo do tempo

Renata Viana Ensinas


Minha proposta é refletir sobre as imagens de si/sujeito e a apresentação que o sujeito faz de si ao ouvinte no processo de interação verbal, quando deixa “marcas” no discurso, após uma lesão cerebral, tais como: apagamentos, substituições, inserções dentre outras questões relacionadas às seqüelas afásicas. Pretendo refletir sobre um processo de interação verbal específico: sujeitos com imagens de si criadas no passado e modificadas após um derrame/ Acidente Vascular Cerebral (AVC). Cada qual com as suas histórias de vida e particularidades.

Para realização deste texto, assumo, como no trabalho de Coudry, publicado no Caderno de Estudos Lingüísticos em 2002, sobre linguagem e afasia, uma “concepção sócio-histórica que aponta a linguagem como lugar de interação humana”. E com base em Franchi (1987), acredito que:

(...) “é na interação social que o sujeito se apropria do sistema lingüístico e, dessa forma, constrói, com os outros, os objetos lingüísticos de que se vai utilizar, na medida em que se constitui a si próprio como locutor e aos outros como interlocutores” (p. 12).

Assim, ao adotar tal concepção teórica de linguagem, faço um breve “recorte” das noções de interação verbal e sujeito, levando em conta os pressupostos bakhtinianos.

De acordo com Bakhtin (1929/1981):

“a verdadeira substância da língua não é constituída (...) pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações”. (p123).

De tal modo que, para o autor, a interação verbal constitui a chamada “realidade fundamental da língua”.

Segundo Bakhtin (1992/2003), no processo de interação verbal, por um lado, o ouvinte realiza uma atitude responsiva ativa que pode materializar-se na resposta fônica; em um ato ou, até mesmo; em uma atitude responsiva muda – como o autor menciona -, que cedo ou tarde encontra eco no discurso ou no comportamento do ouvinte. Por outro, o locutor, postula essa compreensão responsiva e espera uma resposta, seja ela uma concordância, uma adesão, bem como, uma objeção.

Sendo assim, para Bakhtin, o locutor não é:

(...) “o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações” (...). (Bakhtin, 1992/2003, p. 272).

Assim, para Geraldi (1991) ”a interação verbal é o lugar da produção da linguagem e dos sujeitos”. “Os sujeitos”, segundo o autor, “se constituem pela linguagem à medida que interagem com os outros”. Portanto, “o sujeito”, para ele, “é social, histórico e se constitui nas próprias falas”.

Pensando na noção de “parceiros do diálogo”, conforme Bakhtin (1992/2003); os sujeitos se constituem nas apresentações que fazem de si de modo a provocar modificações nas próprias imagens e tais mudanças são indícios de que ambos se movimentam no processo de produção da linguagem; o que o outro diz e faz tem repercussões na imagem representada pelo locutor. Esse processo é parte de um outro mais geral e complexo, como o processo de constituição da relação sujeito/linguagem e o lugar desse processo é a interlocução entre os sujeitos.

Diante dessas reflexões, trago uma questão: Na interlocução entre sujeitos afásicos/não afásicos, pode-se mudar o aspecto que se dá à face contemplada, de um ponto de vista do “eu” do passado, após um AVC?

A respeito da imagem do “eu”, o material do passado contém diferenças filosóficas e estéticas entre o eu de si mesmo e o eu do outro/ouvinte. As diferenças do eu para si e para o outro são inacabáveis e sofrem mudanças ao longo do tempo (AMOSSY, R. 2005).

Em essência, na atividade humana relacionada ao uso da linguagem que o sujeito constrói a apresentação de si submetida a uma regulação sociocultural, mesmo com as influências mútuas que os próprios sujeitos desejam exercer sobre as imagens de si.

A visão bakhtiniana nos possibilita pensar na relação entre a face, isto é, a imagem do “eu” e o ato de produção discursiva. Para Bakhtin (1929/2003), o enunciado, como ato de produção do discurso oral /escrito/da cultura reflete as condições do campo da atividade humana. Segundo o autor, cada enunciado é individual e, portanto, formulado pelos sujeitos, mas o campo da atividade humana é o responsável por circunscrever os enunciados, já que este elabora os chamados Gêneros Discursivos, ou seja, os tipos relativamente estáveis de enunciados.

As diversidades de Gêneros Discursivos são infinitas, pois segundo Bakhtin (op.cit.), as possibilidades da atividade humana são inesgotáveis.

A imagem de si, constatada após o AVC, ocupa novo espaço na sua subjetividade. Ainda assim, o sujeito pode (re) criar situações singulares de comunicação e realizar de modo mais acabado o próprio projeto de discurso.

Na interface com os estudos bakhtinianos, acredito que, após a lesão cerebral o processo alternativo de produção da linguagem possa se beneficiar com o resgate de alguns gêneros. Tais constatações foram formuladas a partir de transcrições de corpus lingüísticos produzidos ao longo dos diálogos entre sujeitos afásicos e não afásicos e entre os próprios sujeitos afásicos do Centro de Convivência de Afásicos da Universidade Estadual de Campinas (CCA). Nesta comunidade, chamada por Sampaio (2006) de “comunidade de fala”, há uma organização por normas compartilhadas que regulam o uso das diversas maneiras de comunicação (verbais e não-verbais), por uma mesma concepção social e cultural inserida em uma comunidade maior que se subdivide em grupos menores.

Os episódios dialógicos, vistos como campo de comunicação, são construções dialógicas que circulam em diversas modalidades de gêneros discursivos e variam dependendo do tema (os temas são construídos ao longo de cada atividade dialógica), da situação (conversa entre dois familiares, por exemplo), da composição dos membros (afásicos e não afásicos).

É em virtude disso, que se pode ligar, estritamente, a esfera de utilização da língua e os gêneros discursivos às alterações dos gêneros pela afasia e se há mais comprometimento de um gênero do que outros. Não se trata de resolver todas as questões referentes às imagens do “eu” após a lesão cerebral, mas de criar novas indagações sobre as imagens dos sujeitos, então, afásicos.

A imagem desejada pelo sujeito não pode ser mais apresentada, já que por meio da linguagem se revela sua nova condição - nos apagamentos, nas supressões, nas inserções, nas substituições, nos deslocamentos, nos cancelamentos, bem como outras marcas presentes no ato de produção do discurso oral/escrito. Entretanto, tais marcas revelam a sua singularidade e indicam as operações epilinguísticas dos sujeitos, frente às imagens de si e daquelas que anseiam transmitir ao outro. Mesmo assim, os sujeitos, muitas vezes, fazem menção àquela face de um “eu” do passado que não apresentava alterações lingüísticas perceptíveis ao outro.

A participação dos sujeitos afásicos nos encontros coletivos proporciona transformações que incidem sobre o modo como lidam com a própria face, mobilizando desejos, angústias e outras formas de experimentar seus próprios recursos lingüísticos na produção de sentido, daquilo que se propõe a transmitir ao outro ou a si mesmo.


Referências Bibliográficas:

AMOSSY, Ruth. Da Nação Retórica de Ethos à Análise do Discurso. In:_____. Imagens de Si no Discurso a construção do Ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 9-17.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992/2003.
____________.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1929/1981.
COUDRY, M.I.H. Linguagem e afasia: uma abordagem discursiva da Neurolingüística. In: Caderno de Estudos Linguísticos 42, 99-129. Campinas: Unicamp.2002.
FRANCHI, C. Criatividade e gramática. Trabalhos em lingüística aplicada. Campinas, n. 9, p. 5-45, 1987.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SAMPAIO, N. F. S. Uma abordagem sociolingüística da afasia: O Centro de Convivência de Afásicos (UNICAMP) em foco (Doutorado). IEL/UNICAMP. 2006.

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