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Ensaio sobre a apropriação da noção bakhtiniana de enunciado na análise de discurso de Norman Fairclough.

Luciana Andrade Cavalcante de Castro

“A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”, eis uma frase bakhtiniana bem conhecida e bem significativa acerca do conceito de enunciado. E em tal, percebemos a relação dialógica entre “estrutura” e “práticas”, pensando na língua como estrutura, e nas práticas como algo da vida, e a vida como um devir permanente, em que cada momento é único e irrepetível, assim como cada enunciado concreto que produzimos nestes momentos. E faz sentido isso ao recorrermos à “refração”, um princípio básico da dialogia. Os signos refletem (eu, pessoalmente, considero problemático nos referirmos à reflexão) e refratam a realidade, encontramos bem retratado nas obras de Bakhtin. Os enunciados produzidos refratam a realidade, e se refratam entre si na cadeia enunciativa em que se encontram, os enunciados concordam ou discordam entre si, se respondem, se comentam, e assim permanecem em uma relação dinâmica, dialética, dialógica. Tudo isso Bakhtin nos demonstra no conjunto de suas obras.

Como unidades reais, concretas, componentes de um ato de comunicação verbal, os enunciados possuem fronteiras determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, alternância dos locutores, uma transferência da palavra ao outro, algo como um mudo “dixi”, que é notado pelo outro locutor. Logicamente essa fronteira adota diferentes formas, sendo mais evidente no diálogo real, no qual cada enunciado possui um determinado acabamento. Segundo Bakhtin, tal acabamento é necessário para tornar possível uma reação ao enunciado, já que demonstra que o locutor disse o que precisava dizer em um determinado momento e em determinadas condições. “Ao ouvir ou ao ler, sentimos claramente o fim de um enunciado, como se ouvíssemos o “dixi” conclusivo do locutor” (BAKHTIN, 2000).

Enfim enquanto unidades que possibilitam uma reação responsiva ativa do outro, uma compreensão (já que todo ato de compreensão implica uma resposta), os enunciados são acabados, mas enquanto unidades pertencentes à toda uma cadeia enunciativa, se refutando, convergindo ou divergindo, respondendo umas às outras, os enunciados são inacabados, o que nos permite relativizar tanto o acabamento, quanto o inacabamento dos enunciado. Mas de qualquer modo são únicos e irrepetíveis.

E como únicas e irrepetíveis, as unidades reais da comunicação, ou enunciados não se fazem apreensíveis em sua totalidade, por isso procuramos os apreender na forma de gêneros do discurso, “tipos de enunciados relativamente estáveis”. Cada esfera da comunicação humana produz seus gêneros, e estes apresentam as especifidades de tais esferas, se caracterizando por seu tema, seu estilo e sua construção composicional. Os gêneros do discurso se fazem uma objetivação parcial dos enunciados, quando procuramos apreender estes.

E como enunciados relativamente estáveis, os gêneros não deixam de ter a heterogeneidade como aspecto marcante de si, o que torna sua delimitação uma tarefa árdua e problemática. Isso o autor soviético nos deixa bem explícito em Estética da Criação Verbal, e também o podemos perceber no próprio ensino atualmente.
Sendo heterogêneos e relativamente estáveis, os gêneros também se transformam conforme se modificam as esferas sociais da qual fazem parte. Então a medida que uma esfera se torna mais complexa, todo seu conjunto de gêneros há de se tornar também mais complexo. E levando em consideração as mudanças nos meios de comunicação da pós-modernidade, o advento da mídia, da informática, da Internet, de toda a tecnologia de atualmente, podemos afirmar que os gêneros hoje em dia estão, de fato, mais complexos do que o estavam na época de Bakhtin. É o que podemos perceber no conjunto das obras de Norman Fairclough, nas quais noções bakhtinianas são retomadas.

Esse linguista britânico é um dos maiores expoentes de uma abordagem teórico-metodológica da linguagem, que começou a ganhar mais força nos anos 90, conhecida como Análise de Discurso Crítica (ADC). A ADC deriva-se da Lingüística Crítica, uma abordagem criada na década de 1970 por teóricos da Universidade de East Anglia, na Grã-Bretanha. A Lingüística Crítica tentou “casar um método de análise lingüística textual com uma teoria social do funcionamento da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à teoria lingüística funcionalista associada com Michael Halliday e conhecida como ‘lingüística sistêmica’” (FAIRCLOUGH, 1992).

Podemos dividir os estudos de Fairclough em ADC em três fases. Na primeira fase temos como obras principais Language and Power e Discourse and Social Change. Na segunda temos Discourse in Late Modernity, escrita em co-autoria com Lilie Chouliaraki. Na terceira temos Analysing Discourse.

Quando falamos de ADC, no que se refere à sua primeira fase, devemos de princípio ter em mente o modelo tridimensional de análise, o qual buscava estudar a dimensão dos Textos, das Práticas Sociais e a dimensão da Prática Discursiva que interliga essas duas. O discurso é atuante nestas três dimensões e em cada uma delas diferentes aspectos deste são estudados.

Quando se estuda o discurso como texto, categorias como ‘vocabulário’, ‘coesão’, ‘gramática’, e outras tem importância. Já quando avançamos para a dimensão das práticas discursivas, os processos de produção, distribuição e consumos dos textos são relevantes para o estudo, categorias como coerência, força dos enunciados, e também a intertextualidade, ou seja a relação que os diversos textos tem entre si.

Na dimensão das Práticas Sociais, é relevante o estudo das influências que as Ideologias têm sobre o discurso, e também como este colabora para a manutenção de Hegemonias. Tudo isso visto na ADC de maneira dinâmica, ou seja as hegemonias são equilíbrios instáveis que procuram se manter mais através do consentimentos dos dominados do que pela coerção. E as ideologias são fatores que colaboram para a existências de tais consentimentos, pois estas costumam fazer fenômenos como a Globalização, o Capitalismo, desigualdades sociais entre outros parecerem naturais e inevitáveis, e não causados pela ação humana. Entretanto as ideologias não são totalmente eficazes, já que dentro delas mesmas há contradições, e isso colabora para instabilidade das hegemonias. Melhor dizendo, um grupo não consegue ser dominante por tanto tempo, logo sendo substituído por outro e assim por diante. (E neste ponto uma comparação com a noção de ideologia adotada por Bakhtin também seria interessante.)

Isso é uma característica importante na ADC. Quando utilizamos tal abordagem para estudar o discurso, devemos levar em consideração que este tanto pode ser reproduzido quanto transformado. (Seria o caso de aqui retomarmos as noções bakhtinianas de refração e reflexão?) Em outras palavras, os sujeitos podem ser posicionados por influência de ideologias e discursos dominantes, mas também podem agir criativamente sobre os mesmos em seu próprio favor, principalmente quando se deparam com alguma contradição (dilema) destes.

Quando nos referimos a segunda fase, convém nos lembrarmos do novo modelo de análise do discurso, baseado, ou melhor, emprestado de Harvey. Nesse, o discurso passa a ser considerado um momento da prática social que se relaciona com outros momentos: atividade material, fenômeno mental, relações sociais. Todos os momentos da Prática se internalizam sem serem redutíveis um ao outro.

Segundo Fairclough as práticas consistem em “maneiras habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos materiais ou simbólicos – para agirem juntas no mundo.”, lembrando que elas podem tanto agir de modo a reproduzir ou transformar as estruturas sociais.

Segundo Fairclough, o modelo de análise presente na segunda fase de seus estudos tem um caráter mais dinâmico que justifica essa dialética entre estruturas sociais e agência dos sujeitos, e também vai ao encontro do caráter emancipatório da ADC.

Dentre diversos autores, Bakhtin é de grande importância para a constituição da ADC. Suas noções de gênero do discurso e dialogia são extremamente produtivas na Análise de Discurso Crítica, sendo que esta última encontra-se sob o nome de intertextualidade, termo que Fairclough toma emprestado de Julie Kristeva, importante estudiosa de Bakhtin.

Tendo a noção de gênero bakhtiniana como base, Fairclough pôde em seus modelos de análise da linguagem relacionar características estruturais dos textos com o estudo dos processos de produção, distribuição e consumo de gêneros textuais, constituintes das práticas discursivas. Também a apropriação da noção de gênero discursivo, possibilitou ao linguista britânico combinar a abordagem sócio-histórica de discurso presente nos estudos arqueológicos de Foucault com os estudos gramaticais de Halliday, em sua Linguística Sistêmico Funcional. Com o decorrer de seus enquadres em Análise de Discurso Crítica, Norman Fairclough varia em alguns aspectos de sua abordagem no tratamento dos gêneros discursivos, sendo que na terceira fase de seus estudos há uma grande aproximação destes com a noção de Significado Acional, derivada das Funções Interpessoal e Textual de Michael Halliday (1985).

Observando o que foi relatado até este ponto, podemos dizer que a noção de enunciado se encontra presente em Fairclough embutida na noção de gênero discursivo, o que não é diferente no pensamento bakhtiniano.

Entretanto, recorrendo à seguinte citação do autor britânico, após este nos fornecer uma breve panorâmica sobre o conceito bakhtiniano de enunciado: “enunciados – 'textos' em meus termos – são inerentemente, intertextuais, constituídos por elementos de outros termos.” (FAIRCLOUGH, 1992: 134). E aqui pode-se indagar: Até que ponto essa mudança faz sentido? Pode trazer algum tipo de conseqüência não benéfica?. Se bem que, retomando algo dito anteriormente neste ensaio, Fairclough utiliza uma categoria “força dos enunciados” para a análise do discurso como texto. Certamente aqui é necessário rever as definições destes conceitos tanto em termos bakhtinianos, quanto faircloughianos, etapa relevante do projeto, ao qual tenho dado prosseguimento, o qual busca compreender como se constitui a ADC.

Ainda em Estética da Criação Verbal, Bakhtin dedica um capítulo às problemáticas acerca do texto. Em tal capítulo encontramos a afirmação de que o texto representa uma realidade imediata do pensamento e da emoção, e estudar estes é o diferencial das ciências humanas, que também não deixam de ser constituídas por pensamentos emoções. Nas palavras de Bakhtin:

O que nos interessa, nas ciências humanas, é a história do pensamento orientada para o pensamento, o sentido, o significado do outro, que se manifestam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de texto. Quaisquer que sejam os objetivos de um estudo, o ponto de partida só pode ser o texto. (BAKHTIN, 2000)

Poderíamos considerar o texto como um enunciado objetivado perante a ótica de um pesquisador?

Bakhtin também procura delimitar as fronteiras do texto, afirmando que enquanto enunciado o texto é determinado por dois fatores: seu projeto, ou intenção, e a execução desse projeto. E como enunciado, o texto também refrata outros textos como enunciados. O autor também se refere a bipolaridade do texto. Cada texto pressupõe um sistema compreensível para todo, uma língua, que no texto corresponde-lhe a tudo quanto é repetitivo e reproduzível, que pode também existir fora de um mesmo texto, estando presente em outros textos. Por outro lado, cada texto, como enunciado é individual, único e irreproduzível, residindo nisso o seu sentido. Aqui podemos pensar no texto como algo entre o sistema e os enunciados. E isto é só uma parte do que Bakhtin relata a respeito da problemática do texto. De qualquer modo indago: todo enunciado é um texto, mas nem todo texto é necessariamente um enunciado? Será que é dessa forma que podemos compreender a analogia que Fairclough faz entre enunciado e texto em sua obra? Qual pólo do texto se encontra mais destacado na teoria do autor britânico? Levando em consideração que para a análise do texto as categorias de vocabulário, coesão e gramática são relevantes, podemos afirmar que em Fairclough, o texto é mais estrutura do que enunciado. Entretanto ao se referir a relação intertextual existente entre os textos, Fairclough os aproxima mais da noção de enunciado, mas ao enunciado relativamente estável, ou seja o o gênero.

Ao que parece, tratando de enunciados relativamente estáveis, Fairclough leva em consideração em consideração a dinamicidade e heterogeneidade inerente a estes. Entretanto o tratamento do enunciado como unidade real concreta, se encontra problemática.

Logicamente essa é uma etapa ainda inacabada do projeto a que tenho dado prosseguimento, e neste ponto ainda nos encontramos fazendo indagações a respeito da primeira fase da Análise de Discurso Crítica em Fairclough, certamente algumas respostas (e porque não mais questões?) podem surgir a medida que o projeto avançar.

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