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Em diálogo com Bakhtin: a polifonia e o discurso poético-literário

Carina Dartora Zonin

Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre elas.
Mikhail Bakhtin.

1. Considerações iniciais

O pensamento de Mikhail Bakhtin, acerca do universo discursivo da linguagem, constitui-se num campo fértil para pensarmos os estudos literários, hoje. Assim, propomos uma reflexão em torno da dialogia, princípio constitutivo do discurso, e da polifonia, recurso estilístico consagrado pela prosa romanesca e que, para esta abordagem, importa enquanto premissa fundamental para refletirmos acerca das vozes que afloram do discurso poético-literário.

Neste sentido, a linguagem poética deixa de representar o absoluto, próprio de esferas mais elevadas em que os dizeres, co-habitados por uma única voz, concebem o poeta como uma espécie de semi-deus a anunciar ao mundo a palavra em estado de pureza para incorporar o universo da dúvida, próprio de tempos desprovidos de romantismo. E, assim, prevalece, sob a face da terra, o homem desenganado e desacreditado que, na condição de romancista ou poeta, sofre, em diferentes proporções, a contaminação do mundo alheio sobre o seu universo composicional.

Para além da flexibilização da concepção dos gêneros discursivos, enquanto manifestações sócio-históricas, dinâmicas e ilimitadas, a noção de poesia polifônica pensada pelo viés consolidado pela prosa romanesca comporta repensar a densidade e abrangência dos pressupostos bakhtinianos. Ao refletirmos acerca do discurso literário enquanto objeto vivo acompanha-lhe a vitalidade da própria teoria e, assim, “[...] uma obra de literatura se revela antes de tudo na unidade diferenciada da cultura da época de sua criação, mas não se pode fechá-la nessa época: sua plenitude só se revela no grande tempo” (BAKHTIN, 2003, p. 364).

Como norte para o desenvolvimento de nossa proposta, procuraremos repostas para as seguintes questões de pesquisa, de caráter abrangente: Quais os possíveis caminhos que nos levam a repensar a teoria polifônica de Bakhtin, consagrada pela prosa romanesca, tendo como horizonte para o pensamento teórico-analítico a poesia? E, mais especificamente: Como se manifestam as vozes no dizer poético drummondiano?

Para darmos conta de tais propósitos, centraremos nosso olhar em textos das obras Questões de literatura e estética: a teoria do romance (1990) e Estética da criação verbal (2003) e, ainda em torno de teóricos de seu círculo de pensamento, especialmente, Cristóvão Tezza (2003) em sua obra Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, com o intuito de potencializar o diálogo em torno da teoria, tendo como norte para a análise trechos representativos da poesia de Carlos Drummond de Andrade na antologia A rosa do povo (2006), promovendo, assim, a escuta da palavra que em sua natureza quer sempre ser ouvida.

De um modo significativo, procuraremos perceber os diferentes tons e ecos do discurso de outrem na voz do poeta que, assim como a prosa romanesca, deixa entrever os diálogos que a constitui, pois, efetivamente, já não há centro, e vivemos na relatividade generalizada. Nesta perspectiva, o caráter descentralizador será também evidenciado, em nosso estudo, através da linguagem, pelo uso constante da terceira pessoal do plural - falaremos através de um ‘nós’ - pois, afinal o ‘eu’ só se reconhece e existe diante do ‘outro’. Imbuídos deste espírito, passemos, então, para uma reflexão acerca da dialogia e da polifonia na linguagem.

2. Repensando a teoria bakhtiniana: a dialogia e a polifonia na linguagem

Um dos traços intrínsecos ao pensamento de Bakhtin se condensa no caráter inconcluso de sua teoria e que, em nosso estudo, se constitui como uma via que nos permite seguir adiante com seus princípios acerca do discurso literário, num percurso que se estende da prosa ao verso. Pensar a multiplicidade de vozes no discurso poético-literário implica em considerarmos o estilo composicional imbuído do contexto histórico-social, em diálogo com ele, e, para tanto, estamos, mais uma vez, na contramão do pensamento formalista e levando adiante a concretização do ápice da filosofia bakhtiniana, que diz respeito à ruptura da incomunicabilidade de dois mundos mutuamente impenetráveis, a saber: o mundo da cultura e o mundo da vida.

Neste sentido, a vanguarda modernista veio desestabilizar as formas composicionais de criação poética, pois se até os períodos parnasiano e simbolista prevalecia o apego à tradição, a busca pelo que é genuíno e natural, com o advento vanguardista, rompe-se com a ideia de uma linguagem da poesia, distante da realidade social e prosaica. Assim, inicia-se a estratificação da linguagem, subvertendo traços intrínsecos à poesia em prol do que é impuro e artificial. Neste sentido, permeado pelo contexto histórico-social, o estilo composicional denuncia tempos mais centralizadores (eu-para-si) e tempos, propriamente, descentralizadores (eu-para-o-outro). Em nosso estudo, a releitura dos pressupostos bakhtinianos acerca da dialogia e da polifonia na linguagem ganham novo vigor ao nos situarmos na modernidade brasileira pós-vanguarda, em que o eu-poético cede espaço para a presença e o embate de mais de uma voz.

Aqui, cabe uma reflexão acerca dos gêneros discursivos enquanto esferas de usos da linguagem que, por seu caráter dinâmico, ilimitado e sócio-histórico, revelam que não há uma única forma de composição, já que, antes de uma concepção idealizada de poesia, há a liberdade de criação, própria de um universo vivo e tenso em que o poeta não pode mais se abster. E, assim, a orientação dialógica do discurso se revela em diferentes formas e graus, constituindo textos monológicos, em que apenas uma voz se faz ouvir, conservando ao máximo a autoridade poética, ou polifônicos, em que a multiplicidade de vozes é revelada através de um ‘eu’ potencial do discurso, que personifica uma coletividade, trazendo ao plano discursivo os tons e ecos de diferentes esferas da atividade humana (a política, a religião, a filosofia, a economia, etc.).

Sendo assim, o discurso poético, centro de nossa investigação, representa um discurso discurso secundário (complexo) que, durante o processo de sua formação, absorve e transmuta os gêneros primários (simples). Assim, a réplica do diálogo cotidiano ao se inserir no todo do discurso poético, perde sua relação imediata com a realidade existente, circunscrevendo um fenômeno da vida literário-artística e, não, simplesmente, da vida cotidiana. A atmosfera social do discurso que envolve o objeto faz brilhar as diversas facetas de sua imagem, passando a revelar no discurso o alcance das vozes sociais que falam, através dos tempos e, em palavras de Bakhtin (1900, p. 100), em seu texto publicado, originalmente, em 1934-1935, O discurso na poesia e o discurso no romance:

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico.

Por esta via, própria do discurso romanesco que se deixa influenciar pelo já-dito, passamos a situar o processo de criação do texto poético, já que os tempos modernos libertam as formas composicionais de limites essenciais da criação, subvertendo o absolutismo de características intrínsecas, até então tido pela estilística tradicional como um meio único, capaz de reconhecer e de garantir ao texto o status de literário. Em outras palavras, um dos legados da reação vanguardista ao modernismo diz respeito à expansão do conceito de poesia, fazendo conviver formas mais próximas ou mais distantes do ideal de pureza poética, o que permite à poesia prosaica, levando a efeito as premissas de Bakhtin acerca da polifonia para além do romance strictu sensu, permitindo-nos uma releitura de seu pensamento, tendo como horizonte o texto poético. Para este pensamento, contribui a linha imaginária pensada por Cristóvão Tezza (2006), que se refere a uma espécie de continuum, que vai do absolutismo da prosa ao da poesia em direção à miscigenação de características idealizadas para uma ou para outra na formação de um gênero impuro, prosaico ou poético. Em palavras do crítico (2006, p. 203), em seu texto Poesia, “[...] todo objeto estético literário encontra-se em algum lugar deste continuum, que assim não se define por essência, mas por ‘quantidade’”.

Refletindo acerca desta linha, situamos a poesia drummondiana como aquela forma composicional que representa a fase madura do modernismo de herança vanguardista e que, portanto, absorve traços intrínsecos da prosa romanesca, respeitando os limites mínimos de criação poética, sem verter em qualquer um dos planos idealizados, sejam eles o da prosa, ou da poesia. Distante de tempos eufóricos e utópicos, Drummond realiza, no discurso poético, o que Bakhtin batizou como polifonia, esta refração de forças sociais vivas que encontram nos romances de Dostoiévski o espírito capaz de absorver esta nova tendência crítica.

Bakhtin, em seu percurso de estudos, considera a linguagem literária como potencial para a percepção do ser humano e de sua correlação com o mundo. Ao refletir acerca das formas discursivas da prosa e da poesia, evidencia traços idealizados para uma e para outra, fortalecendo sua crítica à estilística tradicional. Esta, por sua vez, procura preservar a literatura enquanto uma expressão de arte individual, distante do mundo da vida e, para tanto, reconhece como tal a poesia em estado de pureza e procura excluir do campo artístico o gênero romanesco, impuro, este que Bakhtin se apega como contraponto, forjando o seu reconhecimento no campo artístico-literário.

Através desse raciocínio, Bakhtin evidencia um percurso histórico pelo qual perpassam formas de representação do que podemos considerar literário. Como princípio da construção da literaturidade[1], temos a pureza poética pretendida pelos formalistas, cuja representação idealiza um mundo desprendido de valores históricos e sociais, em que a literatura sobrevive de si mesma. No entanto, as formas de manifestação do literário são ilimitadas e sócio-históricas, acrescentando a esse ideal de pureza poética a manifestação de um novo gênero, a saber, a prosa romanesca. Sendo assim, Bakhtin nos mostra um percurso que se estende da pureza poética à impureza do dizer romanesco – a centralização agindo sobre a descentralização - e, deste seguimento, o teórico deixou implícito um movimento contrário, que se estenderia da prosa à poesia – as forças centrífugas passam a influenciar as forças centrípetas. Sendo assim, conforme o pensamento do Círculo de Bakhtin (apud TEZZA, 2003, p. 37):

[...] ao examinar a questão do som na linguagem poética, que segundo o formalismo teria autonomia, um significado independe do sentido tradicional, Medvedev lembra que o som não está nem no organismo das pessoas, nem na natureza; o som está entre as pessoas – e é apenas desse território duplo, bidirecional, que o som ganha o seu sentido: poético, prosaico, prático, científico, religioso... Em suma, o poeta, quando escreve, não seleciona um sistema abstrato de possibilidades fonéticas, gramaticais, lexicais – seleciona, isso sim, as avaliações sociais implícitas em cada palavra. Para o Círculo de Bakhtin, a palavra já entra na arte carregada de intenções, opiniões, traços sociais, com todas as marcas de seu território valorativo.

Contrariando um sistema abstrato, em que o poeta incorpora a figura de um Adão mítico em contato com um mundo virgem, proferindo palavras em estado de dicionário, autônomas e auto-suficientes, Bakhtin insere a literatura num mundo prosaico em que tudo já foi dito, até mesmo a última palavra do mundo e sobre o mundo já foi proferida, evidenciando que nenhum discurso é neutro e que todo o dizer é dialógico. A idealização não sobrevive num mundo estratificado e a literatura, através da prosa romanesca, consagra seu engajamento num contexto histórico-social que se estende, em nossa literatura, da prosa ao verso. Em palavras de Bakhtin (1990, p. 96):

A idéia de uma linguagem da poesia, única e especial é um filosofema utópico característico do discurso poético: na base desse filosofema repousam as condições e as exigências reais do estilo poético, que satisfaz a uma linguagem única, diretamente intencional, a partir de cujo ponto de vista as outras linguagens (a linguagem falada, a linguagem de negócios, a linguagem prosaica, etc.) são percebidas como objetivadas e em nada equivalentes a ele. A idéia de uma ‘linguagem poética’ particular expressa aquela mesma concepção ptolomaica de um mundo lingüístico estilizado.

O alcance da forma poética desejada se encerra no culto da arte-pela-arte, num momento em que cabia ao poeta a evasão, o fechar-se em si mesmo em benefício de uma linguagem única e objetivante. A forma de diálogo era o não-diálogo, a recusa do discurso do outro na projeção centralizadora do eu sobre um ‘mundo virgem’. Fora do uso comum e da história, a linguagem poética se eleva ao idealismo da linguagem dos deuses. Como contraponto a utopia, o discurso poético deixa sua voz monologizante e passa a constituir, dialogicamente, o seu dizer, cedendo espaço para a ironia, para o humor, para a paródia como forma de realçar um já dito. O poeta, através de seu fazer-poético, passa da evasão para o engajamento, participa das transformações históricas e das lutas sociais, concebendo o interdiscurso como um espaço em que conflituam diferentes pontos de vista, tendências.

Nesta perspectiva, o discurso poético motivado pelas vanguardas e amadurecido pela estética drummondiana permite-nos pensar num possível diálogo com a teoria polifônica de Bakhtin, restando-nos traçar os caminhos para a efetivação dessa comunicação. Para tanto, deixemos falar as vozes que, através de um eu potencial do discurso, falam até mesmo numa leitura silenciosa.

3. Entre o absolutismo da prosa e o da poesia: o verso polifônico drummondiano

Os tempos modernos impõem ao fazer literário um comprometimento que excede os limites de uma criação, puramente, artística. Chega o momento da arte engajada e participativa, que se faz porta-voz das tensões sociais que perpassam os novos tempos. A tríade - literatura, sociedade e história - constitui-se pelo diálogo e deixa aflorar os tipos discursivos que muito dizem da condição do homem no mundo, num espaço em fase de urbanização e industrialização em que os sentimentos e as euforias se confundem no descompasso acelerado da máquina.

Como um dos momentos mais representativos de um lirismo social e engajado, a antologia de 45, intitulada A rosa do povo, evidencia um fazer literário identificado com a coletividade, com o mundo dos homens simples e humildes. Afinal, é para o povo que Drummond oferece a rosa como possibilidade de redenção de um regime capitalista e desumanizante em benefício da ascensão dos valores humanitários capazes de transcender a tirania centralizante da ‘máquina do mundo’ e de fazer ressurgir por entre a arquitetura pétrea do asfalto a singeleza de uma flor. É essa a imagem dramática que presenciamos ao lermos a poesia A flor e a náusea.

Em meio à ‘bondes, ônibus’ e à ‘rio de aço do tráfego’, nasce uma flor. É feia, sem nome, sem pétalas, desbotada, mas, ainda assim, é uma flor que nasce. Nem para a beleza que nos inspira uma flor, o poeta conserva a utopia. A negação de características intrínsecas à imagem que temos de uma flor, mostra-nos o rebaixamento da moderna cidade do século XX. Nesse cenário, a flor surge como possibilidade de restituição dos valores perdidos, capaz de transcender o mundo problemático e defeituoso e de devolver o aspecto humano a um espaço tomado pela sombra e pelo medo. Enquanto que a náusea vem do mal-estar diante das ‘fezes, maus poemas, alucinações e espera’, diante do caos social, a flor simboliza a luta, o não-conformismo. São as vozes dos homens humildes, à margem do sistema, que incorporam a força capaz de fazer nascer a flor na rua, ‘rompendo o asfalto’, sem fingir a sua existência (ANDRADE, 2006, p. 28):

Uma flor nasceu na rua!
[...]
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A aparição da flor em meio a ‘nuvens maciças’ e à ‘rio de aço do tráfego’ simboliza o grito dos oprimidos, a multiplicidade de vozes que se colocam contra a palavra opressora. É uma forma da natureza que sofre os impactos de um mundo desumano, é uma flor gauche, assim como Carlos, anunciada por um anjo torto, que surge para parar a desenfreada ‘marcha do mundo capitalista’, que rompe a camada sólida e pétrea em que o mundo se fecha. É uma forma insegura que se desprende de sua condição de beleza e paz para representar as inquietações da humanidade. Drummond, através de representações como a flor, a mão suja, a dentadura dupla, de personagens como Carlos, José, Luíza Porto, e de animais como um elefante, um boi, um inseto, incorpora uma diversidade de vozes e o ‘sentimento do mundo’.
Drummond, através das vozes sociais que se instauram no seu dizer, evidencia tensões que se estendem de um lirismo íntimo ao social e político, de uma voz que, centrada no eu poético, protagoniza o dizer engajado em comunhão com o outro, com o indivíduo ‘gauche’, desajustado e desarticulado diante do sistema materialista e mecanicista da época. Segundo os estudos de Simon (1978, p. 52), “[...] a luta contra o fascismo, a guerra de Espanha e a Guerra Mundial favoreceram o desenvolvimento da literatura participante em todo o mundo”.

O movimento modernista brasileiro insere a expressão poética num novo cenário, em que o poeta lança sua voz coletiva em caráter de denúncia, de descontentamento e de reivindicação num universo em desajuste e desequilíbrio. As exaltações que, historicamente, perpassam pelo ufanismo e nacionalismo até o culto da arte-pela-arte, deixam de existir e o que vivemos são as tensões próprias de um país subdesenvolvido que percebe a literatura não mais como a expressão do belo, mas como um veículo de contestação. A essas idéias recorremos à voz de Antônio Candido (2000, p. 198), em seu texto A revolução de 30 e a cultura:

[...] Poetas como Drummond e Murilo Mendes pareciam reduzir o verso a uma forma nova de expressão, que incorporou as qualidades da prosa e funcionou como instrumento adequado para exprimir o dilaceramento da consciência estética. Sob este aspecto eles prolongaram a experiência modernista de apagamento das fronteiras entre os gêneros, que fora empreendida nos anos de 1920, sobretudo por Oswald de Andrade [...]

O poeta absorve as inquietações de seu tempo e, através de seu dizer, enxergamos seres atrofiados, vozes que clamam por justiça e que se colocam no curso da história. Através de seu dizer inquieto, fruto de um tempo opressor que tende ao apagamento do eu frente ao outro, o poeta incorpora uma existência que se espelha na ‘forma insegura’ da flor que ‘rompe o asfalto’ e anuncia uma geração nascida para o medo. Dedicada ao nosso mestre Antônio Candido, a poesia O medo revela momentos de nossa história em que, fortemente, começamos a dançar o ‘baile do medo’, afinal: “[...] há para todos nós um problema sério... Este problema é o do medo” (ANDRADE, 2006, p. 35).

Em tempos de repressão, nosso poeta dá voz aos que tiveram seus sentidos ofuscados pelo medo. Através de seu dizer, o poeta compõe uma encenação que nos revela, aos poucos, a força de um sistema centralizador contra o qual luta o ser humano em todas as fases da vida, em todos os momentos de nossa existência. É a aspereza de um discurso único que impõe sobre nós a sua ‘mão pesada’, capaz de nos tornar uma ‘multidão compacta’, cristalizando nossa imagem ao do ‘ser gauche’. Nossa história edificou ‘estátuas sábias’ e somos nós ‘fiéis herdeiros do medo’. Vamos, mas de ‘olhos acesos’ como quer o dizer drummondiano, seguir nosso percurso pela história de nosso tempo. Vamos ver nossos filhos, jovens e felizes, fiéis herdeiros do medo, seguindo a luta do ser-não-sendo, vítimas e cúmplices de um sistema autoritário, pai de uma geração de dissimulados. Vamos ver nossos filhos, fiéis herdeiros do medo, anunciando, conforme a poesia de Drummond (ANDRADE, 2006, p. 37), que a epidemia se alastra através dos tempos:

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

Somos filhos de um mundo opressor e capitalista que, aos poucos, aniquila o humano e nos torna formas inseguras e feias, constituídas da impureza do momento. Somos flores gauches e medrosas procurando ressurgir no asfalto, na camada pétrea que nos suga e nos absorve, que nos faz seres condenados à sombra. Nós somos noite. Somos a ‘rosa na máquina’ que, nascida no asfalto, desfolha-se. Mas, de tudo fica um pouco e ficou um pouco da rosa e um pouco do medo. As memórias de tempos passados nos indagam ‘se a vida é ou foi’ e seguimos nosso percurso num impasse entre o ser e o não-ser. Somos herdeiros do medo e da inquietação. Somos a voz inconformada do poeta que luta por um ‘território de homens livres’, por uma ‘pátria de todos’, em que todos viverão como irmãos num ‘país de todo homem’.

A fonte de inspiração poética deixa de pairar sob o lirismo utópico para elevar como matéria artística o chão do mais puro cotidiano, as formas mais simples e humildes de nossa história. Assim o faz em Canto ao homem do povo Charlie Chaplin, em que através de um eu potencial do discurso falam as vozes do povo e anunciam uma sociedade cheia de vícios e de vaidades. No entanto, das vozes, ‘que como carros percorrem as ruas’, o eu-poético só escuta as mais humildes, as que ficam assolando através dos tempos como pedidos de luta e de justiça. Quem sabe as únicas e verdadeiras, capazes de tornar digna a nossa existência. Somente através da face dos homens humildes e comuns é que podemos reconhecer os que falam no discurso poético drummondiano (ANDRADE, 2006, p. 191-192):

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens – e te descobriram e salvaram-se.

Falam os abandonados de justiça, os simples de coração,
os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

Em Procura de Poesia (ANDRADE, 2006, p. 25-26), uma das poesias que inicia a antologia, Drummond nos dá o tom de seu fazer poético engajado e, assim, munidos deste espírito, seguimos o jogo de claro-escuro que o universo discursivo nos interpela, mas lembremos que, conforme Bakhtin, o sentido sempre vai além do dito:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

4. Considerações finais

De um modo significativo, o discurso vivo do homem, seja ele prosador, poeta ou ‘filósofo da linguagem’, permite-nos refletir acerca da densidade e abrangência do seu dizer, num diálogo que se estende, ininterrupto e infinitamente, através dos tempos. E, assim, nesta via, é que propomos reler a teoria polifônica de Bakhtin, tendo como horizonte para a análise a poesia de Drummond.

Para tanto, procuramos respostas para as seguintes questões de pesquisa, de caráter abrangente: Quais os possíveis caminhos que nos levam a repensar a teoria polifônica de Bakhtin, consagrada pela prosa romanesca, tendo como horizonte para o pensamento teórico-analítico a poesia? E, mais especificamente: Como se manifestam as vozes no dizer poético drummondiano?

Com o advento da modernidade, as fronteiras existentes entre o mundo da cultura e o mundo da vida, antes bem delimitadas, passam a existir secundariamente, cabendo ao poeta definir acerca de seu estilo criador, de sua relação para com o discurso alheio, podendo elaborar um discurso próprio, assim como o faz João Cabral de Melo Neto, ou seguir na esteira de uma poesia engajada, em que o eu-poético personifica uma coletividade, tal como o faz Drummond. E, em palavras de Bakhtin (1990, p. 89): “ao se constituir na atmosfera do ‘já-dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo”.

Nesta perspectiva, refletir acerca da teoria polifônica de Bakhtin em diálogo com a poesia de Drummond implica ora poder perceber o enunciado do outro e o que o acolhe, ora poder enxergar as vozes alheias nas faces ocultas da criação enunciativa. E, através da escuta da palavra, percebemos o quanto falam as vozes silenciadas da história que, vitalizadas pela força social, anunciam traços ainda mais marcados e mais estáveis, que persistem nelas como resultado da ação de um força que rompe a incomunicabilidade que, historicamente, insiste em ocultar, por trás da utopia, a face real, mesmo que impura, feia e até desprezível. Deixemos, então, brotar a forma insegura da flor por entre a arquitetura pétrea do asfalto!

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1 Uma das traduções da expressão russa literaturnost é ‘literariedade’ que se tornou bastante usual pela crítica literária. Em nosso estudo, utilizaremos o termo ‘literaturidade’, mantendo a opção feita por Tezza (2003) em seu estudo acerca de Bakhtin e o formalismo russo.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 36. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2. ed. São Paulo: Unesp Hucitec, 1990.
______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CANDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000.
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática, 1978.
TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
______. Poesia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.

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