Mikhail Bakhtin, em seu texto Observações sobre a epistemologia das ciências humanas (1974/2000, p. 402), afirma que ler textos é estar no campo da compreensão, sendo esta dialogicamente ativa. Esta visão se coloca em função de Bakhtin entender que o fazer científico nas ciências humanas se materializa por gestos interpretativos, por contínua atribuição de sentidos e não por gestos matematizados. As ciências humanas se diferenciam das ciências naturais por terem objetos notavelmente diferentes e, por conseqüência, métodos diferentes.
Nesta perspectiva o ideal das ciências da natureza é metodologicamente a explicação, partindo do exterior para estabelecer relações necessárias entre os fenômenos enquanto o ideal das ciências do espírito é a compreensão, percorrendo caminho oposto, captando do interior os significados das ações humanas, ou seja, “toda palavra (todo signo) de um texto conduz para fora dos limites desse texto” (Ibid., p. 404).
Bakhtin entende as “ciências humanas – ciências que tratam do espírito” (Ibid., p. 404) como ciências do texto por se constituir como uma forma de saber dialógico em que o intelecto está diante de textos que não são coisas mudas, mas a expressão de, pelo menos, dois sujeitos: o que analisa e o analisado. Dessa forma “o texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e para frente, fazendo que o texto participe de um diálogo” (Ibid., p. 404). Para Bakhtin, esse diálogo é construído a partir de “etapas da progressão dialógica da compreensão: o ponto de partida – o texto dado, para trás – os textos passados, para frente – a presunção (e o início) do contexto futuro” (Ibid., 404).
Debruçada sobre a significação, as ciências humanas trabalham com a compreensão e não com a explicação como fazem as ciências da natureza. Enquanto a explicação aponta para o necessário, a compreensão aponta para o possível, porque “compreender é cotejar com outros textos e pensar num contexto novo (no meu contexto, no contexto contemporâneo, no contexto futuro).” (Ibid., p. 404).
A partir desta concepção de que ler textos é estar no campo da possibilidade e da compreensão situado num determinado momento histórico-social, buscamos através da leitura de diferentes textos acadêmicos conhecer um pouco mais a respeito do passado da disciplina língua portuguesa via livro didático de português. Buscar conhecer o passado dessa disciplina é estar fazendo relações com o próprio campo da educação, na medida em que nosso interesse está voltado ao ensino da língua e aqui, especificamente, da língua portuguesa, área de minha formação docente. Sabemos que, na atualidade, tanto na educação como no ensino da língua portuguesa, são muitas as lacunas e muitos os problemas a serem enfrentados, e o docente encontra-se carente de informações sobre a história desse ensino. Dessa forma, o interesse em conhecer o passado histórico da disciplina língua portuguesa via livro didático se coloca como um interesse muito particular iniciado nas pesquisas de iniciação científica no período de graduação e ampliado nas pesquisas de mestrado como forma de conhecer e tornar conhecido o processo de constituição de uma disciplina e de sua relação com o nosso fazer docente. Assim, entendemos que falar sobre educação, ensino e ensino de língua portuguesa é também falar do livro didático. Para isso, apresentamos inicialmente algumas pesquisas históricas já realizadas sobre o livro didático de português para, posteriormente, dar a nossa resposta aos textos analisados.
O que nos move nesta tarefa de ler textos é o fato de acreditarmos que a disciplina Língua Portuguesa tem uma história já vivida, e que o conhecimento dessa história pode ser fonte de reflexão e discussão para a situação vivida hoje no ensino de língua materna.
Entendendo que compreender um texto é participar de um diálogo mobilizando aquilo que se leu para dar uma resposta através de outro texto, apresentamos, a seguir, nosso diálogo com alguns textos que abordam a temática proposta: educação e ideologia na atualidade.
Os estudos envolvendo livros didáticos de Língua Portuguesa podem ser observados a partir de diferentes abordagens, dependendo da perspectiva teórica assumida. Bittencourt (2008), por exemplo, pensa o livro didático de forma ampla. Conforme a autora, o livro didático foi concebido pelo poder instituído como um poderoso instrumento para fixar e assegurar determinada postura educacional como uma forma de o Estado controlar o saber a ser divulgado pela escola. Criado com base na instalação de instituições escolares públicas, o livro didático era entendido como a possibilidade de unificar a educação escolar em todo o território nacional, favorecendo a inserção de determinadas categorias de jovens em uma mesma comunidade cultural, dominando uma única e determinada forma de se expressar e de se comunicar.
Considerado como peça fundamental na transmissão do saber escolar, esse objeto cultural passou do Estado liberal à iniciativa particular, cabendo a esta o direito de fabricá-lo, sendo automaticamente transformado em uma mercadoria inserida na lógica capitalista. Segundo Bittencourt, para efetivar a transformação de um material didático em produto de maior consumo e simbólico da cultura escolar, editores aproximaram-se do Estado, engendrando atuações conjuntas em suas formas de circulação. Estabeleceram-se entre ambos acordos por intermédio dos quais o livro didático disseminou-se no cotidiano escolar, transformando-se no principal instrumento do professor na transmissão do saber.
Conforme a autora, o livro didático inscreve-se na história de uma disciplina à medida que ocorre a construção do saber escolar; é um dos raros objetos da cultura escolar possível de veicular um conhecimento organizado e sistematizado com certo rigor e em condições de circular em meio a um público leitor heterogêneo cujo saber é fortemente construído pela intervenção externa. Assim, a história do livro didático e a história da disciplina escolar estão intrinsecamente vinculadas.
Outra autora a trabalhar com o tema livro didático é Soares (1996) comentando que, nos últimos anos, vêm sendo lançados muitos olhares sobre o livro didático: um olhar pedagógico, um olhar político e um olhar econômico, os quais prescrevem, criticam ou denunciam esse material. A autora propõe, então, um olhar diferente, que investigue, descreva e compreenda-o e que se lance do lugar de uma história e de uma sociologia do ensino, que busque uma perspectiva sócio-histórica do livro didático.
Soares relata que o livro didático, criado na Grécia antiga, persistiu ao longo dos séculos, em todas as sociedades, de forma insistente e persistente; livros de leitura, manuais de retórica, gramáticas povoaram as escolas através dos séculos:
o ensino sempre se vinculou indissociavelmente a um “livro” escolar, fosse ele livro utilizado para ensinar e aprender, fosse livro propositadamente feito para ensinar e aprender (p. 114).
Este vínculo entre livro didático e escola é resultado de uma longa história do ensino que muitas vezes não é percebida pelos professores e pesquisadores que hoje se envolvem com esse material. Para a autora a presença insistente e persistente do livro didático na escola se deve ao fato de essa instituição ser fundamentalmente ortodoxa, ou seja, uma instituição burocrática, onde se ordenam e se hierarquizam ações e tarefas, e, sobretudo, selecionam-se, no amplo campo da cultura, dos conhecimentos, das ciências, das práticas sociais, os saberes e competência a serem ensinados e aprendidos. O saber, para ser ensinado pela escola, acaba sendo didatizado, escolarizado. Por esse motivo, segundo a autora, é que o livro didático se constituiu historicamente como um instrumento para assegurar a aquisição dos saberes escolares, ou seja, “daqueles saberes e competências julgados indispensáveis à inserção das novas gerações na sociedade, aqueles saberes que a ninguém é permitido ignorar” (p. 115).
Para Soares, as mudanças que ocorrem no livro didático, tanto em seu conteúdo quanto na sua didatização, são, pois, determinadas pela evolução dos campos de conhecimento que dão origem às disciplinas escolares, os novos objetivos que a escola vai assumindo, à medida que se alteram as demandas sociais e a situação econômica, as condições de formação e de trabalho que se vão impondo aos professores; são fatores culturais, sociais, econômicos que influenciam diretamente a organização e composição desse material.
Num outro texto, a mesma autora também trata de livros didáticos, mas desta vez, livros didáticos de língua portuguesa. Soares (2001) analisa dois manuais didáticos utilizados nas escolas brasileiras: a Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, que predominou nas escolas brasileiras do fim do século XIX até os anos 30 do século XX e Estudo Dirigido de Português, de Reinaldo Mathias Ferreira, que teve grande sucesso nos anos 1970. Conforme a autora, durante várias décadas foi utilizada nas escolas brasileiras para o ensino de Português a Antologia Nacional1, composta por uma coletânea de textos de autores consagrados, portugueses e brasileiros. Neste período, era impensável um manual que fornecesse sugestões de exercícios, orientações metodológicas, explicação dos objetivos para auxiliar o professor em suas aulas. Em alguns casos, quando apareciam, essas orientações eram colocadas nos prefácios, mas muito genéricas, aparecendo como “anotações esclarecedoras” 2, dirigidas “aos alunos, aos que aprendem, não aos professores, aos que ensinam” (p. 72). Bastava que o manual didático oferecesse os textos, numa antologia austera, que o professor, considerado bom leitor e conhecedor de língua e literatura, seria capaz de, autonomamente, definir uma metodologia de trabalho com textos, na sala de aula.
Aos poucos este cenário foi se alterando e o professor passa a ocupar outra função na sala de aula, não mais a de conhecedor da língua e da literatura, mas a de um profissional que vai sendo considerado “cada vez menos capaz de assumir autonomamente a ação docente, num movimento em que a profissão professor vai-se transformando em trabalho e o profissional, em trabalhador” (p 33). Esse processo de depreciação da função docente levou professores a criarem estratégias de facilitação no preparo de suas aulas, sendo a principal delas “transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios” (Soares, 1996, p. 125).
Quando, a partir dos anos 50 e 603, os livros didáticos de Português começam a apresentar cada vez mais explicitamente uma metodologia de ensino, traduzida na didatização da leitura, em orientações para o professor, em exercícios e atividades a serem realizadas pelos alunos, confirma-se uma tendência já anunciada nas “anotações esclarecedoras” introduzidas por Daltro Santos na Antologia Nacional.
Comenta Soares que, no início dos anos 70, chega às escolas brasileiras o livro didático Estudo dirigido de Português, de Reinaldo Mathias Ferreira4, marcando o momento em que a proposta explícita de uma metodologia de ensino, de didatização da leitura e as orientações para a ação do professor se concretizavam de forma plena. Para Soares, a coleção de Ferreira “foi uma das primeiras, se não a primeira, a oferecer aos professores o ‘seu’ livro, com explicitação dos objetivos do manual didático, orientações metodológicas, sugestões de atividades e, o que seria impensável até os anos 60, as respostas dos exercícios” (p. 71). Além disso, a coleção oferecia sugestões de provas (propunha até o valor a ser atribuído a cada questão proposta) e teste de sondagem.
No dizer de Soares, há uma mudança visível de concepção de professor e do fazer docente nos diferentes períodos em que se inscrevem os dois manuais didáticos (a Antologia Nacional e Estudo Dirigido de Português). Soares expõe que uma multiplicidade de hipóteses deve ser considerada, na tentativa de explicar a mudança ocorrida, das primeiras às últimas décadas do século XX, nas concepções de professor, subjacentes aos livros didáticos. As mudanças ocorridas neste período podem ser assim sintetizadas, conforme Soares:
O recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores, resultado da multiplicação de alunos, escolas e agências formadoras de professores, vai conduzindo a um rebaixamento salarial e a um processo de depreciação da função docente e, consequentemente, a precárias condições de trabalho, o que obriga os professores a buscar estratégias de facilitação de suas atividades docentes – uma delas é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios (p. 74). (grifos nossos)
Para essa autora, esse novo professor, das décadas de 60 e 70, não tem condições de assumir autonomamente a responsabilidade e a tarefa de preparar suas aulas e de formar bons leitores; essa tarefa é transferida para o autor do livro didático que passa a assumir essa responsabilidade e essa tarefa que os próprios professores esperam dele.
Mais recentemente, outro trabalho traz contribuições para se compreender o livro didático de língua portuguesa. Trata-se da pesquisa realizada por Bunzen (2005) que culminou no seu trabalho de dissertação de mestrado defendida há pouco tempo. Para Bunzen (2005), o olhar que normalmente é lançado para entender o livro didático de Língua Portuguesa é sempre a procura do homogêneo, do fio “uno” e claro; são estudos normalmente avaliativos, que utilizam o livro didático de Português “para fazer uma ‘análise do conteúdo’ e discutir a maneira com que algum objeto de interesse científico [...] está sendo tratado pelos autores de livros didáticos” (Bunzen, 2005a, p.558). Para o autor, é assim, muitas vezes, que se dá a “nossa entrada pelo mundo dos livros didáticos” (p. 558).
Bunzen (2005b) defende uma visão diferenciada, acreditando que o livro didático de Português se caracteriza muito mais por uma incompletude e por uma heterogeneidade de saberes, de crenças e de valores sobre a língua e seu ensino/aprendizagem do que num saber-fazer homogêneo e sem conflitos; são, na sala de aula, “objetos de movimentos de recontextualização e de re-significação, em que as concepções dos professores e dos alunos assumem importantes significados nesse processo” (p.12).
A partir dos diferentes textos apresentados sobre a constituição da disciplina língua portuguesa via livro didático, percebemos que esta disciplina, a partir dos anos 1950, começa a apresentar mudanças significativas no seu conteúdo em função de uma progressiva transformação das condições sociais e culturais e das possibilidades de acesso à escola. Os livros didáticos de língua portuguesa, por sua vez, são testemunhas dessas mudanças na medida em que começam a incluir, a partir dos anos 1960, exercícios de vocabulário, de interpretação de texto, de redação e de gramática, proporcionando ao professor um número maior de informações para suas práticas em sala de aula.
Como participante desse diálogo envolvendo livros didáticos de português, queremos marcar nossa posição axiológica através de uma atitude responsiva que se apresenta como um interesse em investigar outros aspectos voltados para o livro didático, na minha pesquisa de mestrado. Diante da necessidade de conhecer mais a respeito desse objeto, optamos por utilizar o livro didático de língua portuguesa, olhando especificamente para a constituição da unidade didática, pesquisa que se justifica pela falta de trabalhos que levem em conta essa temática.
Tomando a unidade didática como foco, propomo-nos a investigar em que medida ela pode se constituir em um gênero organizador do livro didático de Língua Portuguesa de diferentes décadas do século XX, no Brasil; a verificar como a unidade vem se constituindo no livro didático nas décadas de 1960, 1970 e 1980 e conhecer as relações previstas que se estabelecem nessas décadas entre a unidade didática, tal como é proposta pelo livro, e o projetado professor de português5.
Para tanto, a pesquisa que venho desenvolvendo se sustenta na perspectiva teórica sócio-histórica, que olha para a unidade didática a partir de um processo histórico, e o livro didático como um dos instrumentos responsáveis para “assegurar a aquisição dos saberes e competências julgados indispensáveis à inserção das novas gerações na sociedade”, conforme Soares (1996, p. 116). Estudar o livro didático no Brasil sob essa perspectiva é um caminho aberto não só ao conhecimento da constituição da disciplina Língua Portuguesa, em particular, mas também ao de qualquer outra disciplina, ao longo do tempo, sempre determinado e explicado pela evolução de políticas sociais, culturais e educacionais (Soares 1996, p. 116).
A partir dessa perspectiva, mobilizamos a noção de gênero, conforme proposta pelo Círculo de Bakhtin, na tentativa de conhecer em que medida a unidade didática se constitui um gênero organizador do livro didático de língua portuguesa, o que leva a supor a presença de um conteúdo temático, uma forma composicional e um estilo com marcas específicas de linguagem. Esses três elementos, na visão bakhtiniana (1952-53/2006), são essenciais na formação de um gênero do discurso.
A contribuição que buscamos trazer com este trabalho consiste na possibilidade de refletir e dialogar sobre o passado do ensino de língua materna na tentativa de trazermos novos elementos desse passado para auxiliar na formação dos futuros professores de língua portuguesa. Quando falamos em unidade didática, estamos buscando conhecer sua constituição, via livro didático, como uma possibilidade de conhecer um pouco mais a respeito desse gênero no seu percurso de constituição e de sua relação com o fazer docente.
Nossa atitude responsiva está sendo aos poucos construída como resultado de nossa dissertação de mestrado. Acreditamos que tal estudo possa dialogar com muitos outros trabalhos que abordam alguns aspectos da educação, do ensino e do ensino de língua portuguesa na medida em que forneça outros elementos de reflexão sobre o passado desse ensino. É a partir do diálogo entre presente e passado que surgem novas propostas para se trabalhar tanto na educação como no ensino de ensino de língua portuguesa nos dias atuais.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1974/2000, p. 401-414.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
BUNZEN, Clecio. Livro didático de Língua Portuguesa: um gênero do discurso.
SOARES, Magda Becker. Um olhar sobre o livro didático. In: Presença Pedagógica, v.2, n.12, Nov./dez. 1996, p. 52-64.
______. O livro didático como fonte para a história da leitura e formação do professor-leitor. In: Marinho, M. (org.) Ler e navegar: Espaços e percursos da leitura. Campinas: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil, 2001, p. 31-76.
1 Conforme Soares, a Antologia perdurou no ensino de Português por 74 anos, teve 43 edições, sendo a primeira em 1895 e a última em 1969.
2 Para Soares, as “anotações esclarecedoras” são introduzidas por Daltro Santos na Antologia Nacional, em sua 25ª edição, de 1942.
3 De acordo com Soares (2001), os livros didáticos das demais disciplinas também sofrem modificações semelhantes.
4 Conforme Soares, Reinaldo Mathias Ferreira era professor de Português de um colégio estadual, professor de ensino superior no Paraná, da disciplina que então se denominava Didática Especial de Português.
5 Destacamos que não há a preocupação em enfocar o uso do livro didático, da unidade didática nem das relações efetivas que se estabelecem entre professor e aluno.
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