Igor José Siquieri Savenhago
1. A autocontemplação
Em suas reflexões sobre o ato da autocontemplação, Bakhtin (1997b) afirma que, ao se olhar no espelho, todo homem se enxerga como os outros o vêem, já que o que ele vê num espelho não é a si próprio, mas um reflexo. E como é impossível ver-se no todo do seu exterior, o homem projeta, no próprio corpo e nos próprios olhos que miram o espelho, o corpo e a visão de um outro, que passam a julgar a imagem segundo os critérios estabelecidos por meio da relação, com o mundo, de quem contempla o reflexo. Nesse sentido, para Bakhtin, nunca se está sozinho frente ao espelho. Há sempre outro participante envolvido no ato da autocontemplação. Portanto, olhar-se no espelho é ver-se a si mesmo, ou seu reflexo, com os olhos dos outros. É servir-se como uma moradia, estar “habitado” pelo conjunto de relações que estabeleceu ao longo da vida e que determinam a maneira como o mundo será visto, analisado e usufruído.
No mundo pós-moderno, o espelho assumiu um papel importante, como um auxiliador na construção da imagem de um ser humano que, a toda hora, se relaciona com o que está a sua volta - homens, animais ou objetos. Usa o espelho para se vestir, fazer um novo penteado, abusar da maquiagem. E, dessa forma, espera obter a aprovação do grupo social em que está inserido ou pretende se inserir. Ao mesmo tempo, esforça-se para que os outros notem, percebam a impressão que deseja passar, a de alguém que se preocupa com a aparência. Ou então, se despenteia, deixa a barba crescer, veste uma calça rasgada e desbotada e chinelos para constituir nos outros uma imagem de contestador. O espelho é, nesse contexto, uma forma que o ser humano tem de tentar não perder o controle na relação com o outro, de apreender, de não deixar escapar o que será apresentado a um interlocutor. Em algumas situações, pessoas que estão prestes a falar em público “treinam” a postura e ensaiam, em voz alta, frente a espelhos, as palavras que irão utilizar. Imaginam como o público receberá o seu dizer e procuram se comportar, já diante do espelho, de acordo com o que imaginaram, ou seja, antevêem o comportamento do público.
A proposta deste trabalho é dialogar com alguns dos principais conceitos da teoria de Mikhail Bakhtin tendo, como pano de fundo, textos que fazem referência aos espelhos como representação da relação eu-outro, do dialogismo que marca a interação entre um ser humano com outro ser humano e dos seres humanos com o mundo. E demonstrar que a imagem refletida no espelho é uma construção social. A reflexão será feita a partir de três textos do escritor Frei Betto: “Por que escrevo”, “O hóspede” e “Egg”.
2. Alteridade e ideologia
Afirma Bakhtin (1997c, p. 35):
A palavra é o fenômeno ideológico por excelência [grifo do autor]. A realidade de toda a palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.
Ainda segundo o autor, a palavra serve como uma ponte entre um ser falante e outro ser falante. É através da palavra que uma relação com o outro é possível. Antes de nascermos, já somos recobertos de palavras. Somos falados, comentados, discutidos, aguardados ansiosamente através das palavras. Os amigos e vizinhos dos nossos pais tentam adivinhar se o bebê que está para chegar será menino ou menina, com quem será mais parecido, apostam qual será a primeira palavra que a criança vai falar. A palavra, portanto, é o meio mais rápido de se estabelecer contatos. Mas, para Bakhtin, a palavra está recheada com conteúdos ideológicos. A cada situação diferente, a cada contexto diferente, uma mesma palavra pode ganhar um significado diferente, dependendo da orientação ideológica do grupo que a utiliza. Isso pode ser observado na seguinte passagem (1997c, p. 46):
Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios [grifo do autor]. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço de maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá, infalivelmente, debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional vivo pra a sociedade. A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos. Somente na medida em que o filólogo e o historiador conservam a sua memória é que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida. Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e deformação do ser.
A palavra, por si só, é neutra, mas quando colocada em circulação na sociedade é dinâmica, muda de sentido sempre quando é utilizada. Um significado aparente é posto em xeque quando entra em contato com determinados grupos sociais.
As relações por meio da linguagem, para Bakhtin, são feitas, portanto, de signos, que tem como característica serem carregados de ideologia. Quando uma palavra é dita, ela não é igual a si mesma. Pelo contrário. Leva junto todas as maneiras das quais já foi utilizada, reutilizada, redefinida pela sociedade. Carrega uma carga ideológica. É por isso que Bakhtin (1997c, p. 95) diz que, numa conversa, não ouvimos palavras, mas, sim, “verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis”. As palavras são depósitos dos valores que atribuímos a elas. Por isso, transformam-se em signos.
Bakhtin (1997c, p. 41) complementa esta reflexão:
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mas efêmeras das mudanças sociais.
Por mais que tente, o homem, nesse jogo de mudanças sociais provocadas pelas palavras, ou melhor, pela ideologia dos signos, não consegue controlar os sentidos. Mesmo que perca tempo no espelho se ajeitando para que todos os outros o vejam e falem dele da mesma forma, não domina totalmente as conseqüências de sua apresentação (ou representação), não controla, em todas as suas possibilidades, a maneira como será recebido pelo outro. O espectador enxergará ou ouvirá uma informação mediante o conhecimento de mundo que possui. Uma derrota do seu time pode deixar um corintiano triste o dia todo e não provocar o mínimo efeito no cineasta que não gosta de futebol. Por isso, o outro é peça tão fundamental quanto o eu num jogo de linguagem. O sentido não depende somente da intenção de quem fala, mas, também, do repertório de quem recebe. Com isso, os sentidos se multiplicam, tornando a língua viva, e fazendo com que tudo esteja em diálogo com tudo. Enunciar algo poderia ser entendido como perder o controle dos sentidos que serão produzidos. Quanto mais gente ouve ou lê um enunciado qualquer, mais interpretações serão feitas e mais outros novos enunciados serão postos no jogo das relações eu-outro.
Para Bakhtin, porém, o dialogismo não está presente apenas externamente. Também internamente. O ser humano dialoga com ele mesmo, através da consciência. Par elaborar um enunciado, põe em confronto, no pensamento, signos diferentes, conteúdos ideológicos divergentes, revisita o passado, ressignificando fatos que ficaram marcados por uma rede de memória, projeta o futuro, tentando entender quais serão as conseqüências de sua fala ou escrita, enfim, promove um diálogo interno antes de entrar no jogo do diálogo externo, com o mundo. Esse diálogo interno também é feito por meio de signos. Portanto, para Bakhtin, o conteúdo da consciência e a fala são sociais [grifo nosso]. A todo momento, o eu constitui o outro e o outro constitui o eu. O teórico refuta a idéia de que a enunciação é um ato individual. Ela é produto da teia de relações estabelecidas ao longo da vida.
Segundo Miotello (2005, p. 178),
O meio social envolve, então, por completo o indivíduo. O sujeito é uma função das forças sociais. O eu individualizado e biográfico é quebrado pela função do outro social [grifo do autor]. Os índices de valor, adequados a cada nova situação social, negociados nas relações interpessoais, preenchem por completo as relações Homem x Mundo e as relações Eu x Outro.
Como já foi mencionado, antes de nascermos, já somos revestidos com signos. Ao mesmo tempo, começamos a constituir quem está a nossa volta, mesmo que desprovidos de palavras. Pelo choro, avisamos que estamos com fome. Pelo riso, que gostamos da comida. Aos poucos, a convivência com os falantes nos permite pronunciar as primeiras palavras, que vão sendo adesivadas com a ideologia da família. Na escola, os amigos e os professores tentam moldar a nossa consciência com novos significados. E nossa mente vai juntando todos esses pedacinhos ideológicos, recortes que formarão nossa identidade. Passamos a ser únicos, diferente de todos os outros seres humanos. Para Bakhtin (1997c, p. 34), isso mostra que é o outro quem me constitui como diferente. É o olhar do outro que me faz ser único. Único, mas social. Sem o outro, o ser não poderia evoluir.
Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico.
Segundo Faraco (2005, p. 43), toda essa reflexão “tem como pano de fundo o pressuposto (...) da alteridade, no sentido de que tenho que passar pela consciência do outro para me constituir (ou, num vocabulário mais hegeliano, o eu-para-mim se constrói a partir do eu-para-os-outros)”.
Dessa forma, toda enunciação se torna, sempre, uma resposta. Quem enuncia precisa imaginar quem é o interlocutor, como ele se comporta, de que forma irá receber um enunciado. Só assim poderá tentar responder às expectativas o mais próximo possível desse interlocutor, de forma que os sentidos não escapem completamente do controle de quem enuncia.
3. Frei Betto e o espelho
Neste trabalho, busca-se analisar como o escritor Frei Betto construiu enunciados sobre a relação com o outro utilizando a figura do espelho. O primeiro texto, intitulado “Por que escrevo”, é uma tentativa do autor de explicar as razões que o levaram a se tornar escritor. Depois de relatar, no primeiro parágrafo, que vai listar várias hipóteses, não excludentes, para tentar descobrir por que escolheu o caminho das letras como ofício, cita, logo em seguida, no parágrafo seguinte e no terceiro, a figura do espelho. Os grifos são nossos.
Escrevo para construir minha própria identidade. Tivesse sido criado por lobos, será que eu me sentiria lobo no mundo? A identidade é também reflexo de um jogo de espelhos. Se pais e mestres me tivessem incutido que sou tapado para as letras, e não me restasse alternativa senão trabalhar no fundo de minas, talvez hoje – se houvesse sobrevivido – eu fosse um mineiro aposentado.
Minha experiência, porém, foi diferente. Os espelhos reluziram em outras direções. Já trazia em mim o fator filogenético. Meu pai escreve crônicas. Minha mãe publicou sete livros de culinária. O gato da casa não escreve; mas, pelo jeito, gosta de ler, a julgar pelo modo como se enrosca em jornais e revistas.
Betto atribui aos espelhos uma metáfora das relações sociais – com pais e professores - que ele considera fundamentais para explicar como tomou gosto pela escrita. Espelho, nesta passagem, aparece como sinônimo de interação, da importância do outro na constituição da identidade do autor. A identidade de quem escreve o texto foi construída com base em espelhos que refletiram valores positivos, como o amor pela leitura. Através desses espelhos, foi possível constituir uma carga ideológica para, a partir da literatura, relacionar-se com os outros. Betto admite a importância da interação social para a constituição da identidade. Ao questionar se, na possibilidade de ter sido criado por lobos também seria um lobo, o autor reconhece que a linguagem determina o homem como um ser humano. É a verbalização do conteúdo da consciência que o torna diferente dos outros elementos do mundo, como os animais. Dessa forma, Betto concorda que a linguagem é social e não individual. Sua raiz não é a consciência, mas as relações. São as relações sociais que determinam a consciência. O mundo entra na consciência pela linguagem, pelo signo, e, dessa forma, a consciência pode expressar seu conteúdo também através dos signos. Se Betto tivesse sido criado entre lobos, portanto, poderia ser um exímio caçador, mas é improvável que conseguisse falar e dominar a escrita.
Numa passagem posterior, o espelho vota a aparecer no texto de Betto:
O texto se fazia espelho [grifo nosso] e eu via meu próprio rosto no lugar do perfil anônimo do autor. Mais do que o conteúdo, encantavam-me a sintaxe, o modo de construir uma oração, a força dos verbos, a riqueza das expressões, a magia de encontrar o vocábulo certo para o lugar exato.
Nesse fragmento, o espelho aparece com outro sentido em relação às passagens anteriores. Antes, o espelho foi apresentado como sinônimo de pessoas – pais, professores. Agora, substitui os textos que leu ao longo da infância e passou a admirar, que serviram de estímulo para que começasse a escrever. No final do parágrafo, Betto ressalta uma das características do homem enquanto um ser que faz parte de jogos de linguagem: a de fazer escolhas. A partir do momento em que se torna escritor, escolha que fez com base nas influências que recebeu quando criança, descarta outras profissões, exclui outras possibilidades. Encontrar o vocábulo certo para o lugar exato significa optar por um em detrimento de outro. E, em função disso, não é possível ao ser humano ser completo. Ele não consegue reunir, em torno de si, pela linguagem, todas as possibilidades que se apresentam à sua frente. Escolhe algumas dessas possibilidades e passa a buscar as restantes, o seu possível complemento, nos outros. Esse processo de busca se dá pela vida toda e só é interrompido, segundo Bakhtin, pela morte.
Essa incompletude é acentuada pelas relações de poder que interferem na relação com outro. Para Bakhtin, o contato com o interlocutor é assimétrico. Um exerce poder sobre o outro, mas em proporções que estão de acordo com a legitimação dada à voz que enuncia. Um Presidente da República, por exemplo, tem a autoridade reconhecida pelo contexto social para falar da queda do dólar ou de programas de combate à fome. Essa legitimação vai diminuindo à medida que quem enuncia é um estudante recém-formado em economia ou um mendigo. As relações de poder são determinantes na construção dos sentidos. Legitimar a voz da sociedade da moda, que dita regras de comportamento e medidas ideais para o corpo, pode fazer com que uma mulher enxergue sua imagem de forma distorcida no espelho. É magra, mas enxerga-se gorda, como mencionado anteriormente. Legitimar os elogios recebidos quando se ocupa a posição de alferes pode também determinar a forma como um homem solitário contempla sua imagem, como no conto de Machado de Assis. Isso exemplifica como a imagem do espelho é uma construção social, vista a partir do conjunto de valores (ideologia) que se coloca sobre ela.
Frente aos valores ideológicos, Frei Betto demonstra, no decorrer do texto, acreditar na impossibilidade de controlar os sentidos daquilo que escreve, como em: “uma vez publicado, o texto já não me pertence. É como um filho que atingiu a maturidade e saiu de casa. Já não tenho domínio sobre ele. Ao contrário, são os leitores que passam a ter domínio sobre o autor”. Ou então: “A palavra lavra e semeia, mas seus frutos nunca são inteiramente palatáveis. Polissêmico, verbo é mistério”. E ainda: “Todo texto, entretanto, depende do contexto. Por isso, dois leitores têm diferentes apreciações do mesmo livro. Cada um lê a partir do seu contexto. A cabeça pensa onde os pés pisam”. Um livro relido, revisitado, rediscutido já não é, pois, o mesmo livro. As ressignificações modificam a obra.
O dialogismo das discussões sobre uma obra, das conversas cotidianas, de botequim, é que sustenta a produção de um texto, seja falado, escrito ou apresentado sob qualquer outra forma. A todo momento, no texto, a fala do outro aparece, seja delimitada por aspas ou não. Mesmo que não esteja escancarada, faz circular novos sentidos quando retomada. Em “Por que escrevo”, Frei Betto invoca as vozes do filósofo Descartes, do lingüista Roland Barthes (com o uso da expressão “Bartheanamente”), dos pais e de professores que ajudaram na constituição da consciência do escritor e foram trazidos para o texto. Betto, no entanto, introduz na escrita apenas as passagens que considera mais importantes da infância para explicar a escolha do ofício de escritor. Ao escrever, então, o autor não só reflete a realidade, mas também a refrata, ou seja, distorce, ressignifica, dá outros sentidos, provoca o interlocutor, promove o surgimento de outros diálogos. Segundo Faraco (2005, p. 39),
O autor-criador é, assim, quem da forma ao conteúdo: ele não apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um estenógrafo desses eventos), mas, a partir de uma certa posição axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente. (...) O autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida.
Uma das características da enunciação por meio do texto escrito é que deve haver, segundo Bakhtin, um distanciamento, seja do autor com seu personagem ou do autor com as lembranças do passado – no caso de um texto de caráter autobiográfico –, para que ele possa enxergar o desenrolar da escrita de uma posição externa, como se estivesse fora daquilo que está produzindo. É necessário ter um excedente de visão e conhecimento, uma capacidade de perceber, como se fosse capaz de arrancar os próprios olhos e voltá-los para si mesmo, os rumos que o “ofício têxtil”, expressão usada por Betto em “Por que escrevo”, está tomando.
A partir dessas colocações, passamos a analisar dois contos de Frei Betto que trazem a figura do espelho para analisar a questão da alteridade. Em “O hóspede”, a figura do espelho denuncia que o personagem que narra o conto está diretamente em contato com o outro – no caso, o demônio. O conto começa com o narrador dizendo que seu consolo é morar sozinho. Ele prefere evitar o contato com o mundo e com outras pessoas. Mas não consegue. Primeiro, sente-se incomodado pelas baratas. Depois, percebe que as baratas sumiram, mas o exterminador delas foi algo bem mais asqueroso, o demônio, que passou a morar na casa. É nesse momento que começa um jogo em que é possível perceber o papel de um na constituição do outro. O demônio passa a reproduzir características do narrador, como apresentar-se como um bom moço, com cortesia e discrição. “Esperei que ele aprontasse as piores diabruras. Que nada! Silente, restringia-se a imitar-me”, afirma o narrador-personagem. Ele chega a dizer que, num primeiro momento, o contato com o outro incomoda, mas, aos poucos, desperta um processo de identificação em ambos, seja por concordar com o que o outro diz ou mesmo por discordar. Discordando, é possível se identificar com o que é contrário. “Como todos sabem, a solidão é um estado de insegurança, refúgio de si em face dos olhos do outro. A princípio, a presença de alguém incomoda a nós misantropos, mas a persistência do forasteiro se nos acaba por desatar bons sentimentos”, afirma, em uma das passagens.
O conto também mostra como a construção dos sentidos depende dos outros, do conhecimento de mundo de cada um e do contexto em que uma enunciação está inserida. Uma das vizinhas, Zoraida, enxerga o demônio como uma bela dama, noiva do narrador-personagem. Outra vizinha, Cacilda, confunde o demônio com o jardineiro da casa. Procópio, vizinho de frente, vê naquela figura horrenda um jovem “de musculosa robustez”. O narrador, diante disso, quer saber se o demônio está se disfarçando para se apresentar à vizinhança. E recebe como resposta: “Sou o reflexo da alma das pessoas”, lembrando que o conhecimento de mundo do outro é fundamental nas relações através da linguagem.
O ápice do conto ocorre quando o hóspede diz que características tidas como demoníacas, como orgulho, vaidade, luxúria estão presentes entre os humanos e influenciam no bom funcionamento da sociedade. O narrador, que antes negava o contato com os outros, se dá conta, então, que está sendo constituído também pelo demônio, interiorizando e, posteriormente, exteriorizando características trazidas pela convivência. É através do espelho que o narrador percebe que seus pés parecem patas eqüestres e suas pernas assemelham-se a troncos cabeludos. Está com as feições do demônio. A sensação é de espanto, típica do primeiro contato com o outro. Apesar de estar vendo a própria imagem no espelho, o estranhamento ocorre porque, como já foi abordado neste trabalho, o que olha para a imagem são os olhos de um outro. Além disso, é a primeira vez que o corpo do narrador, refletido no espelho, está impregnado com feições do demônio, com as quais ele não está habituado. Essas características do outro se encontram com aquelas que o narrador já possuía e que foram resultado de outras relações. Como resultado, produzem um novo ser, que olha para o mundo de um jeito diferente, fazendo surgir novos sentidos. O espelho é usado como uma metáfora para explicar a constituição do eu (narrador) pelo outro (demônio, vizinhos) e vice-versa.
No último conto escolhido para a análise, “Egg”, o espelho também é um signo recorrente. E a relação com o outro também. O início do conto já revela que o tema a ser debatido será a alteridade.
Numa tarde de verão, ao respirar o hálito salgado do mar, Egg viu o Outro erguer-se da água, belo como um filho de Netuno. Os cabelos eram finas algas, a pele oleosa, o corpo dourado e, os olhos, duas pérolas.
Embevecido, Egg caminhou lentamente em direção ao Outro, revelando na incerteza dos passos o receio de se tratar de miragem. Nas gotas que cobriam o corpo do Outro, Egg viu brilhar a própria imagem. No reflexo dos olhos do Outro, contemplou a si mesmo.
No Outro, Egg via apenas a si mesmo. Era incapaz de perceber se o Outro estendia-lhe as mãos ou fechava-lhe os punhos. Ali, Egg se admirava como o mais belo dos seres”.
Admirado, narcisicamente1, pela própria beleza, Egg começou a se olhar em espelhos. Como conseguia ver somente a imagem do rosto, arranjou espelhos maiores, para se ver de corpo inteiro. Mas não foi suficiente. Egg queria olhar sua imagem em todas as direções: de costas, de cima para baixo, de baixo para cima. Até que recobriu um grande salão todo com espelhos. Do teto ao chão. E passou a se contemplar “de todas as maneiras e todos os ângulos”.
Extasiado com a própria imagem, Egg cortou completamente as relações com outras pessoas e elementos do mundo. Tinha olhos, apenas, para os espelhos e, através deles, passou a adorar exclusivamente a si próprio. Até que ocorreu um fenômeno inesperado. Os espelhos começaram a marchar e a se dobrar sobre Egg, de forma que a própria beleza do personagem o sufocasse. Abafado, Egg tentou gritar por alguém, mas não foi ouvido. Tinha rompido os laços com o mundo. “Egg recordou, por um segundo, do tempo em que era capaz de ver o outro no outro. Mas isso havia sido há muito tempo e, agora, nenhuma esperança restava”. Com a pele toda rasgada e a carne penetrada pelos estilhaços do espelho, Egg, que havia se convencido de ter se tornado imortal, percebeu que teria de carregar, “por toda a eternidade, o peso insuportável do próprio Eu”, agora não mais ostentando um corpo belo.
Mais uma vez, nesse conto, o espelho aparece como auxílio numa reflexão sobre a alteridade. No início do conto, Egg é, ainda, alguém que se constitui no outro, identifica-se com o outro. Sua beleza tem razão de existir porque é construída pelo outro. Em determinada passagem do texto, o narrador lembra que Egg, no passado, enxergava no outro o próprio outro. As mudanças em sua vida começam a ocorrer quando começa a enxergar no outro apenas a si próprio. A partir daí, a relação passa a ser, apenas, com os espelhos.
Exatamente aí, a questão da incompletude emerge mais uma vez. Mesmo com um salão forrado por espelhos, Egg percebe que não pode controlar-se no todo de sua exterioridade, que existem aspectos nele que só o outro controla. Mas, no momento em que tenta buscar o outro, vê que está só. A ausência do outro, no conto, acaba se configurando como a ausência do contato com o mundo através da linguagem.
4. Considerações Finais
Espera-se ter demonstrado, com este trabalho, um pouco da teoria do russo Mikhail Bakhtin com base em textos de Frei Betto trazem o signo do espelho como proposta de reflexão sobre a alteridade. E, principalmente, que é por meio das relações sociais que os sentidos da linguagem se estabelecem. Ninguém é tão auto-suficiente para fazer a enunciação brotar apenas da mente e determinar, sozinho, os efeitos de sua fala e escrita. Enunciar é como lançar iscas ao mar. Não sabemos que espécie de peixe irá mordê-la, se iremos conseguir tirá-lo da água. Antes disso, porém, precisamos torcer para que algum peixe a morda. Pode ser que ela volte intacta.
Recorrer a textos que falam de espelhos foi uma estratégia para tentar demonstrar que a forma com que nossa consciência se relaciona com nós mesmos e com os outros é baseada nas relações de que participamos ao longo da vida. A nossa própria imagem que vemos no espelho também é construção social, determinada pelo modo como valoramos o contato com o outro. Não é raro encontrar pessoas que ficam insatisfeitas ao olhar seu reflexo no espelho. Falam em fazer cirurgias plásticas ou dietas de emagrecimento. Ou ainda, aqueles, que mais que a expressão do rosto, conseguem enxergar seu interior e comentam: “Vejam lá no espelho o quanto sou feliz!”
A ausência do contato com o mundo é marcada pelo conto “Egg”, de Frei Betto, em que o personagem principal, ao voltar seus olhos e sua vida apenas para si próprio, faz com que os espelhos se dobrem e se quebrem sobre ele, rasgando sua pele e sua carne. Não há motivos para que os espelhos continuem inteiros, tendo em vista que Egg não evolui. Ele não se projeta no outro. Não mais se constitui no outro.
Por outro lado, o texto “Por que escrevo” apresenta o espelho como um reflexo da relação eu-outro, de como é possível, através do diálogo, produzir escritores, intelectuais que provocam questionamentos sobre o mundo. Num sistema que prega a competição, o individualismo, o poder de ser superior ao outro, como o capitalista, possamos ser um pouco mais bakhtinianos, conscientes de que somos o que somos também por causa do outro. E que é possível, através dos jogos de linguagem, perceber que a realidade é muito maior e muito mais complexa do que imaginamos. Extrapola os limites do eu. Por isso, para que mudanças significativas sejam promovidas no jeito de pensar e de agir da humanidade, é preciso estabelecer laços, completar-se no outro, unir-se ao outro, numa multidão de fios ideológicos. Que tal começarmos já?
5. Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. O espelho. Disponível em www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/espelho.html (último acesso em 16/07/2008).
__________. Treze contos diabólicos e um angélico. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.
1 Referência a Narciso, personagem da mitologia grega, que se apaixonou pela própria imagem refletida nas águas de uma fonte.
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