Paula Baracat De Grande1Considero minhas leituras da obra do Círculo de Bakhtin ainda iniciais, principalmente ao considerar a complexidade e amplitude de seus estudos. Apesar disso, aventuro-me, neste texto, a responder às provocações causadas por tais leituras ao longo de minha pesquisa de mestrado que tem como foco de investigação a construção de identidades profissionais de professores em formação continuada. Num processo de reflexão e refração das palavras baktinianas, trago algumas das apropriações e os revozeamentos que estão sendo tecidos por mim a partir da problemática da pesquisa. A obra bakhtiniana, dessa forma, se configura como um discurso internamente persuasivo, fortemente amarrado a minhas próprias palavras, sendo metade meu e metade do outro.
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O objetivo de minha pesquisa, em andamento, é investigar o processo de construção de identidades profissionais de professores em um curso de formação continuada. A origem dessa investigação vem de minha participação, como pesquisadora e monitora, em cursos de formação continuada, em que diferentes saberes dos professores, de fontes variadas, surgem, embatem-se, complementam-se, interpenetram-se, hibridizam-se. Nesse contexto, diferentes vozes relacionadas a conceitos, teorias e práticas concernentes à profissão docente emergem no discurso de professores e formadores engajados no processo de ensino/aprendizagem. O trabalho assume que o processo de formação profissional é identitário e pretende entender como vão se construindo as identificações dos professores com, práticas, conceitos, teorias. As construções identitárias no curso de formação continuada revelam as vozes que circulam na formação e na prática do professor, com as quais ele se identifica ou não. Conhecer essas vozes e entender esse processo de construção identitária é importante para repensar a atuação dos formadores de professores e refletir sobre como melhorar a interação entre esses diferentes agentes na formação continuada. =
A concepção de linguagem dialógica e social do Círculo de Bakhtin que embasa a pesquisa faz com que o meu olhar se volte para como, na interação entre formadores e professores durante o curso de formação continuada, seus enunciados tocam os milhares de fios dialógicos existentes, milhares de outros discursos sobre o objeto, sendo sempre um participante ativo do diálogo social.
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O conceito de dialogismo implica que a palavra, em si, é o lugar privilegiado na construção da realidade e de sua representação. A palavra, para o Círculo de Bakhtin, é considerada signo social que acompanha e comenta todo ato ideológico, é “fenômeno ideológico por excelência” (VOLOSHINOV, 1995, p. 36). É o material orientador privilegiado na medida em que é o indicador mais sensível de toda transformação social; “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (p. 41). Tal perspectiva direciona a interpretações dos enunciados que emergem no contexto de geração de dados de minha pesquisa – no caso, um curso de formação continuada - como atravessados, perpassados e constituídos pela palavra do outro – sendo que esse outro, em diferentes situações do curso, pode ser o discurso: de outra perspectiva teórica, de outro curso de formação continuada, do Estado e suas exigências ao professor, da mídia e sua representação (depreciativa) da docência, do próprio formador do curso. Encarada como parte do processo de interação entre interlocutores (STELLA, 2005), a palavra acumula entoações do diálogo vivo dos interlocutores com valores sociais. Dessa forma, na concepção de Voloshinov, a palavra é uma ponte, um território comum entre os participantes, e cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto de interação viva das forças sociais (BAKHTIN/Voloshinov, 1995, p.66).
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A palavra é tomada como campo de batalha pelo sentido. É nela que se dá o embate por possíveis sentidos dos discursos relacionados à formação e à prática docentes. É esse embate que se revelam as vozes sociais que circulam na formação profissional de professores e, nessa disputa entre sentidos, os sujeitos constroem identidades. A palavra, enquanto signo ideológico, é o lugar onde se confrontam índices de valor contraditórios, o que Voloshinov (p.46) chama de plurivalência social do signo, sendo que esta sua característica torna o signo vivo e móvel. Essa caracterização da palavra, como “saturada e multissêmica”, que não se esgota em significados estáticos e dicionarizados (VÓVIO, 2007, p. 87), ajuda a compreender os enunciados de professores e formadores como sempre dialogicizados, internamente entrecruzados por apreciações e índices de valor contraditórios, por discursos que circulam nas esferas de formação e de prática do professor.
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Dessa maneira, a concepção de linguagem do Círculo se faz relevante para o problema que investigo já que se pode distinguir, nos enunciados dos professores em formação continuada, os diálogos internos, os índices de valor em embate. Na interação entre formadores e professores no curso de formação continuada observado, analiso como as palavras revelam-se, no momento da expressão, como fruto da interação viva entre forças sociais, entre diferentes orientações sociais. Na medida em que nos definimos em relação ao outro e a coletividade pela palavra, é nela que se revelam as construções identitárias em curso.
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Essa dialogicidade da língua referente aos enunciados de outrem pode ser compreendida a partir do conceito de vozes sociais, discutido no estudo o romance de Bakhtin (1988). A estratificação interna de cada língua em um dado momento histórico, o que autor denomina “plurilinguismo social”, é o lugar em que os diferentes discursos admitem uma variedade de lugares de enunciação, ou de vozes sociais. A partir dessa configuração dada ao romance, Bakhtin caracteriza a língua como estratificada internamente, apresentando uma diversidade social de linguagens e de vozes sociais. Segundo o autor (1988, p. 96) “a vida social viva e a evolução histórica criam, nos limites de uma língua nacional abstratamente única, uma pluralidade de mundos concretos, de perspectivas literárias, ideológicas e sociais”. Essas várias linguagens do plurilinguismo, apesar de suas contradições sócio-ideológicas, não se excluem umas as outras, mas se interceptam de várias maneiras; são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal (p. 98). A multiplicidade de vozes, estudada no romance por Bakhtin, encontra-se no universo social objetivo.
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Definidas dessa maneira, as vozes podem ser surpreendidas na enunciação ao identificar os discursos que circulam e as significações apropriadas sobre um determinado objeto. As vozes estariam, então, “indiciadas nos objetos referenciados nos enunciados, emergentes da/na situação, como respostas ativas pertencentes a um mundo dialogizado, povoado por múltiplas vozes sociais” (VÓVIO, 2007, p. 88).
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A partir disso, cada enunciado pode ser interpretado como uma complexa combinação de vozes sociais, das quais nos apropriamos, com as quais nos alinhamos ou não, às quais resistimos ou não: “nós encontramos as ideias dos outros, as consideramos, rejeitamos algumas e aceitamos outras baseados em nossas próprias experiências e sensibilidades” (KNOELLER, 1998, p. 21). A teoria da polifonia e das vozes é considerada, então, para discutir a construção identitária. A identidade, tomada como múltipla, inacabada, fluída (Hall, 1998, 2006), é entendida como situada num contexto cultural, construída a partir das vozes disponíveis socialmente.
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Nos processos de construção identitárias, que se dão discursivamente e na interação, o outro é constitutivo desse processo. Ao se definir quem se é, delimita-se o que não se é; o processo de identificação inclui a diferenciação e, assim, a relação com o outro. Os sujeitos envolvidos – no caso, formadores e professores alfabetizadores – projetam significações e imagens de si que se configuram por meio do diálogo com os outros e da compreensão ativa destes. A identificação e a diferenciação, o outro de que necessito para me definir, podem ser compreendidas a partir da perspectiva dialógica bakhtiniana: “(...) o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria (...)” (Bakhtin, [1979] 2003, p.33). A concepção dialógica de linguagem – e, em decorrência disso, da presença inerente do outro em qualquer discurso – contribui, dessa forma, para a reflexão sobre a construção de identidades profissionais de professores ao permitir perceber como, a partir de vozes disponíveis socialmente, os sujeitos constroem identificações e diferenciações discursivamente.
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Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. O discurso no romance In: ___. Questões de literatura e de estética. Tradução Aurora F. Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
______. Estética da Criação verbal. Tradução Paulo Bezerra 4a. ed. Martins Fontes, 2003.
Hall, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Silva, T.T. e Louro, G. L. 2ªed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
______. A questão multicultural. In: HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2006
KNOELLER, C. Voincing ourselves: whose words we use when talk about books. State University of New York Press, 1998.
VOLOSHINOV/BAKHTIN, Marxismo e filosofia da linguagem. Ed. 7. Hucitec: São Paulo, 1995.
VÓVIO, C. L. Entre discursos: sentidos, práticas e identidades leitoras de alfabetizadores de jovens e adultos. Tese (Doutorado), Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.
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