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A atualidade de Bakhtin em “Tipologia histórica do romance”

Weslei Cândido


O desafio neste curto texto é refletir sobre as ideias de Bakhtin acerca dos tipos de “romance de viagens”, “romance de provação” e “romance biográfico”, fazendo uma aplicabilidade ao dia-a-dia do homem contemporâneo inserido na sociedade pós-moderna, na qual várias textualidades se cruzam, imbricam-se, num intenso diálogo entre formas tradicionais de vivenciar a literatura e ao mesmo tempo nos desfazimentos de um romance pós-moderno, reflexo das perdas de todas as bases tradicionais de uma sociedade antes baseada em estruturas que se acreditavam intocáveis.


A sociedade pós-moderna, mais propriamente as editoras neste contexto agregaram ao seu rol de autores, pessoas que escrevem sobre os mais diversificados assuntos, nem todos eles de qualidade estética, mas que estarão em maior destaque nas estantes de livrarias em todo o país.


Nunca se vendeu tantos livros sobre viagens, lugares exóticos, biografias, autobiografias, histórias de santos, livros espíritas e de auto-ajuda como no contexto atual. De certa forma, estes gêneros têm sua raiz nas definições que Bakhtin deu sobre os tipos de romance. Pode parecer forçada a ideia ou apresentar-se como uma banalização das ideias do grande teórico russo, no entanto, a proposta não é baratear suas teses e sim mostrar a atualidade de seus conceitos numa sociedade em que a leitura de qualidade ficou em segundo plano em favor de um discurso da democratização da cultura para todos.


Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin vê o romance de viagens como aquele que coloca em segundo plano a personagem, atendo-se mais nos lugares, nos ambientes, nos espaços estrangeiros por que passam as personagens, sem haver uma mudança na forma de pensar ou agir destas ao longo do romance.


Seria como se a personagem fosse apenas um pretexto para que o leitor conhecesse vários lugares. Exemplo típico destas andanças é o romance picaresco, no qual o herói, se é que assim se pode chamá-lo, transita por diversos lugares nunca tendo um paradeiro certo, mas ao final ficando rico ou obtendo alguma graça. Lazarillo de Tormes é um exemplo clássico destas comendas e sua atualidade nunca foi tão grande como no século XXI. No final de suas aventuras Lázaro consegue atingir seu objetivo: parecer ser homem de bem. Na sociedade capitalista a aparência é tudo. Formas de se vestir, roupas caras, sapatos, bolsas da moda vestem pessoas elegantes que se escondem por trás destes objetos de consumo, valorizando mais a aparência do que a essência do ser.


Além é claro de lotarem as estantes das livrarias títulos sobre viagens a lugares exóticos, países estrangeiros, lugares paradisíacos apresentados por personagens conhecidos da mídia e que se deslocam da televisão para as páginas de livros que focam no exótico, no místico dos lugares para atrair a atenção do leitor. Como o personagem dos romances de viagens estas personalidades construídas pelos meios de comunicação de massa são apenas um chamariz para que o leitor viaje pelas páginas, sem se atentar muito para as possíveis mudanças de caráter que possam ocorrer nestes pseudo personagens das textualidades modernas.


Outro gênero em alta são os romances de provação ainda no século XXI. A conceituação de Bakhtin novamente não perdeu sua atualidade, mas pode ser revista nos textos que circulam pelas telas de cinema e Best Sellers que circulam pelos veículos de comunicação, num intenso diálogo com leitores que preferem uma literatura mais fácil de ser entendida, mais amena em seus temas.


Numa sociedade carente de bases familiares ou que ao menos vê as antigas bases abaladas por uma nova constituição social, na qual a configuração de família não é mais aquela em que um homem e uma mulher faziam o papel de pai e mãe, mas que agora se confronta com casais homo afetivos exercendo dentro do acordo entre as partes o papel de pai e mãe, não sendo mais um questão apenas de gênero, porém de opção, os romances de provação voltam a estar em alta.


Heróis de romances lutam contra as tentações do mundo pós-moderno. Elas vêem-se confrontadas pelas propostas de relações extra-conjugais, ligações homossexuais que possam afetar seu caráter, enfrentam conflitos que colocam em teste suas personalidades, sendo a resistência delas uma forma de heroísmo santo diante das tentações da sociedade pós-moderna.


O romance de provação sempre começa onde começa o desvio em relação ao curso social normal e biográfico da vida, e termina onde a vida volta ao curso normal. Por isso, os acontecimentos do romance de provação, sejam eles quais forem, não criam um novo tipo de vida, uma nova biografia humana, determinada pelas condições mutáveis da vida. Fora do âmbito do romance, a biografia e a vida social continuam habituais e inalteradas.(BAKHTIN, 2003, p. 210-11).


Ora, levando-se em consideração que o romance de massas como Sabrina, Bianca, livros de Paulo Coelho e os de auto-ajuda propriamente dita reforçam uma visão de mundo tradicional, apresentando receitas de como enfrentar as tentações do mundo pós-moderno, os heróis destas histórias só terão as provações como um pequeno desvio de suas vidas normais, mas que ao final, seguindo as táticas ensinadas, a biografia e a vida social continuam inalteradas como fala Bakhtin, na prática são romances de pouca qualidade que não analisam realmente a sociedade em que estão inseridos, mas funcionam como espécies de literaturas de resistência ao mundo pós-moderno.


Outro gênero que está em alta e que Bakhtin se dedicou também foi o romance biográfico. Nunca as biografias, biografias romanceadas e autobiografias estiveram tão em alta. É um dos gêneros textuais que mais vendem. Como afirma Sérgio Buarque de Holanda em Cobra de Vidro: as vidas dos escritores românticos despertam mais o interesse do que suas obras propriamente ditas. Passado décadas, a realidade não mudou na verdade se intensificou.


As biografias seguem o ritmo tradicional e antigo de que comentou Bakhtin:


O enredo da forma biográfica, à diferença do romance de provação, não é constituído com base nos desvios em relação ao curso normal e típico da vida, mas precisamente nos elementos basilares e típicos de toda trajetória vital: nascimento, infância, anos de aprendizagem, casamento, construção do destino, trabalho e afazeres, morte, etc., isto é, precisamente com base naqueles elementos existentes antes do início ou depois do término do romance de provação. (2003, p.213)


A respeito deste comentário de Bakhtin é importante trazer à memória, neste ponto, uma fala do biógrafo Fernando Morais durante a última Feira do Livro em Ribeirão Preto (2009). Ao comentar seu processo de escrita e investigação da vida de seus biografados disse que vida de santo não tem graça, que uma hagiografia não teria motivo, pois uma pessoa como Olga por exemplo poderia ter uma vida desprovida de grandes polêmicas que tiraria do leitor o interesse por sua vida, o que para tranqüilidade dele a personagem se revelou uma grande heroína, defendendo ideias que poderiam mudar o mundo para melhor. Assim, como na visão de Bakhtin, a do biógrafo brasileiro, a biografia deve o ritmo normal do desenvolvimento da vida, porém deve ser provida de fatos que possam despertar no leitor a curiosidade, a fim de continuar a leitura.


A biografia deve, deste modo, revestir-se de um caráter revelador da vida do biografado, angariando o olhar do leitor sobre a vida do personagem em foco. No entanto, mesmo assim, a visão de Bakhtin é totalmente válida neste gênero hoje, pois realmente o foco não é o desvio da norma, da conduta, a tentação, no caso do romance de provação, mas como nos aspectos naturais da vida do biografado os fatos foram surgindo, mostrando que a sociedade se modernizou, mas a forma de escrita de determinados gêneros, seguem as diretrizes apontadas por Bakhtin. De forma que: “Os acontecimentos não formam o homem mas seu destino (ainda que criador).(2003, p.215).


Enfim, podemos dizer que os gêneros não mudaram, mas travestiram-se, ganharam uma roupa contemporânea, que permite voltar os olhos para os romances do passado e encontrar um diálogo de releituras, nos quais o novo permite perscrutar textualidades ocultas na forma de narrar diversos aspectos da vida sob óticas ainda tradicionais, que se renovam nas escritas de autores contemporâneos, numa intertextualidade que não pára de se preencher cada vez mais de diversas vozes, exigindo tanto de leitores mais simples como dos mais especializados e, principalmente, destes últimos um olhar atento aos “novos” gêneros que povoam as estantes de inúmeras livrarias de todo o Brasil.


Referências Bibliográficas



BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4ª. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Original russo.

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