Marinalva Vieira Barbosa
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Introdução
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O tema relacionado a acolhida dispensada aos tons e respostas afetivas nas interações em sala de aula é uma relevante porta de entrada para refletirmos, a partir das concepções bakhtinianas, sobre as pequenas intolerâncias que se propagam, muitas vezes de maneira habitual, no mundo contemporâneo e, especificamente, nos espaços escolares. Ainda é difícil conceitualizar o papel dos afetos na vida cotidiana e, sobretudo, nos espaços onde até muito recente era considerado um estorvo, como é o caso da escola. Assunto importante para aqueles que se preocupam com a formação de professores, pois sabemos que o exercício dessa atividade ainda é o resultado da partilha de rotinas com professores que buscam orientar suas paixões para concepções que validam, com esmero analítico, os distanciamentos entre sujeitos e objeto de conhecimento
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Os afetos, sabemos, foram postos à margem não só pela filosofia ocidental, mas também pelo pensamento científico moderno, lócus de inclusão das ciências da linguagem. Ao se dar primazia à razão, não só se negou a importância da face afetiva do humano na construção do conhecimento, mas, principalmente, concebeu-se um sujeito que não precisa dos afetos para transitar no campo de conhecimentos formais. A partir daí a Lingüística, por exemplo, concebeu a língua como um sistema; a moderna retórica pôde pensar em argumentos como técnicas produzidas racionalmente para convencer um auditório universal. Nasce também a defesa de que o sujeito de conhecimento, liberto das obscuridades das paixões, deve apresentar uma linguagem limpa, livre das marcas de qualquer índice de subjetividade e sustentada em enunciados descritivos do tipo “X é Y”.
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Consequentemente, se nos colocarmos na esfera cotidiana da linguagem, facilmente constatamos que existe em nossas experiências uma ideologia guerreira que, aliada com importantes valores da cultura ocidental, se opõe com persistência e convicção à enunciação de um discurso que denote qualquer indício de afetos. Duarte Jr. (2003), olhando para os resultados desse processo na contemporaneidade, assinala que o avanço científico, razão principal da dura defesa da prevalência do sujeito da razão, foi seguido de profundas transformações que acarretaram o embrutecimento dos modos sensíveis do ser humano se relacionar com a vida cotidiana. Como insumo central para a construção destas couraças com que somos instruídos a nos defender dos afetos, a cultura educativa, vigente na escola contemporânea, impõe ao nosso corpo uma relação funcional, produtiva e distante, onde os laços de afetos com os objetos de estudos são tratados como questões menores e, em muitos casos, inconvenientes.
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O médico aprende que não deve sentir como sua a dor de seus pacientes para que possa tratá-los de maneira genérica dentro da rotina hospitalar. Ensina-se ao professor a manipular os alunos, a fim de obter aprendizagem, sem deixar-se arrastar pelas singularidades de suas vivências. O político aprende a manejar as massas, constituições e decretos, que incidem sobre o bem comum, sem deixar-se arrastar pelos casos individuais, pois se acha que desta maneira perderia sua eficácia. Todos esses casos são exemplos do que Ivan Illich chamou de incompetência especializada, reconhecida e diplomada pelas universidades. Para ser bem sucedido em nossa cultura, é imperioso tornar-se insensível a muitas vivências singulares, a fim de assumir a máscara estereotipada que não delate nossas emoções nem nossas dúvidas, isto é, que não denuncie a radical diferença daqueles fenômenos com as quais entramos em contato (RESTREPO 2001, p. 27).
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A escola, principal lócus de aprendizagem e exercício desse modo distante de ser, sente profunda aversão pelos temas sensíveis e singulares. Ainda segundo Restrepo, podemos constatar essa aversão na maneira como é tratado o problema da aprendizagem. Sempre que uma singularidade sensível entra em choque com os propósitos da escola, a forma que esse desencontro ganha é o do fracasso escolar. O fracassado é sempre o aluno que não foi capaz de compreender as diretrizes que lhe foram postas. Ou seja, centram-se as causas do desencontro com os propósitos da escola no aluno e na sua família. A instituição permanece distante, praticamente isenta das responsabilidades. A desconsideração da face sensível do humano resulta na incapacidade da escola compreender a existência de modos diferentes de construção de conhecimentos, de perceber os tons afetivos que dinamizam ou bloqueiam os processos de aprendizagem.
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Cotidianamente, quando olhamos para uma sala de aula, não é difícil perceber que seu funcionamento é centrado no exercício de ver e ouvir que dá suporte ao trabalho da leitura e da escrita. Nesse contexto, alunos e professores, de modos diferentes, apresentam resistências para reconhecer qualquer tipo de conhecimento contextual, prático, nascido das vivências mais amplas. Principalmente, há uma grande resistência em reconhecer qualquer tipo de conhecimento que atesta a existência de um sujeito encarnado. “Olhar e não tocar”, “falar sem se emocionar”, essas são regras bastantes presentes durante a vida educacional. Somente a criança das fases iniciais de escolarização pode cometer esse delito. Fora dessa etapa, o desejável é que o aluno leve para a sala de aula os pares de olhos, ouvidos e mãos. Parece que na escola o corpo, com todas as suas contingências, não é bem vindo. As especificidades das histórias e dos desejos de conhecer (ou não) são completamente ignorados.
Das primeiras etapas de escolarização à universidade, o desejável é que professores e alunos se portem como sujeitos de saber e não de sentir. A emergência do afetivo gera estranhamento quando não está correlacionada, adequada às exigências de cada posição. O aluno que apresenta singularidades na relação de aprendizagem é, conforme veremos nas sequências discursivas analisadas a seguir, submetido a um trabalho de conformação inclusive por parte dos próprios alunos. Muito cedo se aprende que, na escola, não há lugar para um sujeito que olha os objetos de conhecimentos com base em tons e olhos sensíveis. Antes é necessário chamar Bakhtin para essa conversa!
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Os atos no mundo da vida e no mundo das abstrações teóricas
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No texto Por uma filosofia do ato (1916), Bakhtin discute os efeitos nefastos da dissociação promovida pelo pensamento filosófico ocidental entre mundo da cultura (definido também como o do juízo teórico, que é onde os atos concretos são objetivados com o intuito de se produzir conhecimento sobre o humano) e mundo da vida (definido como o da historicidade viva porque é onde os atos dos seres históricos efetivamente se realizam). O mundo representado, objetivado, é fechado porque estabelece corte entre o conteúdo ou sentido de uma atividade e a realidade concreta do sujeito que a realiza. Em contrapartida, o mundo vivido traz a eventicidade do ser em movimento, por isso jamais é acabado. O seu inacabamento é o legado incômodo às abstrações teóricas (maior exemplo é a clássica separação entre sujeito e objeto tão valorizada no universo das produções científicas).
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No caso do humano, essa separação faz com que dois mundos estejam sempre em confronto (o da cultura e o da vida) devido à dificuldade de promover encontros estáveis entre sujeito teóricos e sujeitos concretos. Esses dois mundos não se comunicam porque a eventicidade da vida é inapreensível pela razão teórica. A dicotomia assinalada por Bakhtin fica bem exemplificada nos estudos voltados para a questão da inscrição das afetividades na linguagem, uma vez que se procura pôr no interior dos sistemas sintáticos e semânticos pré-definidos os acontecimentos de linguagem que sinalizam a existência de sentido de cunho afetivo. Como este envolve um conjunto amplo de ações e um sujeito que não é mera abstração, tem-se impasses como o que gira em torno da busca de definição sobre o que seria uma lingüística ou uma gramática das emoções. A norma ou a lei geral é incapaz de apreender as tensões que envolvem, por exemplo, a relação diferencial entre significação e sentido numa enunciação de cunho emotivo; ou então há dificuldades para explicar as tensões entre eu-outro geradoras da linguagem em ato.
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E não há possibilidades de superar essa dicotomia se tomarmos como base a cognição teórica. Aliás, Bakhtin assume posição radical com relação ao problema quando afirma que “todas as tentativas de superar – de dentro da cognição teórica – o dualismo da cognição e da vida, o dualismo do pensamento e da realidade única e concreta, são totalmente sem esperança” porque o sujeito em sua concreticidade é maior e mais pesado que o sujeito da teoria (1916, p. 25). A dissociação entre o mundo teórico e o mundo da vida, entre o racional e o sensível, provoca danos à compreensão das ações e dos próprios sujeitos humanos, pois no interior da teoria, para Bakhtin, “nós nos descobrimos determinados, predeterminados, passados, terminados, isto é, essencialmente não vivos. Nós teríamos nos retirado da vida – como vida responsável, plena de riscos e transformando-se através de ações realizadas – para um indiferente e, fundamentalmente, completado e terminado Ser teórico” [... (idem, p. 26-27). No mundo teórico, não cabem orientações práticas da vida, o eu vivente é desnecessário porque é sempre alcançado por meio de uma abstração essencial. E como tal, nada lhe pode ser acrescentado ou abstraído em termos de vivido. Tudo o que pode ser construído em torno das abstrações teóricas precisa ter um caráter absoluto, eterno, estável.
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Diante disso, Bakhtin defende um projeto teórico-filosófico que abarque a vida e, conseqüentemente, não se configure como lei geral, e sim como um momento constituinte do que é o sujeito no interior das relações concretamente vividas. Para construir essa arquitetônica englobando os atos realizados, toma o ato estético como um meio para pensar o agir ético desse sujeito que não é mera abstração nem um emaranhado puramente subjetivo. A defesa do autor é para que se passe a considerar os atos como evento único, singular, capaz de refletir seu sentido e seu significado no interior das múltiplas interações de que participa o sujeito que o pratica. Assim, o ato é concebido como lugar em que pode ocorrer o encontro entre o mundo da vida e o mundo da cultura porque comporta as ações físicas, mentais, emotivas, estéticas e objetivas. E tais ações não podem ser consideradas somente no seu aspecto psíquico ou objetivo, mas também na inteireza que se constitui entre o vivido e o abstraído do vivido.
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A necessidade de integração dos dois mundos, o reconhecimento do ato realizado como lugar de concentração e resolução da oposição entre o abstrato e o concreto, entre o repetível e o irrepetível, entre sensível e inteligível, encarnado e desencarnado leva Bakhtin a defender que somente a categoria de responsabilidade/respondibilidade pode unir o que foi considerado como faces opositivas. Nas suas palavras: “é apenas de dentro do ato realmente executado, que é único, integral e unitário em sua responsabilidade, que nós podemos encontrar uma abordagem ao Ser único e unitário em sua realidade concreta” (1916, p. 45). A respondibilidade, ou o ato responsivo, engloba o conteúdo, seu processo e, unificando-os, entra também como parte significativa a valoração/avaliação do sujeito no que diz respeito ao seu próprio ato. E não se trata de algo que envolve intencionalidade auto-centrada, mas que se constrói com base na participação nesse ser único que constitui a existência de todos nós: o outro que não é aquele que está em nossa frente e com a qual partilhamos de imediato o ato praticado, mas o outro, o Ser Humano que fazemos e a que, junto com o outro que está em nossa frente, pertencemos.
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Nessa concepção, os acentos avaliativos, a entonação, conseqüência da ocupação de um lugar único no mundo, são condições fundantes do agir humano. Obviamente, isso obriga a reconstituição do objeto, pois se torna necessário apostar em construções teóricas que considerem as instabilidades, as enunciações, a linguagem e não somente a língua, no sentido saussureano do termo. Como não se apreende o transitório, o instável no estável, não se pode falar de uma linguagem afetiva ou de um sujeito encarnado no interior de uma visão teórica fechada. Lévinas (1991), que dialoga com Bakhtin pelo modo como concebe a constituição do humano, defende que o sujeito e seus atos somente podem ser pensados no interior de um quadro que, mesmo sendo formal, não exclui sua pertença ao gênero humano. Como tal, o sujeito é parte de um todo que, dividido em singularidades, culmina na identidade de um sujeito situado entre dados empíricos e reconhecidos por signos, sendo o principal deles a linguagem.
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E deve ficar claro que a crítica bakhtiniana à razão teórica não significa sua negação. Ao contrário, Bakhtin não nega sua validade, somente não aceita seu desligamento do mundo da vida, apresentando-se, no entanto, como explicação do todo. Seria um erro, por exemplo, tomar suas concepções como base para transformar o ato realizado por cada sujeito em algo inefável, isto é, que só pode ser vivamente experimentado de algum modo no momento de sua realização. Segundo Geraldi (2004), na reflexão bakhtiniana, o deslocamento das atenções teóricas para o ato, para a consideração das singularidades não significa defender que cada ato tem explicação em si mesmo. Ao contrário, é na inter-relação com outros atos que ganham sentidos. Cada ato inefável é singular e enunciável e, nas enunciações, pode-se encontrar pistas que permitem construir explicações. Os afetos compõem os atos humanos.
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Pela perspectiva bakhtiniana, razão e afetos não ocupam lugares eqüidistantes, pois todo ato humano se constitui englobando forma e conteúdo, significação e tema, saber teórico e saber prático, repetibilidade e irrepetibilidade. Não há dissociação conforme demonstrado por meio do corpus mobilizado ao longo deste trabalho. De acordo com Sobral, o “[...] sensível (o mundo dado, dan em russo) e o inteligível (a apreensão do mundo, o postulado, zadan em russo) estão necessariamente integrados na arquitetônica que Bakhtin criou para compreender os atos humanos: a apreensão do mundo envolve de um lado a unidade do ato (ou seja, a junção entre o processo de realização concreto do ato) em seu aqui e agora no mundo dado, e, de outro, a organização do conteúdo do ato” (2005, p. 25). No mundo da vida, o homo sapiens e homo demens compõem um mesmo corpo, uma mesma linguagem. A existência inseparável dos dois é o que gera a coerência dos atos. Essa coerência é sempre provisória e estável porque construída pela mobilização de saberes vindos do mundo da cultura e do mundo da vida.
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Assim, a consideração de que não há separação entre racionalidade e afetividade na realização dos atos humanos, obriga-nos a sair do universo laminar, linear, reversível e estável para um universo turbulento, caótico. E não se trata de um tipo de solução que põe o universo das sensibilidades sob a submissão das racionalidades. Esses dois elementos não apresentam sentidos, coerências em si mesmos ou isoladamente. A consideração do mundo da vida, tal como defendida por Bakhtin, ou a consideração das afetividades, tal como defendida neste trabalho, nos jogam no mundo das instabilidades e incertezas. E conviver com a incerteza não pode ser visto como um instante de pausa na busca incessante de evitá-la ou domesticá-la em esquemas pré-existentes, mas trata-se de assumir que os atos humanos são irreversíveis e, como tais, comportam no seu interior instabilidades e estabilidades (PRIGOGINE, 1996). Esse deslocamento tem conseqüências complexas, pois, no que concerne aos estudos da linguagem, segundo Geraldi (2004), investir nas enunciações cria, inevitavelmente, intranqüilidades para os enunciados. Eles podem ser sempre outro em termos de organização estrutural e semântica.
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Também cria conseqüências para aquele que se põe como sujeito produtor de conhecimento, pois jamais poderemos ter um saber total. Assumir que os atos são irreversíveis implica nos condenar à condição de produtores de pensamentos incertos, sem nenhum fundamento absoluto de certeza. A consideração da complexidade e da errância dos atos, indiscutivelmente, nos obriga a adotar outra forma de dizer sobre a condição humana. Em suma, quando saímos da proteção das concepções lógicas e racionais, os atos humanos ganham incompletude e, por isso, não faz sentido falar em oposição entre razão e afetos.
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Em todas as dimensões e extensões, inclusive a educacional, a consideração de que os afetos são elementos incontornável na compreensão dos atos humanos traz a obrigação de se pensar uma ética baseado no outro. O tema de ser-para-o-outro, segundo LÉVINAS (2005), desempenha papel capital porque permite romper com a obsessão da totalidade, o que nos obriga a pensar formas de proteção contra as manipulações do sujeito devido às posições de poder. Uma ética não indiferente porque baseada no real das existências dos atos concretos, baseada na existência humana. A subjetividade, se baseada nas concepções de Bakhtin, não é originária de uma consciência individuada que toma para si a responsabilidade de explicar e carregar o fardo de seu mundo.
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O aluno não se constitui como tal sem a mediação do professor e dos demais alunos que habitam a sala de aula. Todos nas relações com todos garantem a formação dessa subjetividade que sente (e age) com relação ao universo do saber. Ou seja, qualquer que seja a qualidade da mediação, a sensibilidade do aluno, assim como o processo de inserção da criança no mundo pela mãe e mais tarde pelos demais interlocutores, já é o resultado da sensação, do ruído, do odor, das definições, das nominalizações que vêm da boca do outro. Um sujeito sensível e singularizado; e essa constituição não é está dada como escolha intencional, mas está concernida porque o eu, inclusive na sua condição mais íntima, não antecede à linguagem e nem está fora dela. É porque as palavras tocam que surgem os movimentos discursivos que podem ser caracterizados como uma respondibilidade sensível.
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Em suma, pela perspectiva bakhtiniana, o aluno é um sujeito encarnado e situado, é uma unidade heterogênea, organização emergente da interação entre as quais se destacam a razão, a emoção e a ação, que são formas de interação com o mundo. Por essa via, a experiência vinda do mundo do vivido é o que funda e sustenta a construção da sensibilidade, do modo de agir, de responder as demandas postas pelo mundo dos atos abstratos – o mundo da escola. Como sujeito encarnado, nas tramas de suas vivências, desenvolve ações em que razão e afetos são elementos inseparáveis das experiências sociais e individuais conforme veremos nas sequências discursivas analisadas a seguir.
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Respostas a uma entonação sensível nas interações em sala de aula
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Na seqüência discursiva seguinte, produzida numa turma de primeiro ano do Ensino Médio, da perspectiva lingüística não há sinais que permitam inseri-la no campo semântico dos afetos. E não poderíamos também desenvolver uma análise a partir da idéia de que a aluna traçou uma tática de discurso para convencer os seus interlocutores, pois, devido às exigências próprias da escola, o que está em jogo é a comprovação que realizou a atividade a contento. Portanto, uma apresentação límpida seria considerada satisfatória. Assim, o que seus interlocutores lêem como um discurso marcado por afetos ganha materialidade pelo modo como se inscreve no próprio dizer. Essa inscrição é algo que escapa ao previsível em termos de organização de respostas aos imperativos da escola. É o estranho porque o lugar de sujeito de afetividades não é comumente ocupado pelo aluno. Conseqüentemente, os sentidos de cunho afetivo não atribuem credibilidade à locutora. Vejamos:
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[...]
01 A1 professora/ o nosso texto fala da nossa falta
02 de consciência pra cuidar das fontes de água
03 (.) fala que as pessoas não cuidam (.) jogam
04 lixo nos rios (.) eu acho que jogamos as
05 coisas na rua porque nós não pensamos não
06 preocupamos com as pessoas que não têm água/
07 os políticos ficam complicando as coisas por
08 falta de um papelzinho/ isso tudo para mim é 09 irresponsável (.)é falta de responsabilidade/
10 acho isso cruel/ ((o tom de voz enfático foi recebido por
11 palmas e assovios))
12 AA i::h ela ficou nervosa:::/ ((expressão acompanhada
13 de riso))
14 A2 D você está nervosi:::nha hoje por que//
15 A3 D/ não precisa ficar brava assim/
16 P gen::te/ espera aí/ a D tem razão em ficar
17 brava/ essa é uma questão muito séria
[...]
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Corpo e voz são constitutivos da linguagem na perspectiva bakhtiniana. A entonação não se constitui somente pela força vocal da voz, mas também pela memória semântico-social depositada na palavra (DAHLET, 2001). Essa memória dá corpo e insere o corpo no discurso e é vista como o lugar do encontro ou do desencontro de interlocutores porque a base das interações é inicialmente da ordem da entonação. Os sujeitos estão sempre inseridos em um universo onde são instados a exprimir e provocar avaliações que, por sua vez, definem a entonação do discurso. Na seqüência acima, ao abordar um tema de forte valor social, a aluna expressa sua entonação/avaliação sobre a questão baseada em uma memória semântica mais ampla acerca da depredação das fontes de água. Por se tratar de uma questão presente nos meios de comunicação, sempre tratado pela perspectiva da denúncia e indignação, a aluna apresenta o resultado de sua leitura ancorando sua voz nas vozes que, situadas em um contexto maior e de diferentes modos, também se mostram indignadas. Pode-se dizer que ancora o seu discurso em “tom coletivo” de indignação, o que denuncia um aprendizado sobre o ato de sentir os problemas sociais que não são comuns no interior da escola.
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Ao trazer o excedente para a sala de aula, abre espaço para que os interlocutores construam interpretações avaliativas sobre o modo como enuncia, daí a definição: i::h ela ficou nervosa:::/. Isto é, ficou irritada, exaltada. O falar forte evoca uma potência que não condiz com a posição de aluno, muito menos com a de aluna e, por isso, suscita a definição um tanto pejorativa da parte de um dos interlocutores: D você está nervosi:::nha hoje por que//. Além de atribuir uma imagem negativa com o uso do termo nervosa no diminutivo (mulheres são vistas como seres emocionais e instáveis em nossa sociedade), a pergunta pressupõe que a atribuída irritação tem outra origem que não a relacionada ao problema tratado no texto. Trabalha-se aqui com o conhecido estereótipo de que uma pessoa emocionada é uma pessoa que mistura os motivos de suas ações e promove avaliações equivocadas. Na escola, não há motivos para se ler um texto e ficar irritado. Há separação do mundo da escola e do mundo da vida e misturá-los, dada a posição que ocupa, é uma prerrogativa não concedida ao aluno.
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É somente pela intervenção da professora que a sensibilidade da aluna ganha lugar e razão de existir no interior da sala de aula. Restrepo (2001), ao discutir o valor da ternura em nossa sociedade, afirma que o ensino e aprendizagem ainda são concebidos como algo que não deve ser invadido pelas singularidades dos envolvidos. E quando alguém rompe de algum modo com as estabilidades esperadas, “de imediato o tachamos de histérico ou esquizofrênico, enquanto consideramos normal aquele que se articula insensível a todos os automatismos” (p.27-28). O estranhamento, manifesto pela ironia com que respondem ao discurso da aluna, demonstra um sujeito aluno conhecedor de tais concepções. O termo “nervosinha” pode ser visto como variação da concepção de histérico que aponta Restrepo. Ou seja, por essa perspectiva, o próprio aluno passa a não aceitar posicionamentos que fujam a esse modo de tratar as manifestações sensíveis.
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Respostas a um tema sensível nas interações em sala de aula
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Não só a entonação sensível, mas temas ligados às sensibilidades, quando vindos de outros alunos, também são tratados como ações estranhas ao corpo da escola. Nas duas próximas seqüências, também produzidas em aulas do primeiro ano do Ensino Médio, novamente surgem discursos que não tem como objetivo expressar ou provocar uma reação afetiva em determinada situação de interação verbal, mas que são respostas ao que considero ser um tema de exposição de afetividades. A discussão se desenvolve em torno da leitura de textos produzidos sobre pessoas, objetos e ações que os alunos gostam ou não. Como no plano do sensível emergem as mais radicais diferenças e singularidades, a leitura dos textos fez com que cada um deixasse de ser parte de um conjunto que pode ser chamado de “turma”, “gente”, “pessoal” etc. E o aparecimento dessa diferença é então a principal razão para o estranhamento e recusas que marcam as negociações para que os textos sejam lidos. Vejamos:
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A1EM1A
[...]
165 P GEN:TE (.) quem vai começar lendo o texto que
166 escreveu// (.) é para ler o texto que vocês
167 escreveram sobre as coisas que vocês gostam ou as
168 que não gostam (.) que amam ou detestam (.) depois
169 vamos ver como fica um texto que fala de coisas
170 opostas/ (...) não acredito que ninguém fez o
171 texto//
172 A1 professo:ra/ não quero ler não (.) lê você o meu
173 texto
174 P o texto é para ser lido em voz alta por CADA UM DE
175 VOCÊS/
176 A2 isso mesmo/ você lê em voz alta ua:i
177 P gente/ vocês estão com vergonha do quê:://
178 A1 a::h professo:ra/ eu acho que não é legal falar
179 disso para todo mundo\=
180 A3 =por que você não leva os textos e lê em casa//
181 (.) aí só você vai ficar sabendo do que nós
182 gostamos e a gente não paga esse mico de ter que
183 ler para todo mundo/
184 P G você não quer começar//
185 A professora:: eu tenho vergonha de mostrar isso\
186 (.) lê você
187 A2 a::h professora/ essas coisas não dá para falar
188 assi:m
189 P e/ (.) dá para falar como então//
190 A4 a::h não sei não (.) eu não falo sobre isso\
191 A5 eu leio professora/((após a leitura))
192 P viu/ ela não teve vergonha de mostrar seus
193 sentimentos (.) isso não é algo que podemos fazer
194 sempre/ ((a professora termina aceitando a proposta dos alunos e
195 faz a leitura em voz alta de alguns textos, mas na seqüência ela volta a
196 insistir para que os alunos leiam))
197 A professora::: eu tenho verg[onha/
198 A [sou tímido professora
199 P tímido (.)[é::: tím[ido//
200 A [não é não professora::/ é
201 enrolão (.) conta outra (.)conta outra vai
202 (inaudível)
203 P o::h/ vamos combinar o seguinte/ (.) é::h eu não
204 vou obrigar ninguém a ler mas assim:/ (.) da
205 próxima vez quem fez o seu PRÓPRIO TEXTO vai ler 206 (inaudível)
[...]
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A recusa se baseia na vergonha (inicialmente atribuída pela professora) de abordar temas considerados pessoais no espaço da sala de aula. A emoção atribuída pela professora ao aluno é confirmada no enunciado (179 e 180) em que diz não ser legal falar do que gosta ou não para todo mundo, mostrando, com isso, percepção de que a intromissão do afetivo é algo que não tem espaço na sala de aula. Tal consciência produz duplo movimento entre os alunos: o dos que se recusam a fazer exposição de si e dos que não aceitam a efetivação da exposição. Isto é, há limites também para a escuta do sensível. Situado no interior dessa tensão, um aluno (180 a 183), por exemplo, reafirma a posição da professora como sujeito autorizado a ter acesso ou mesmo ler em voz alta o texto. Esta pode conhecer suas sensibilidades. Além disso, subjacente ao reconhecimento da autoridade está também a demanda para que não se alterem os rituais comuns à escola, que é o de ler o texto em casa e atribuir nota.
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A aula é concebida como o lugar da comunicação verbal distanciada e cujo objetivo é também produzir leituras e escritas distanciadas. O próprio aluno, ao não se dispor a ler, demonstra estranhamento diante da possibilidade de produzir um tipo de conhecimento prático, relacionado às ações cotidianas nas quais é impossível separar o sujeito conhecedor do objeto de conhecimento. A negação de que as afetividades sejam um tema de interesse do mundo da escola reforça e promove o poder do professor como o detentor de posições e saberes incontestáveis. Deste lugar ele pode manusear o texto/aluno, inclusive no que é da ordem do sensível.
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No prosseguimento da atividade, ainda considerando a seqüência anterior, quando surge a aluna que se dispõe a fazer a primeira leitura, a professora conclui: viu/ ela não teve vergonha de mostrar seus sentimentos (.) isso não é algo que podemos fazer sempre/. Ou seja, há o reconhecimento de que é um momento raro, porém isso não promove a estabilidade e aceitação das leituras. Ao contrário, os que se dispuseram a ler o texto foram seguidos por uma série de comentários marcados por tons irônicos, conforme surge na seqüência seguinte:
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A1EM1A
[...]
213 A1 eu fiz professora/ (.) e chamei de concha acústica
214 P bem alto (.) bem alto
215 A1 (...) não gost-(..) gost-\ (.) eu gosto de futebol
216 gosto de viajar gosto de verão gosto da [minha
217 P [cal::ma/
218 A2 que você falou//
219 P deixa ele continuar\
220 A1 gosto da minha família gosto de- de- (.) gosto de
221 ir na igreja mas não gosto de brigas de pessoas
222 falsas drogas quiabo\
223 AA ((risos da turma))
224 A2 quia::bo ou via::do//
225 P não gosto de que//
226 A1 de QUIA::BO/
227 P o:h vocês entenderam uma coisa mas é ou:tra/ mas
228 deixa eu ver o que você escreveu (..) gosto da
229 minha família gosto de ir na igreja mas não gosto
230 de brigas de pessoas falsas drogas quiabo (.)
231 Gosto de futebol gosto de viajar gosto da minha
232 mãe gosto da minha família gosto de ser feliz
233 gosto de viver porque amo a vida mas não gosto de:
234 brigas pessoas falsas drogas bebida alcoólica
235 quiabo jiló e azeitona/
236 AA ((risos))
237 P não é VIA:::DO/ (..) é QUIA:::BO VIU GEN:TE/
238 A1 não falei que é [quia:::bo/
239 A2 [eu entendi via:::do/
240 P jiló azeitona bebidas [alcoólicas
241 A3 [a::h não gosta de bebidas
242 alcoólicas//
243 AA ((risos))
244 A4 a:::h/ se tivesse uma máquina da mentira aí
245 P R/ fica quieto/
246 A5 32/
[...]
260 P vamos para ela gente/
261 A ai gente/ vô fazer não (.) o:h professora/ pelo a
262 amor de deus (inaudível)
263 P vai (.) eu vou dar negativo hein/ (.)vamos lá/
264 A então tá bom tá bom
265 P tá bom tá bom
266 A vai eu vou ler agora (..) os dois lados\ (.) de
267 um lado minhas alegrias os sonhos os sorrisos a
268 chuva a família as lembranças amizade carinho
269 afeto os amores e o pôr-do-sol (.) do outro minhas
270 tristezas minha solidão meu choro o escuro minha
271 saudade minha desilusão à noite minha esperança a
272 minha morte
273 A misericórdia/
264 A a morte/ (.) por que falar disso//=
265 A =porque ele é doido/
266 P gen::te respeita o colega ele está falando do que
267 ele sente (.) isso é diferente para cada um/
268 (inaudível)
[...]
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Duas questões sobressaem nessa etapa da aula: o sensível é motivo de ridículo (213 a 246), o sensível quando tratado na escola termina não escapando à formalização da nota (263). A mesma professora que reconhece ser esse um momento raro é a que também ameaça com nota negativa caso a leitura não seja realizada. Nesse ponto demonstra que, de fato, trata-se de mais uma atividade com o objetivo de cumprir o cronograma de avaliação, o que corrobora com a idéia inicial dos alunos de que os textos poderiam ser lidos por ela em casa. Não havia outra finalidade que justificasse paga[r] esse mico de ter que ler para todo mundo/.
A concepção de que a exposição do sensível cria uma imagem ridícula materializa-se em outro discurso: o de que quem fala de afetividade é homossexual (veja-se o trocadilho quia::bo ou via::do//)ou louco (=porque ele é doido/). A exposição ao ridículo suscita o fantasma da efeminação, da loucura e da histeria. A menina é qualificada de “nervosinha”, já o menino é “louco” ou homossexual. A sensibilidade está diretamente ligada a corpos marginais. O aluno refuta a possibilidade de realizar a leitura do seu texto não somente pela vergonha de expor um tema sensível, mas porque luta contra a possibilidade de ser enquadrado em um estereótipo ou outro.
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Nesse sentido, os próprios alunos produzem relações de controles entre si, pois ancorados no fato de a escola, de modo geral, exigir uniformidades das ações, não reconhecem ou não aceitam práticas que façam vir à tona as singularidades marcadas por colorações afetivas. Como já dito, as sensibilidades quebram as uniformidades e o controle se materializa pela criação de exclusões (o louco, o homossexual, a nervosinha). Tais classificações apresentam filiações a um sistema de controles bem mais amplo que remete a significações e classificações históricas do elemento sensível. Existem os lugares e rituais sociais autorizados para expressar as emoções. Le Breton (2004) cita como exemplo o divã do psicanalista. Na busca da cura, o sujeito pode liberar, por meio da fala, seus sentimentos. Existem outros dispositivos que também encorajam a emergência das afetividades, tais como as manifestações políticas, as representações teatrais, as terapias corporais etc. Sem esquecer a opinião bastante generalizada de que o lugar legítimo das afetividades é o mundo das artes e da literatura. Fora dessas circunscrições, a emergência de temas, tons, discursos que produzem sentidos afetivos suscita a idéia de desvio, de avaliação equivocada. A escola não está inclusa em nenhum desses espaços. Nela é o lugar de manifestação da razão ou da paixão intelectualizada. Tanto que, quando o aluno aprender a falar de sua paixão pelo objeto de conhecimento (assim como fazem os professores), já não sofrerá mais as sanções de seus interlocutores.
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Da conversa com Bakhtin, o que dizer sobre essas pequenas intolerâncias?
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As ações do sujeito são atos de conhecimento que envolvem o ser no mundo e, consequentemente, a construção de compreensões e teorização são baseadas nas vivências e valoração que ganham a forma de atos estéticos. Bakhtin une esses vários processos para explicar que a condição humana não é um direito natural, mas resultado do fato de o sujeito ser lançado num mundo carregado de sentidos (signos) e ainda ter de responder pelas formas como age nesse mundo. Assim, para dar conta de conviver com a alteridade, o sujeito não pode abrir mão da razão (das interpretações e teorizações), mas também não pode abrir mão dos afetos (que resultam numa multiplicidade de forma de perceber o mundo). O sensível abre caminho para a singularidade, para a construção do sentido novo, para a recriação. Isso nos permite dizer que o humano para Bakhtin é um todo que, ao agir no mundo, não responde somente pelas vias da razão ou do afeto, mas constrói respostas que envolvem esses dois elementos. Para tanto, é detentor de um corpo que, para ser um todo, engloba a mente. O corpo aqui não é a parte inferior, é esse todo que permite o agir ético e estético (SOBRAL 2005).
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Diante dessa concepção, a emergência dos tons, temas e ações afetivas em sala de aula e, sobretudo, o tipo de acolhida que lhe é dispensada põe-nos outra (e não nova!) agenda de preocupações: a que trata dos atos éticos derivados dessas ações. Os discursos de cunho afetivo ou que produzem sentidos afetivos são atos orientadores e organizadores do ensino-aprendizagem. Por meio dos atos materializados em respostas de aceitação ou refutação, os alunos, por exemplo, demonstram modos de convivência com a alteridade. Definem modos de ser, de sentir e de linguajar para si e para o outro. O aluno que interdita a entonação sensível ou refuta a proposta de realizar a leitura de texto porque trata de um tema ligado ao mundo dos afetos, de fato, age baseado em parâmetros racionais. A aceitação-ou-não desse discurso nos espaços educacionais pode ser entendida como formas pelas quais esses sujeitos já aprenderam a definir como deve ser a presença no mundo da escola. Ou, especificamente, como devem se portar quando ocupam a posição de sujeito de saber.
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Entretanto, as ações discursivas que demonstram ou produzem sentidos afetivos são exposição de si que ajudam a demarcar diferenças muito próprias. A aluna que, ao falar dos problemas relacionados ao meio ambiente, demonstra indignação, por meio da mudança da entonação, deixa escapar marcas de si que a diferenciam dos demais. São marcas nascidas dos processos de subjetivação. A entonação reforça a veracidade do enunciado, pois é dada ao interlocutor como ponto de partida para compreender o que lhe está sendo dito, personificando, portanto, o enunciado. É algo que não se reduz ao movimento da voz, ainda que a englobe, mas é o lugar da memória, dos tons que cada sujeito passa a propor para si com base na imagem social do lugar que ocupa. A entonação reflete a relação do sujeito com o meio social ao qual pertence.
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Diante disso, se assumimos a complexidade constitutiva do sujeito conforme postulada nas concepções bakhtininas, as pequenas intolerâncias com o que é singular não podem ser normalizadas. O que é próprio de cada sujeito não pode ser tratado como o inaceitável, como a diferença que precisa ser enquadrada, organizada dentro de uma ordem única de funcionamento. O aluno que refuta o dizer do outro porque percebe marcas de uma entonação afetiva, sensível ao tema do discurso, não pode sair dessa mesma escola carregando as mesmas concepções. Em todas as situações, fica posta para o professor a exigência de que intervenha. E a intervenção necessariamente, se continuarmos com a lupa bakhitiniana, não precisa ser com respostas prontas, que ditem esta ou aquela forma de ser ou de sentir. As ações afetivas e/ou as formas de acolhimento destas exigem que o professor apresente questionamentos que levem os alunos a refletirem sobre os significados de seus atos. E a herança cultural é importante não para lembrá-lo daquilo que não é, mas, sim, para ajudar a ambos construírem compreensões sobre si mesmos e sobre o outro. Sobre a diferença que cada um carrega em razão de sua história de interlocuções.
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Da criança que chega às fases iniciais de escolarização, passando pelo adolescente que está no Ensino Médio, chegando ao jovem que adentra a universidade, vimos sujeitos que dialogam com o seu tempo. Nesse diálogo, transformam a sala de aula em espaço de ações centradas em suas múltiplas experiências, inclusive as afetivas. Em síntese, o racionalismo que serve de suporte para se conceber a organização da aula, das relações de aprendizagem cria dificuldades para construir diálogos com tudo o que é singular. Aprender é sempre aprender com os outros; pensar não se realiza isoladamente do corpo e traz os tons, as compreensões outras para o espaço da sala de aula. Alunos e professores são, nessas condições, postos constantemente diante de atos que são próprios de cada sujeito.
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Em suma, o ato de ensinar e aprender exige que não se perca de vista o fato de na escola há “gente formando-se, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas porque gente, é capaz de negar os valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir” (FREIRE, 1996, p. 163). Educar dessa perspectiva é uma ação responsiva. No ato responsável, o sujeito responde por aquilo que enuncia em termos de compreensão das próprias ações e das que são vindas do seu interlocutor. Ser responsivo face aos nossos atos e aos do outro em um contexto real e concreto, eis o que torna possível a assunção de posicionamentos éticos, não-indiferentes às significações que o rosto do outro nos impõe cotidianamente. A responsividade assumida a partir dessas significações impede a dominação ou a redução e fixação do outro em lugares pré-definidos.
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Ser responsivo significa ordenar as ações daquele que também me ordena, não para dominá-lo, submetê-lo, mas porque “O encontro com outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem duvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscência” (LÉVINAS, 2005, p.143). Assim, pensar a sala de aula como lócus de ações responsivas e éticas traz a exigência de que não deixemos os desencantos gerados pelas contradições contemporâneas justificarem ações que reduzam o aluno à condição de sujeito preso em uma estrutura histórica sem saídas. Para aquele que aprende, o futuro não está determinado, não comporta acabamentos irreversíveis. E se não há determinações, as experiências são referências e não parâmetros que devem ser rigidamente observados.
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Geraldi (2004), dialogando com Bakhtin, conclui que, para abrir espaços para as singularidades, o caminho a percorrer é aquele que nos permite aprender a construir relações de escutas atentas da alteridade. É o que nos permite também escutar o estranhamento, pois “as ações do outro, os dizeres do outro, prenhes de sua cultura, quando confrontados com objetos e fenômenos que nos escondem as valorações que nós mesmos lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos enxergar” (p. 233). Abrir espaços para esse tipo de aprendizagem dialógica é reconhecer que cada aluno possui uma constitutividade histórica que o faz transitar pelo universo escolar de modo diferenciado, o que, conseqüentemente, faz nascerem relações (afetivas ou não) diferenciadas com os objetos de conhecimento, com os interlocutores e com o próprio contexto.
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Referências bibliográficas
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LE BRETON, D. Les passions ordinaires: anthropologie des émotions. Paris: Payot, 2004.
LÉVINAS, E.: Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1991.
_____________. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005.
PRIGOGINE, I. O fim da ciência?. In Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
RESTREPO. C. L. O direito à ternura. 3ª Ed. Petropólis: Vozes, 2001.
SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In Bakhtin: Conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005.
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Introdução
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O tema relacionado a acolhida dispensada aos tons e respostas afetivas nas interações em sala de aula é uma relevante porta de entrada para refletirmos, a partir das concepções bakhtinianas, sobre as pequenas intolerâncias que se propagam, muitas vezes de maneira habitual, no mundo contemporâneo e, especificamente, nos espaços escolares. Ainda é difícil conceitualizar o papel dos afetos na vida cotidiana e, sobretudo, nos espaços onde até muito recente era considerado um estorvo, como é o caso da escola. Assunto importante para aqueles que se preocupam com a formação de professores, pois sabemos que o exercício dessa atividade ainda é o resultado da partilha de rotinas com professores que buscam orientar suas paixões para concepções que validam, com esmero analítico, os distanciamentos entre sujeitos e objeto de conhecimento
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Os afetos, sabemos, foram postos à margem não só pela filosofia ocidental, mas também pelo pensamento científico moderno, lócus de inclusão das ciências da linguagem. Ao se dar primazia à razão, não só se negou a importância da face afetiva do humano na construção do conhecimento, mas, principalmente, concebeu-se um sujeito que não precisa dos afetos para transitar no campo de conhecimentos formais. A partir daí a Lingüística, por exemplo, concebeu a língua como um sistema; a moderna retórica pôde pensar em argumentos como técnicas produzidas racionalmente para convencer um auditório universal. Nasce também a defesa de que o sujeito de conhecimento, liberto das obscuridades das paixões, deve apresentar uma linguagem limpa, livre das marcas de qualquer índice de subjetividade e sustentada em enunciados descritivos do tipo “X é Y”.
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Consequentemente, se nos colocarmos na esfera cotidiana da linguagem, facilmente constatamos que existe em nossas experiências uma ideologia guerreira que, aliada com importantes valores da cultura ocidental, se opõe com persistência e convicção à enunciação de um discurso que denote qualquer indício de afetos. Duarte Jr. (2003), olhando para os resultados desse processo na contemporaneidade, assinala que o avanço científico, razão principal da dura defesa da prevalência do sujeito da razão, foi seguido de profundas transformações que acarretaram o embrutecimento dos modos sensíveis do ser humano se relacionar com a vida cotidiana. Como insumo central para a construção destas couraças com que somos instruídos a nos defender dos afetos, a cultura educativa, vigente na escola contemporânea, impõe ao nosso corpo uma relação funcional, produtiva e distante, onde os laços de afetos com os objetos de estudos são tratados como questões menores e, em muitos casos, inconvenientes.
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O médico aprende que não deve sentir como sua a dor de seus pacientes para que possa tratá-los de maneira genérica dentro da rotina hospitalar. Ensina-se ao professor a manipular os alunos, a fim de obter aprendizagem, sem deixar-se arrastar pelas singularidades de suas vivências. O político aprende a manejar as massas, constituições e decretos, que incidem sobre o bem comum, sem deixar-se arrastar pelos casos individuais, pois se acha que desta maneira perderia sua eficácia. Todos esses casos são exemplos do que Ivan Illich chamou de incompetência especializada, reconhecida e diplomada pelas universidades. Para ser bem sucedido em nossa cultura, é imperioso tornar-se insensível a muitas vivências singulares, a fim de assumir a máscara estereotipada que não delate nossas emoções nem nossas dúvidas, isto é, que não denuncie a radical diferença daqueles fenômenos com as quais entramos em contato (RESTREPO 2001, p. 27).
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A escola, principal lócus de aprendizagem e exercício desse modo distante de ser, sente profunda aversão pelos temas sensíveis e singulares. Ainda segundo Restrepo, podemos constatar essa aversão na maneira como é tratado o problema da aprendizagem. Sempre que uma singularidade sensível entra em choque com os propósitos da escola, a forma que esse desencontro ganha é o do fracasso escolar. O fracassado é sempre o aluno que não foi capaz de compreender as diretrizes que lhe foram postas. Ou seja, centram-se as causas do desencontro com os propósitos da escola no aluno e na sua família. A instituição permanece distante, praticamente isenta das responsabilidades. A desconsideração da face sensível do humano resulta na incapacidade da escola compreender a existência de modos diferentes de construção de conhecimentos, de perceber os tons afetivos que dinamizam ou bloqueiam os processos de aprendizagem.
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Cotidianamente, quando olhamos para uma sala de aula, não é difícil perceber que seu funcionamento é centrado no exercício de ver e ouvir que dá suporte ao trabalho da leitura e da escrita. Nesse contexto, alunos e professores, de modos diferentes, apresentam resistências para reconhecer qualquer tipo de conhecimento contextual, prático, nascido das vivências mais amplas. Principalmente, há uma grande resistência em reconhecer qualquer tipo de conhecimento que atesta a existência de um sujeito encarnado. “Olhar e não tocar”, “falar sem se emocionar”, essas são regras bastantes presentes durante a vida educacional. Somente a criança das fases iniciais de escolarização pode cometer esse delito. Fora dessa etapa, o desejável é que o aluno leve para a sala de aula os pares de olhos, ouvidos e mãos. Parece que na escola o corpo, com todas as suas contingências, não é bem vindo. As especificidades das histórias e dos desejos de conhecer (ou não) são completamente ignorados.
Das primeiras etapas de escolarização à universidade, o desejável é que professores e alunos se portem como sujeitos de saber e não de sentir. A emergência do afetivo gera estranhamento quando não está correlacionada, adequada às exigências de cada posição. O aluno que apresenta singularidades na relação de aprendizagem é, conforme veremos nas sequências discursivas analisadas a seguir, submetido a um trabalho de conformação inclusive por parte dos próprios alunos. Muito cedo se aprende que, na escola, não há lugar para um sujeito que olha os objetos de conhecimentos com base em tons e olhos sensíveis. Antes é necessário chamar Bakhtin para essa conversa!
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Os atos no mundo da vida e no mundo das abstrações teóricas
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No texto Por uma filosofia do ato (1916), Bakhtin discute os efeitos nefastos da dissociação promovida pelo pensamento filosófico ocidental entre mundo da cultura (definido também como o do juízo teórico, que é onde os atos concretos são objetivados com o intuito de se produzir conhecimento sobre o humano) e mundo da vida (definido como o da historicidade viva porque é onde os atos dos seres históricos efetivamente se realizam). O mundo representado, objetivado, é fechado porque estabelece corte entre o conteúdo ou sentido de uma atividade e a realidade concreta do sujeito que a realiza. Em contrapartida, o mundo vivido traz a eventicidade do ser em movimento, por isso jamais é acabado. O seu inacabamento é o legado incômodo às abstrações teóricas (maior exemplo é a clássica separação entre sujeito e objeto tão valorizada no universo das produções científicas).
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No caso do humano, essa separação faz com que dois mundos estejam sempre em confronto (o da cultura e o da vida) devido à dificuldade de promover encontros estáveis entre sujeito teóricos e sujeitos concretos. Esses dois mundos não se comunicam porque a eventicidade da vida é inapreensível pela razão teórica. A dicotomia assinalada por Bakhtin fica bem exemplificada nos estudos voltados para a questão da inscrição das afetividades na linguagem, uma vez que se procura pôr no interior dos sistemas sintáticos e semânticos pré-definidos os acontecimentos de linguagem que sinalizam a existência de sentido de cunho afetivo. Como este envolve um conjunto amplo de ações e um sujeito que não é mera abstração, tem-se impasses como o que gira em torno da busca de definição sobre o que seria uma lingüística ou uma gramática das emoções. A norma ou a lei geral é incapaz de apreender as tensões que envolvem, por exemplo, a relação diferencial entre significação e sentido numa enunciação de cunho emotivo; ou então há dificuldades para explicar as tensões entre eu-outro geradoras da linguagem em ato.
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E não há possibilidades de superar essa dicotomia se tomarmos como base a cognição teórica. Aliás, Bakhtin assume posição radical com relação ao problema quando afirma que “todas as tentativas de superar – de dentro da cognição teórica – o dualismo da cognição e da vida, o dualismo do pensamento e da realidade única e concreta, são totalmente sem esperança” porque o sujeito em sua concreticidade é maior e mais pesado que o sujeito da teoria (1916, p. 25). A dissociação entre o mundo teórico e o mundo da vida, entre o racional e o sensível, provoca danos à compreensão das ações e dos próprios sujeitos humanos, pois no interior da teoria, para Bakhtin, “nós nos descobrimos determinados, predeterminados, passados, terminados, isto é, essencialmente não vivos. Nós teríamos nos retirado da vida – como vida responsável, plena de riscos e transformando-se através de ações realizadas – para um indiferente e, fundamentalmente, completado e terminado Ser teórico” [... (idem, p. 26-27). No mundo teórico, não cabem orientações práticas da vida, o eu vivente é desnecessário porque é sempre alcançado por meio de uma abstração essencial. E como tal, nada lhe pode ser acrescentado ou abstraído em termos de vivido. Tudo o que pode ser construído em torno das abstrações teóricas precisa ter um caráter absoluto, eterno, estável.
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Diante disso, Bakhtin defende um projeto teórico-filosófico que abarque a vida e, conseqüentemente, não se configure como lei geral, e sim como um momento constituinte do que é o sujeito no interior das relações concretamente vividas. Para construir essa arquitetônica englobando os atos realizados, toma o ato estético como um meio para pensar o agir ético desse sujeito que não é mera abstração nem um emaranhado puramente subjetivo. A defesa do autor é para que se passe a considerar os atos como evento único, singular, capaz de refletir seu sentido e seu significado no interior das múltiplas interações de que participa o sujeito que o pratica. Assim, o ato é concebido como lugar em que pode ocorrer o encontro entre o mundo da vida e o mundo da cultura porque comporta as ações físicas, mentais, emotivas, estéticas e objetivas. E tais ações não podem ser consideradas somente no seu aspecto psíquico ou objetivo, mas também na inteireza que se constitui entre o vivido e o abstraído do vivido.
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A necessidade de integração dos dois mundos, o reconhecimento do ato realizado como lugar de concentração e resolução da oposição entre o abstrato e o concreto, entre o repetível e o irrepetível, entre sensível e inteligível, encarnado e desencarnado leva Bakhtin a defender que somente a categoria de responsabilidade/respondibilidade pode unir o que foi considerado como faces opositivas. Nas suas palavras: “é apenas de dentro do ato realmente executado, que é único, integral e unitário em sua responsabilidade, que nós podemos encontrar uma abordagem ao Ser único e unitário em sua realidade concreta” (1916, p. 45). A respondibilidade, ou o ato responsivo, engloba o conteúdo, seu processo e, unificando-os, entra também como parte significativa a valoração/avaliação do sujeito no que diz respeito ao seu próprio ato. E não se trata de algo que envolve intencionalidade auto-centrada, mas que se constrói com base na participação nesse ser único que constitui a existência de todos nós: o outro que não é aquele que está em nossa frente e com a qual partilhamos de imediato o ato praticado, mas o outro, o Ser Humano que fazemos e a que, junto com o outro que está em nossa frente, pertencemos.
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Nessa concepção, os acentos avaliativos, a entonação, conseqüência da ocupação de um lugar único no mundo, são condições fundantes do agir humano. Obviamente, isso obriga a reconstituição do objeto, pois se torna necessário apostar em construções teóricas que considerem as instabilidades, as enunciações, a linguagem e não somente a língua, no sentido saussureano do termo. Como não se apreende o transitório, o instável no estável, não se pode falar de uma linguagem afetiva ou de um sujeito encarnado no interior de uma visão teórica fechada. Lévinas (1991), que dialoga com Bakhtin pelo modo como concebe a constituição do humano, defende que o sujeito e seus atos somente podem ser pensados no interior de um quadro que, mesmo sendo formal, não exclui sua pertença ao gênero humano. Como tal, o sujeito é parte de um todo que, dividido em singularidades, culmina na identidade de um sujeito situado entre dados empíricos e reconhecidos por signos, sendo o principal deles a linguagem.
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E deve ficar claro que a crítica bakhtiniana à razão teórica não significa sua negação. Ao contrário, Bakhtin não nega sua validade, somente não aceita seu desligamento do mundo da vida, apresentando-se, no entanto, como explicação do todo. Seria um erro, por exemplo, tomar suas concepções como base para transformar o ato realizado por cada sujeito em algo inefável, isto é, que só pode ser vivamente experimentado de algum modo no momento de sua realização. Segundo Geraldi (2004), na reflexão bakhtiniana, o deslocamento das atenções teóricas para o ato, para a consideração das singularidades não significa defender que cada ato tem explicação em si mesmo. Ao contrário, é na inter-relação com outros atos que ganham sentidos. Cada ato inefável é singular e enunciável e, nas enunciações, pode-se encontrar pistas que permitem construir explicações. Os afetos compõem os atos humanos.
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Pela perspectiva bakhtiniana, razão e afetos não ocupam lugares eqüidistantes, pois todo ato humano se constitui englobando forma e conteúdo, significação e tema, saber teórico e saber prático, repetibilidade e irrepetibilidade. Não há dissociação conforme demonstrado por meio do corpus mobilizado ao longo deste trabalho. De acordo com Sobral, o “[...] sensível (o mundo dado, dan em russo) e o inteligível (a apreensão do mundo, o postulado, zadan em russo) estão necessariamente integrados na arquitetônica que Bakhtin criou para compreender os atos humanos: a apreensão do mundo envolve de um lado a unidade do ato (ou seja, a junção entre o processo de realização concreto do ato) em seu aqui e agora no mundo dado, e, de outro, a organização do conteúdo do ato” (2005, p. 25). No mundo da vida, o homo sapiens e homo demens compõem um mesmo corpo, uma mesma linguagem. A existência inseparável dos dois é o que gera a coerência dos atos. Essa coerência é sempre provisória e estável porque construída pela mobilização de saberes vindos do mundo da cultura e do mundo da vida.
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Assim, a consideração de que não há separação entre racionalidade e afetividade na realização dos atos humanos, obriga-nos a sair do universo laminar, linear, reversível e estável para um universo turbulento, caótico. E não se trata de um tipo de solução que põe o universo das sensibilidades sob a submissão das racionalidades. Esses dois elementos não apresentam sentidos, coerências em si mesmos ou isoladamente. A consideração do mundo da vida, tal como defendida por Bakhtin, ou a consideração das afetividades, tal como defendida neste trabalho, nos jogam no mundo das instabilidades e incertezas. E conviver com a incerteza não pode ser visto como um instante de pausa na busca incessante de evitá-la ou domesticá-la em esquemas pré-existentes, mas trata-se de assumir que os atos humanos são irreversíveis e, como tais, comportam no seu interior instabilidades e estabilidades (PRIGOGINE, 1996). Esse deslocamento tem conseqüências complexas, pois, no que concerne aos estudos da linguagem, segundo Geraldi (2004), investir nas enunciações cria, inevitavelmente, intranqüilidades para os enunciados. Eles podem ser sempre outro em termos de organização estrutural e semântica.
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Também cria conseqüências para aquele que se põe como sujeito produtor de conhecimento, pois jamais poderemos ter um saber total. Assumir que os atos são irreversíveis implica nos condenar à condição de produtores de pensamentos incertos, sem nenhum fundamento absoluto de certeza. A consideração da complexidade e da errância dos atos, indiscutivelmente, nos obriga a adotar outra forma de dizer sobre a condição humana. Em suma, quando saímos da proteção das concepções lógicas e racionais, os atos humanos ganham incompletude e, por isso, não faz sentido falar em oposição entre razão e afetos.
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Em todas as dimensões e extensões, inclusive a educacional, a consideração de que os afetos são elementos incontornável na compreensão dos atos humanos traz a obrigação de se pensar uma ética baseado no outro. O tema de ser-para-o-outro, segundo LÉVINAS (2005), desempenha papel capital porque permite romper com a obsessão da totalidade, o que nos obriga a pensar formas de proteção contra as manipulações do sujeito devido às posições de poder. Uma ética não indiferente porque baseada no real das existências dos atos concretos, baseada na existência humana. A subjetividade, se baseada nas concepções de Bakhtin, não é originária de uma consciência individuada que toma para si a responsabilidade de explicar e carregar o fardo de seu mundo.
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O aluno não se constitui como tal sem a mediação do professor e dos demais alunos que habitam a sala de aula. Todos nas relações com todos garantem a formação dessa subjetividade que sente (e age) com relação ao universo do saber. Ou seja, qualquer que seja a qualidade da mediação, a sensibilidade do aluno, assim como o processo de inserção da criança no mundo pela mãe e mais tarde pelos demais interlocutores, já é o resultado da sensação, do ruído, do odor, das definições, das nominalizações que vêm da boca do outro. Um sujeito sensível e singularizado; e essa constituição não é está dada como escolha intencional, mas está concernida porque o eu, inclusive na sua condição mais íntima, não antecede à linguagem e nem está fora dela. É porque as palavras tocam que surgem os movimentos discursivos que podem ser caracterizados como uma respondibilidade sensível.
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Em suma, pela perspectiva bakhtiniana, o aluno é um sujeito encarnado e situado, é uma unidade heterogênea, organização emergente da interação entre as quais se destacam a razão, a emoção e a ação, que são formas de interação com o mundo. Por essa via, a experiência vinda do mundo do vivido é o que funda e sustenta a construção da sensibilidade, do modo de agir, de responder as demandas postas pelo mundo dos atos abstratos – o mundo da escola. Como sujeito encarnado, nas tramas de suas vivências, desenvolve ações em que razão e afetos são elementos inseparáveis das experiências sociais e individuais conforme veremos nas sequências discursivas analisadas a seguir.
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Respostas a uma entonação sensível nas interações em sala de aula
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Na seqüência discursiva seguinte, produzida numa turma de primeiro ano do Ensino Médio, da perspectiva lingüística não há sinais que permitam inseri-la no campo semântico dos afetos. E não poderíamos também desenvolver uma análise a partir da idéia de que a aluna traçou uma tática de discurso para convencer os seus interlocutores, pois, devido às exigências próprias da escola, o que está em jogo é a comprovação que realizou a atividade a contento. Portanto, uma apresentação límpida seria considerada satisfatória. Assim, o que seus interlocutores lêem como um discurso marcado por afetos ganha materialidade pelo modo como se inscreve no próprio dizer. Essa inscrição é algo que escapa ao previsível em termos de organização de respostas aos imperativos da escola. É o estranho porque o lugar de sujeito de afetividades não é comumente ocupado pelo aluno. Conseqüentemente, os sentidos de cunho afetivo não atribuem credibilidade à locutora. Vejamos:
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[...]
01 A1 professora/ o nosso texto fala da nossa falta
02 de consciência pra cuidar das fontes de água
03 (.) fala que as pessoas não cuidam (.) jogam
04 lixo nos rios (.) eu acho que jogamos as
05 coisas na rua porque nós não pensamos não
06 preocupamos com as pessoas que não têm água/
07 os políticos ficam complicando as coisas por
08 falta de um papelzinho/ isso tudo para mim é 09 irresponsável (.)é falta de responsabilidade/
10 acho isso cruel/ ((o tom de voz enfático foi recebido por
11 palmas e assovios))
12 AA i::h ela ficou nervosa:::/ ((expressão acompanhada
13 de riso))
14 A2 D você está nervosi:::nha hoje por que//
15 A3 D/ não precisa ficar brava assim/
16 P gen::te/ espera aí/ a D tem razão em ficar
17 brava/ essa é uma questão muito séria
[...]
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Corpo e voz são constitutivos da linguagem na perspectiva bakhtiniana. A entonação não se constitui somente pela força vocal da voz, mas também pela memória semântico-social depositada na palavra (DAHLET, 2001). Essa memória dá corpo e insere o corpo no discurso e é vista como o lugar do encontro ou do desencontro de interlocutores porque a base das interações é inicialmente da ordem da entonação. Os sujeitos estão sempre inseridos em um universo onde são instados a exprimir e provocar avaliações que, por sua vez, definem a entonação do discurso. Na seqüência acima, ao abordar um tema de forte valor social, a aluna expressa sua entonação/avaliação sobre a questão baseada em uma memória semântica mais ampla acerca da depredação das fontes de água. Por se tratar de uma questão presente nos meios de comunicação, sempre tratado pela perspectiva da denúncia e indignação, a aluna apresenta o resultado de sua leitura ancorando sua voz nas vozes que, situadas em um contexto maior e de diferentes modos, também se mostram indignadas. Pode-se dizer que ancora o seu discurso em “tom coletivo” de indignação, o que denuncia um aprendizado sobre o ato de sentir os problemas sociais que não são comuns no interior da escola.
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Ao trazer o excedente para a sala de aula, abre espaço para que os interlocutores construam interpretações avaliativas sobre o modo como enuncia, daí a definição: i::h ela ficou nervosa:::/. Isto é, ficou irritada, exaltada. O falar forte evoca uma potência que não condiz com a posição de aluno, muito menos com a de aluna e, por isso, suscita a definição um tanto pejorativa da parte de um dos interlocutores: D você está nervosi:::nha hoje por que//. Além de atribuir uma imagem negativa com o uso do termo nervosa no diminutivo (mulheres são vistas como seres emocionais e instáveis em nossa sociedade), a pergunta pressupõe que a atribuída irritação tem outra origem que não a relacionada ao problema tratado no texto. Trabalha-se aqui com o conhecido estereótipo de que uma pessoa emocionada é uma pessoa que mistura os motivos de suas ações e promove avaliações equivocadas. Na escola, não há motivos para se ler um texto e ficar irritado. Há separação do mundo da escola e do mundo da vida e misturá-los, dada a posição que ocupa, é uma prerrogativa não concedida ao aluno.
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É somente pela intervenção da professora que a sensibilidade da aluna ganha lugar e razão de existir no interior da sala de aula. Restrepo (2001), ao discutir o valor da ternura em nossa sociedade, afirma que o ensino e aprendizagem ainda são concebidos como algo que não deve ser invadido pelas singularidades dos envolvidos. E quando alguém rompe de algum modo com as estabilidades esperadas, “de imediato o tachamos de histérico ou esquizofrênico, enquanto consideramos normal aquele que se articula insensível a todos os automatismos” (p.27-28). O estranhamento, manifesto pela ironia com que respondem ao discurso da aluna, demonstra um sujeito aluno conhecedor de tais concepções. O termo “nervosinha” pode ser visto como variação da concepção de histérico que aponta Restrepo. Ou seja, por essa perspectiva, o próprio aluno passa a não aceitar posicionamentos que fujam a esse modo de tratar as manifestações sensíveis.
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Respostas a um tema sensível nas interações em sala de aula
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Não só a entonação sensível, mas temas ligados às sensibilidades, quando vindos de outros alunos, também são tratados como ações estranhas ao corpo da escola. Nas duas próximas seqüências, também produzidas em aulas do primeiro ano do Ensino Médio, novamente surgem discursos que não tem como objetivo expressar ou provocar uma reação afetiva em determinada situação de interação verbal, mas que são respostas ao que considero ser um tema de exposição de afetividades. A discussão se desenvolve em torno da leitura de textos produzidos sobre pessoas, objetos e ações que os alunos gostam ou não. Como no plano do sensível emergem as mais radicais diferenças e singularidades, a leitura dos textos fez com que cada um deixasse de ser parte de um conjunto que pode ser chamado de “turma”, “gente”, “pessoal” etc. E o aparecimento dessa diferença é então a principal razão para o estranhamento e recusas que marcam as negociações para que os textos sejam lidos. Vejamos:
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A1EM1A
[...]
165 P GEN:TE (.) quem vai começar lendo o texto que
166 escreveu// (.) é para ler o texto que vocês
167 escreveram sobre as coisas que vocês gostam ou as
168 que não gostam (.) que amam ou detestam (.) depois
169 vamos ver como fica um texto que fala de coisas
170 opostas/ (...) não acredito que ninguém fez o
171 texto//
172 A1 professo:ra/ não quero ler não (.) lê você o meu
173 texto
174 P o texto é para ser lido em voz alta por CADA UM DE
175 VOCÊS/
176 A2 isso mesmo/ você lê em voz alta ua:i
177 P gente/ vocês estão com vergonha do quê:://
178 A1 a::h professo:ra/ eu acho que não é legal falar
179 disso para todo mundo\=
180 A3 =por que você não leva os textos e lê em casa//
181 (.) aí só você vai ficar sabendo do que nós
182 gostamos e a gente não paga esse mico de ter que
183 ler para todo mundo/
184 P G você não quer começar//
185 A professora:: eu tenho vergonha de mostrar isso\
186 (.) lê você
187 A2 a::h professora/ essas coisas não dá para falar
188 assi:m
189 P e/ (.) dá para falar como então//
190 A4 a::h não sei não (.) eu não falo sobre isso\
191 A5 eu leio professora/((após a leitura))
192 P viu/ ela não teve vergonha de mostrar seus
193 sentimentos (.) isso não é algo que podemos fazer
194 sempre/ ((a professora termina aceitando a proposta dos alunos e
195 faz a leitura em voz alta de alguns textos, mas na seqüência ela volta a
196 insistir para que os alunos leiam))
197 A professora::: eu tenho verg[onha/
198 A [sou tímido professora
199 P tímido (.)[é::: tím[ido//
200 A [não é não professora::/ é
201 enrolão (.) conta outra (.)conta outra vai
202 (inaudível)
203 P o::h/ vamos combinar o seguinte/ (.) é::h eu não
204 vou obrigar ninguém a ler mas assim:/ (.) da
205 próxima vez quem fez o seu PRÓPRIO TEXTO vai ler 206 (inaudível)
[...]
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A recusa se baseia na vergonha (inicialmente atribuída pela professora) de abordar temas considerados pessoais no espaço da sala de aula. A emoção atribuída pela professora ao aluno é confirmada no enunciado (179 e 180) em que diz não ser legal falar do que gosta ou não para todo mundo, mostrando, com isso, percepção de que a intromissão do afetivo é algo que não tem espaço na sala de aula. Tal consciência produz duplo movimento entre os alunos: o dos que se recusam a fazer exposição de si e dos que não aceitam a efetivação da exposição. Isto é, há limites também para a escuta do sensível. Situado no interior dessa tensão, um aluno (180 a 183), por exemplo, reafirma a posição da professora como sujeito autorizado a ter acesso ou mesmo ler em voz alta o texto. Esta pode conhecer suas sensibilidades. Além disso, subjacente ao reconhecimento da autoridade está também a demanda para que não se alterem os rituais comuns à escola, que é o de ler o texto em casa e atribuir nota.
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A aula é concebida como o lugar da comunicação verbal distanciada e cujo objetivo é também produzir leituras e escritas distanciadas. O próprio aluno, ao não se dispor a ler, demonstra estranhamento diante da possibilidade de produzir um tipo de conhecimento prático, relacionado às ações cotidianas nas quais é impossível separar o sujeito conhecedor do objeto de conhecimento. A negação de que as afetividades sejam um tema de interesse do mundo da escola reforça e promove o poder do professor como o detentor de posições e saberes incontestáveis. Deste lugar ele pode manusear o texto/aluno, inclusive no que é da ordem do sensível.
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No prosseguimento da atividade, ainda considerando a seqüência anterior, quando surge a aluna que se dispõe a fazer a primeira leitura, a professora conclui: viu/ ela não teve vergonha de mostrar seus sentimentos (.) isso não é algo que podemos fazer sempre/. Ou seja, há o reconhecimento de que é um momento raro, porém isso não promove a estabilidade e aceitação das leituras. Ao contrário, os que se dispuseram a ler o texto foram seguidos por uma série de comentários marcados por tons irônicos, conforme surge na seqüência seguinte:
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A1EM1A
[...]
213 A1 eu fiz professora/ (.) e chamei de concha acústica
214 P bem alto (.) bem alto
215 A1 (...) não gost-(..) gost-\ (.) eu gosto de futebol
216 gosto de viajar gosto de verão gosto da [minha
217 P [cal::ma/
218 A2 que você falou//
219 P deixa ele continuar\
220 A1 gosto da minha família gosto de- de- (.) gosto de
221 ir na igreja mas não gosto de brigas de pessoas
222 falsas drogas quiabo\
223 AA ((risos da turma))
224 A2 quia::bo ou via::do//
225 P não gosto de que//
226 A1 de QUIA::BO/
227 P o:h vocês entenderam uma coisa mas é ou:tra/ mas
228 deixa eu ver o que você escreveu (..) gosto da
229 minha família gosto de ir na igreja mas não gosto
230 de brigas de pessoas falsas drogas quiabo (.)
231 Gosto de futebol gosto de viajar gosto da minha
232 mãe gosto da minha família gosto de ser feliz
233 gosto de viver porque amo a vida mas não gosto de:
234 brigas pessoas falsas drogas bebida alcoólica
235 quiabo jiló e azeitona/
236 AA ((risos))
237 P não é VIA:::DO/ (..) é QUIA:::BO VIU GEN:TE/
238 A1 não falei que é [quia:::bo/
239 A2 [eu entendi via:::do/
240 P jiló azeitona bebidas [alcoólicas
241 A3 [a::h não gosta de bebidas
242 alcoólicas//
243 AA ((risos))
244 A4 a:::h/ se tivesse uma máquina da mentira aí
245 P R/ fica quieto/
246 A5 32/
[...]
260 P vamos para ela gente/
261 A ai gente/ vô fazer não (.) o:h professora/ pelo a
262 amor de deus (inaudível)
263 P vai (.) eu vou dar negativo hein/ (.)vamos lá/
264 A então tá bom tá bom
265 P tá bom tá bom
266 A vai eu vou ler agora (..) os dois lados\ (.) de
267 um lado minhas alegrias os sonhos os sorrisos a
268 chuva a família as lembranças amizade carinho
269 afeto os amores e o pôr-do-sol (.) do outro minhas
270 tristezas minha solidão meu choro o escuro minha
271 saudade minha desilusão à noite minha esperança a
272 minha morte
273 A misericórdia/
264 A a morte/ (.) por que falar disso//=
265 A =porque ele é doido/
266 P gen::te respeita o colega ele está falando do que
267 ele sente (.) isso é diferente para cada um/
268 (inaudível)
[...]
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Duas questões sobressaem nessa etapa da aula: o sensível é motivo de ridículo (213 a 246), o sensível quando tratado na escola termina não escapando à formalização da nota (263). A mesma professora que reconhece ser esse um momento raro é a que também ameaça com nota negativa caso a leitura não seja realizada. Nesse ponto demonstra que, de fato, trata-se de mais uma atividade com o objetivo de cumprir o cronograma de avaliação, o que corrobora com a idéia inicial dos alunos de que os textos poderiam ser lidos por ela em casa. Não havia outra finalidade que justificasse paga[r] esse mico de ter que ler para todo mundo/.
A concepção de que a exposição do sensível cria uma imagem ridícula materializa-se em outro discurso: o de que quem fala de afetividade é homossexual (veja-se o trocadilho quia::bo ou via::do//)ou louco (=porque ele é doido/). A exposição ao ridículo suscita o fantasma da efeminação, da loucura e da histeria. A menina é qualificada de “nervosinha”, já o menino é “louco” ou homossexual. A sensibilidade está diretamente ligada a corpos marginais. O aluno refuta a possibilidade de realizar a leitura do seu texto não somente pela vergonha de expor um tema sensível, mas porque luta contra a possibilidade de ser enquadrado em um estereótipo ou outro.
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Nesse sentido, os próprios alunos produzem relações de controles entre si, pois ancorados no fato de a escola, de modo geral, exigir uniformidades das ações, não reconhecem ou não aceitam práticas que façam vir à tona as singularidades marcadas por colorações afetivas. Como já dito, as sensibilidades quebram as uniformidades e o controle se materializa pela criação de exclusões (o louco, o homossexual, a nervosinha). Tais classificações apresentam filiações a um sistema de controles bem mais amplo que remete a significações e classificações históricas do elemento sensível. Existem os lugares e rituais sociais autorizados para expressar as emoções. Le Breton (2004) cita como exemplo o divã do psicanalista. Na busca da cura, o sujeito pode liberar, por meio da fala, seus sentimentos. Existem outros dispositivos que também encorajam a emergência das afetividades, tais como as manifestações políticas, as representações teatrais, as terapias corporais etc. Sem esquecer a opinião bastante generalizada de que o lugar legítimo das afetividades é o mundo das artes e da literatura. Fora dessas circunscrições, a emergência de temas, tons, discursos que produzem sentidos afetivos suscita a idéia de desvio, de avaliação equivocada. A escola não está inclusa em nenhum desses espaços. Nela é o lugar de manifestação da razão ou da paixão intelectualizada. Tanto que, quando o aluno aprender a falar de sua paixão pelo objeto de conhecimento (assim como fazem os professores), já não sofrerá mais as sanções de seus interlocutores.
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Da conversa com Bakhtin, o que dizer sobre essas pequenas intolerâncias?
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As ações do sujeito são atos de conhecimento que envolvem o ser no mundo e, consequentemente, a construção de compreensões e teorização são baseadas nas vivências e valoração que ganham a forma de atos estéticos. Bakhtin une esses vários processos para explicar que a condição humana não é um direito natural, mas resultado do fato de o sujeito ser lançado num mundo carregado de sentidos (signos) e ainda ter de responder pelas formas como age nesse mundo. Assim, para dar conta de conviver com a alteridade, o sujeito não pode abrir mão da razão (das interpretações e teorizações), mas também não pode abrir mão dos afetos (que resultam numa multiplicidade de forma de perceber o mundo). O sensível abre caminho para a singularidade, para a construção do sentido novo, para a recriação. Isso nos permite dizer que o humano para Bakhtin é um todo que, ao agir no mundo, não responde somente pelas vias da razão ou do afeto, mas constrói respostas que envolvem esses dois elementos. Para tanto, é detentor de um corpo que, para ser um todo, engloba a mente. O corpo aqui não é a parte inferior, é esse todo que permite o agir ético e estético (SOBRAL 2005).
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Diante dessa concepção, a emergência dos tons, temas e ações afetivas em sala de aula e, sobretudo, o tipo de acolhida que lhe é dispensada põe-nos outra (e não nova!) agenda de preocupações: a que trata dos atos éticos derivados dessas ações. Os discursos de cunho afetivo ou que produzem sentidos afetivos são atos orientadores e organizadores do ensino-aprendizagem. Por meio dos atos materializados em respostas de aceitação ou refutação, os alunos, por exemplo, demonstram modos de convivência com a alteridade. Definem modos de ser, de sentir e de linguajar para si e para o outro. O aluno que interdita a entonação sensível ou refuta a proposta de realizar a leitura de texto porque trata de um tema ligado ao mundo dos afetos, de fato, age baseado em parâmetros racionais. A aceitação-ou-não desse discurso nos espaços educacionais pode ser entendida como formas pelas quais esses sujeitos já aprenderam a definir como deve ser a presença no mundo da escola. Ou, especificamente, como devem se portar quando ocupam a posição de sujeito de saber.
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Entretanto, as ações discursivas que demonstram ou produzem sentidos afetivos são exposição de si que ajudam a demarcar diferenças muito próprias. A aluna que, ao falar dos problemas relacionados ao meio ambiente, demonstra indignação, por meio da mudança da entonação, deixa escapar marcas de si que a diferenciam dos demais. São marcas nascidas dos processos de subjetivação. A entonação reforça a veracidade do enunciado, pois é dada ao interlocutor como ponto de partida para compreender o que lhe está sendo dito, personificando, portanto, o enunciado. É algo que não se reduz ao movimento da voz, ainda que a englobe, mas é o lugar da memória, dos tons que cada sujeito passa a propor para si com base na imagem social do lugar que ocupa. A entonação reflete a relação do sujeito com o meio social ao qual pertence.
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Diante disso, se assumimos a complexidade constitutiva do sujeito conforme postulada nas concepções bakhtininas, as pequenas intolerâncias com o que é singular não podem ser normalizadas. O que é próprio de cada sujeito não pode ser tratado como o inaceitável, como a diferença que precisa ser enquadrada, organizada dentro de uma ordem única de funcionamento. O aluno que refuta o dizer do outro porque percebe marcas de uma entonação afetiva, sensível ao tema do discurso, não pode sair dessa mesma escola carregando as mesmas concepções. Em todas as situações, fica posta para o professor a exigência de que intervenha. E a intervenção necessariamente, se continuarmos com a lupa bakhitiniana, não precisa ser com respostas prontas, que ditem esta ou aquela forma de ser ou de sentir. As ações afetivas e/ou as formas de acolhimento destas exigem que o professor apresente questionamentos que levem os alunos a refletirem sobre os significados de seus atos. E a herança cultural é importante não para lembrá-lo daquilo que não é, mas, sim, para ajudar a ambos construírem compreensões sobre si mesmos e sobre o outro. Sobre a diferença que cada um carrega em razão de sua história de interlocuções.
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Da criança que chega às fases iniciais de escolarização, passando pelo adolescente que está no Ensino Médio, chegando ao jovem que adentra a universidade, vimos sujeitos que dialogam com o seu tempo. Nesse diálogo, transformam a sala de aula em espaço de ações centradas em suas múltiplas experiências, inclusive as afetivas. Em síntese, o racionalismo que serve de suporte para se conceber a organização da aula, das relações de aprendizagem cria dificuldades para construir diálogos com tudo o que é singular. Aprender é sempre aprender com os outros; pensar não se realiza isoladamente do corpo e traz os tons, as compreensões outras para o espaço da sala de aula. Alunos e professores são, nessas condições, postos constantemente diante de atos que são próprios de cada sujeito.
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Em suma, o ato de ensinar e aprender exige que não se perca de vista o fato de na escola há “gente formando-se, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas porque gente, é capaz de negar os valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir” (FREIRE, 1996, p. 163). Educar dessa perspectiva é uma ação responsiva. No ato responsável, o sujeito responde por aquilo que enuncia em termos de compreensão das próprias ações e das que são vindas do seu interlocutor. Ser responsivo face aos nossos atos e aos do outro em um contexto real e concreto, eis o que torna possível a assunção de posicionamentos éticos, não-indiferentes às significações que o rosto do outro nos impõe cotidianamente. A responsividade assumida a partir dessas significações impede a dominação ou a redução e fixação do outro em lugares pré-definidos.
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Ser responsivo significa ordenar as ações daquele que também me ordena, não para dominá-lo, submetê-lo, mas porque “O encontro com outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem duvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscência” (LÉVINAS, 2005, p.143). Assim, pensar a sala de aula como lócus de ações responsivas e éticas traz a exigência de que não deixemos os desencantos gerados pelas contradições contemporâneas justificarem ações que reduzam o aluno à condição de sujeito preso em uma estrutura histórica sem saídas. Para aquele que aprende, o futuro não está determinado, não comporta acabamentos irreversíveis. E se não há determinações, as experiências são referências e não parâmetros que devem ser rigidamente observados.
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Geraldi (2004), dialogando com Bakhtin, conclui que, para abrir espaços para as singularidades, o caminho a percorrer é aquele que nos permite aprender a construir relações de escutas atentas da alteridade. É o que nos permite também escutar o estranhamento, pois “as ações do outro, os dizeres do outro, prenhes de sua cultura, quando confrontados com objetos e fenômenos que nos escondem as valorações que nós mesmos lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos enxergar” (p. 233). Abrir espaços para esse tipo de aprendizagem dialógica é reconhecer que cada aluno possui uma constitutividade histórica que o faz transitar pelo universo escolar de modo diferenciado, o que, conseqüentemente, faz nascerem relações (afetivas ou não) diferenciadas com os objetos de conhecimento, com os interlocutores e com o próprio contexto.
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Referências bibliográficas
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__________, (1916) Para uma filosofia do ato. Trad. inédita de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza de Toward a Philsosophy Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
____________. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
_____________. Discurso na vida e discurso na arte (1926). Trad. Inédita de Cristovão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art”, publicado como apêndice in: Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist critique. New York: Academic Press, 1976.
DAHLET, V. A entonação no dialogismo bakhtiniano. In Bakhtin dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
DUARTE JR. J. F. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba: Criar Edições, 2003.
GERALDI, J. W.; BERNARD, F.; BENITES, M. Transgressões convergentes: Vigotski, Bakhtin e Bateson. Campinas: Mercado de Letras, 2007.
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LA TAILLE, E. H. de. Ação moral e estereótipos culturais. In Afetividades na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Sumus editorial, 2003.
LE BRETON, D. Les passions ordinaires: anthropologie des émotions. Paris: Payot, 2004.
LÉVINAS, E.: Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1991.
_____________. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005.
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SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In Bakhtin: Conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005.
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