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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

A premissa maior de Bakhtin

Luciano Novaes Vidon
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Ao afirmar, em 1926, auge do Estruturalismo Europeu e Americano e do Formalismo Russo, que todo enunciado verbal é não-auto suficiente, Voloshinov/Bakhtin apontam para os estudos da linguagem, lingüísticos e literários, a impossibilidade de redução teórico-metodológica da análise à suposta imanência formal do enunciado. Isso terá implicações profundas no campo epistemológico das ciências humanas ao longo do século XX e neste início de século XXI.
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Naquele contexto, provavelmente, tal afirmação deve ter sido tratada como completamente descabida. E subversiva, já que poderia colocar em questão a ‘completude’, o ‘acabamento’ presente nas visões epistemológicas de então, na sociologia, na psicologia, na lingüística e na literatura - respectivamente o materialismo histórico, principalmente na leitura marxista de Lênin, o freudismo, o estruturalismo saussureano e o formalismo russo. Qualquer idéia de ‘incompletude’, naquele contexto, seria perigosa, pois poderia lançar dúvidas sobre todas as certezas, teóricas e metodológicas, daquele horizonte filosófico.
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Por outro lado, a obra de Bakhtin (e do círculo), suas principais concepções e categorias, é inacabada, por princípio mesmo. Daí, talvez, a revisão do texto sobre Dostoievsky, a ocultação de trabalhos e de sua própria autoria, os ensaios não concluídos.
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Parece que a própria vida de Mikhail Mikhailovich Bakhtin, conforme é relatada a Duvakin (BAKHTIN E DUVAKIN, 2008), tenha sido uma série de eventos inconclusos. Bakhtin estudou em pelo menos três universidades, foi exilado, viveu na clandestinidade, residindo, por vezes, na casa de amigos, passou por doenças graves, perdeu boa parte da família, não teve filhos, não se identificou com o regime stalinista, enfim, a impressão que se tem é que ele não conseguiu concluir sua obra. Sua vida parece refletir o seu próprio princípio da inconclusibilidade humana.
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E cabe a nós, seus leitores, em sentido amplo, tomar sua palavra e propor acabamentos para suas idéias; acabamentos sempre inconclusos, diga-se de passagem.
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A teoria bakhtiniana, enfim, é como sua concepção de Enunciado e de Enunciação (de discurso, numa outra perspectiva). Isso pode ser ilustrado quando se compara o Enunciado ao Entimema, em “Discurso na Vida e Discurso na Arte” (VOLOSHINOV, 1976). O Entimema, segundo a Retórica Clássica, é um tipo de silogismo incompleto, talvez o mais usado. Nele, uma das partes é ocultada e, assim, presumida, subentendida. É o que acontece, por exemplo, em um enunciado como “Sob nova direção”, em uma faixa na fachada de algum estabelecimento comercial. Do ponto de vista retórico, trata-se de um silogismo do tipo entimemático: o interlocutor presume que o estabelecimento comercial passou por mudanças e, por isso, poderá melhorar. O mesmo pode ser dito de um restaurante que afirma que sua comida é “caseira”. Essa palavra, caseira, pretende-se com um valor positivo, de comida familiar, que não é feita para muitas pessoas, que é feita à maneira tradicional etc. Em ambos os casos, os enunciados pressupõem um complemento que não está no enunciado em si, mas na situação extra-verbal de interação. E é justamente esse complemento que pode provocar o efeito de sentido desejado pelo locutor; nos casos ilustrados, convencer o cliente, real ou virtual, a continuar, voltar ou começar a utilizar aquele estabelecimento.
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Vale a pena ressaltar, nesse ponto, a concepção bakhtiniana de Enunciado também presente no capítulo 7 de Marxismo e filosofia da linguagem, publicado em 1929, também assinado por Voloshinov. Nesse capítulo, trata-se do problema da significação na língua. Coerentemente com o ponto de vista já apresentado em 26, a análise não pode ser puramente semântica – ou seja, restrita a um suposto componente estrutural da língua; é preciso levar em conta o discurso. Conceitualmente, aqui, como em outras obras do círculo bakhtiniano, não ficam tão claras as distinções teóricas entre discurso e enunciação. A meu ver, mais do que problemas de tradução ou mesmo de autoria, trata-se de uma questão epistemológica. O lugar epistemológico, isto é, teórico e metodológico, de onde fala Bakhtin tem um rigor científico “flexível”, o que não significa “volúvel”. Bakhtin e seus colaboradores não são estruturalistas nem formalistas.
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Voltando à noção de enunciado, segundo Voloshinov/Bakhtin (1992), trata-se de uma determinada forma lingüística (por exemplo, o enunciado ‘Que horas são?’) que se realiza no todo de uma dada enunciação, isto é, o enunciado é apenas um elemento dentre outros da micro-história da enunciação. O discurso, por sua vez, é essa atividade de produção enunciativa, em que um sujeito se dirige a outro no âmbito de um horizonte temporal, espacial e temático.
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A análise bakhtiniana, portanto, não se reduz a condições apenas institucionalizadas de produção discursiva. A teoria talvez permita perguntar de forma mais ‘ampliada’ sobre o horizonte dos discursos na sociedade. A proposta bakhtiniana aponta para uma análise do todo enunciativo/discursivo, o que, obviamente, dá espaço à transdisciplinaridade, o que vai além da interdisciplinaridade, ao colocar em questão à própria noção de disciplina. Em Bakhtin, a condição (se é que há) é pertencer ao campo das ciências humanas, e, com isso, ter o enunciado (texto) como objeto de reflexão.
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Assim como esses enunciados – “Sob nova direção”, “Comida caseira”, “Que hora são?” – têm suas incompletudes, e precisam do Outro para fazer sentido e constituir um elo na cadeia discursiva, a teoria bakhtiniana da linguagem tornou-se, para nós, um enunciado por se completar, um dixi que retomamos, reavaliamos, problematizamos.
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Seria ir completamente contra a teoria tomá-la como acabada, constituída. Isso é impossível por vários aspectos, entre os quais:
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- Bakhtin e os membros do círculo não estavam preocupados em constituir uma disciplina, como foi, a princípio, o propósito, por exemplo, de Saussure ou mesmo de Pêcheux;
- A reflexão filosófica, seja sobre a literatura, seja sobre a linguagem como um todo, sempre foi o maior objetivo de Bakhtin e do seu grupo;
- Muitos dos textos, especialmente os de Bakhtin, foram trabalhados como ensaios inconclusos.
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Ainda hoje surpreende à ideologia dominante uma teoria que prima pelo inacabamento enunciativo. Basta ver na mídia impressa, televisiva ou mesmo eletrônica o domínio de programas de auto-ajuda em relação ao uso, e conseqüentemente ao ensino, da Língua Portuguesa. O sucesso dessa ideologia pode ser observado, entre outros exemplos, na mudança de uso em relação à expressão “risco de vida”. Alegando problemas de lógica, os “paladinos da norma culta” proscreveram a forma tão comum ao cotidiano de todos os falantes e escreventes de Língua Portuguesa e prescreveram o uso de “risco de morte”. Ao que parece, “risco de vida” está com os dias contados, ou, caso queiram, correndo sérios riscos de morte.
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Referências Bibliográficas
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BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem [1929]. São Paulo: Hucitec, 1992.
BAKHTIN, M. e DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo – Conversas de 1973 com Viktor Duvakin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica) [1926]. Tradução feita por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza para fins acadêmicos, com base na tradução inglesa Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics, publicada em V. N. Voloshinov, Freudism, New York. (Academic Press, 1976).

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