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INTERAÇÃO - A Contribuição dos conceitos bakhtinianos para o estudo das afasias

Título inteiro: INTERAÇÃO: SOLUÇÃO DIALÉTICA PARA O ESTUDO DAS RELAÇÕES ENTRE A LÍNGUA E OS ENUNCIADOS CONCRETOS - A CONTRIBUIÇÃO DOS CONCEITOS BAKHTINIANOS PARA OS ESTUDOS DAS AFASIAS
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Rosana do Carmo Novaes Pinto (UNICAMP)
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I. Introdução: A contribuição de conceitos bakhtinianos para o estudo discursivo de fenômenos afásiológicos[1]
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Segundo Morato (2004:312), “a noção de interação, mesmo que concebida de maneira vaga e imprecisa, tem sido peça importante para a compreensão das contingências, vicissitudes ou variações do debate internalismo x externalismo no campo da Lingüística, ajudando a estabelecer epistemologicamente as relações entre linguagem e exterioridade”. Das múltiplas possibilidades teóricas para o tratamento do tema, explorados pela autora, recorro neste texto a alguns dos conceitos desenvolvidos por Bakhtin, que têm servido com propriedade para as análises dos episódios dialógicos de afásicos. Os dados obtidos em situações interativas têm permitido compreender melhor as dificuldades dos sujeitos, bem como as estratégias discursivas das quais lançam mão para enfrentar a afasia, contribuindo para a construção de uma neurolingüística enunciativo-discursiva.
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Brait (2005) aponta para o fato de que, nos últimos anos, Bakhtin e seu Círculo têm merecido grande atenção de diversas áreas do conhecimento, fato “constatado nas inúmeras traduções, nos incontáveis ensaios interpretativos e, especialmente, na circulação de noções, categorias, conceitos advindos diretamente do pensamento bakhtiniano”. Em trabalho anterior (Brait, 1994), a autora atribui ao conhecimento progressivo dos diferentes trabalhos do autor, escritos desde o final da década de 10, até meados da década de 70 (segundo ela, adquirido em doses homeopáticas no Brasil), o interesse e a conseqüente diversificação de pontos de vista desses outros campos de conhecimento em especial na Lingüística, quando ampliou seu objeto de estudo na direção do discurso.

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Um dos fatores que o distinguem de outros filósofos que abordaram as mesmas questões é, segundo Clark e Holquist (1998), o fato de sua filosofia de linguagem aplicar-se não só à lingüística ou à estilística, mas também à maioria das principais preocupações da vida cotidiana, sua ênfase na linguagem como prática cognitiva e social. Essa é uma das características em seu trabalho que me fazem pensar no encontro de suas idéias com a formulação teórico-metodológica da Neurolingüística que desenvolvemos no IEL, UNICAMP.

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A característica fundamental do pensamento de Bakhtin, ainda segundo os autores, é a tentativa de compreender o que torna possível o diálogo, não no sentido óbvio de conversação entre duas pessoas, mas por ser concebido “como o extensivo conjunto de condições que são imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não são exauridas em semelhante intercâmbio. Em última análise, diálogo significa comunicação entre diferenças simultâneas” (ibid: 36).

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Um dos caminhos que levaram diversos psicólogos, educadores e lingüistas aos trabalhos de Bakhtin foi o da intertextualidade que o liga a Vygotsky e a outros autores que escolhemos como “companheiros de viagem”. No próximo item procuro sintetizar alguns dos conceitos que têm guiado minhas análises de episódios dialógicos entre sujeitos afásicos e não-afásicos, tanto para o desenvolvimento de um trabalho teórico acerca de processamento lingüístico, quanto para a reflexão acerca da metodologia de avaliação e de condutas terapêuticas.
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II. A crítica de Bakhtin ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista e a interação verbal como superação dialética dessas posições dicotômicas
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Segundo Stan (1992:29), é em Marxismo e Filosofia da Linguagem, cujo original data de 1929, obra atribuída a Voloshinov, que pela primeira vez Bakhtin se pronuncia a respeito da visão de linguagem dominante na época. O livro deve ser visto, afirma o autor, no contexto da divulgação, na União Soviética dos anos 20, das idéias do lingüista suiço Ferdinand de Saussure. Bakhtin criticou a Lingüística do início do século XX, que relegou a função comunicativa da linguagem a um segundo plano, ao eleger a língua e não a fala como seu objeto de estudo. A essa corrente denominou objetivismo abstrato de Saussure[2]. Criticou também o chamado subjetivismo idealista, que via o fenômeno lingüístico como um ato de criação individual. Tanto um como outro, afirma o autor, impedem uma compreensão totalizante da linguagem. Propõe, dessa forma, a interação verbal como superação dialética dessas posições dicotômicas. Para ele, o ato de fala e seu produto, a enunciação, não podem ser explicados somente a partir das condições do sujeito falante, mas também não podem dele prescindir.

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Tendo a enunciação uma natureza social, não se pode compreendê-la fora de uma situação concreta. Se essa condição não for considerada, diz Bakhtin, então trata-se de ficção científica. Em várias ocasiões, em especial em Os Gêneros do Discurso, escrito por volta de 1952, o autor utiliza esse termo para referir-se às reduções teóricas que se fazem sobre a linguagem, especialmente para criticar a divisão do enunciado (unidade real) em unidades da língua como palavras e orações. Critica também os modelos que vêem a comunicação como um ato passivo entre um emissor e um receptor. Neles “a linguagem é considerada do ponto de vista do locutor como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os outros parceiros da comunicação verbal” (ibid: 289). Entretanto, afirma que não é como abstração que os teóricos têm proposto esses modelos.

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A seguir, destaco alguns dos conceitos teóricos elaborados por Bakhtin que contribuem para o desenvolvimento de uma abordagem enunciativo-discursiva dos fenômenos afasiológicos.

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III. Conceitos bakhtinianos que contribuem para a análise das interações entre sujeitos afásicos: dialogia, enunciado, acabamento e querer-dizer
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O dialogismo é uma das categorias básicas do pensamento de Bakhtin, um elemento chave, como costumam se referir seus estudiosos. Todo enunciado é dialógico e é por meio das interações sociais que os sujeitos se constituem, ao internalizarem os signos exteriores. Esse conceito permeia todos os outros desenvolvidos pelo autor, como será apresentado a seguir, embora de maneira bastante sintética. Bakhtin (ibid.: 294) afirma que é no diálogo que a alternância dos sujeitos falantes é observada de modo mais direto e evidente - “o diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal”. Segundo o autor, é o conceito de enunciado aquele que supera os problemas que são próprios das unidades desvinculadas da natureza real da linguagem. Em suas palavras:
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A indeterminação e a confusão terminológicas acerca de um ponto metodológico tão central no pensamento lingüístico resultam de um menosprezo total pelo que é a unidade real da comunicação verbal: o enunciado. A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. (...)

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As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicação verbal, são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado - desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico - comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa do outro). O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. (ibid.:293, grifos meus)
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Vimos, acima, que qualquer réplica, mesmo monolexemática, constitui um enunciado e esse é compreendido no interior do processo dialógico. Sendo assim, esse conceito pode ser aplicado aos dados dos sujeitos afásicos, mesmo aqueles com expressão bastante reduzida, que nenhum outro modelo pode dar conta, uma vez que muitas vezes não podem ser subdivididos em unidades convencionais da língua – não constituem palavras. Assim, temos, por exemplo, os enunciados de CF: [esaw esaw esew] e os enunciados de EF: [ow: ow], cuja significação e acabamento só podem ser dados no interior do processo dialógico. Mesmo quando a produção é praticamente ininteligível, em casos considerados severos, como na jargonafasia, em que muitas vezes torna-se impossível até mesmo delimitar unidades gramaticais, como palavras ou sentenças, podemos nos referir à produção do sujeito como sendo um enunciado.

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Considerar produções como as acima como enunciados significa reconhecer seus papéis no processo de compreensão ativo-responsiva. Dessa forma, os dados não revelam apenas aquilo que falta, do ponto de vista da estrutura-alvo, requisitada pelos testes, fora de situações concretas de uso. Essa análise pode modificar uma concepção tradicional a respeito de uma determinada “categoria clínica” e provocar uma outra maneira de ver (nos termos de Foucault) os sintomas tradicionalmente descritos na literatura. Ao contrário de uma concepção que toma o sintoma como revelador de uma competência comprometida, perdida em função da lesão cerebral, os enunciados dos sujeitos passam a revelar como eles, apesar da lesão, trabalham sobre os recursos da língua ainda disponíveis na busca da significação, na tentativa de realizarem seu intuito discursivo, utilizando-se aqui um dos conceitos bakhtinianos.

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A fronteira do enunciado é definida, pelo autor, em função da alternância dos sujeitos. Enfatiza que o acabamento é, de certo modo, “a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas”. Para ele, “cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico, que expressa a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva”. No dado que será apresentado mais adiante é possível observar a relevância desses conceitos que, embora não tenham sido elaborados para tratar da comunicação verbal em casos de patologia, permitem a abordagem dos dados de linguagem de sujeitos afásicos em uma abordagem que não vê como erro tudo aquilo que ainda resta em seus enunciados. Bakhtin diz que o enunciado é “marcado pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores”. Afirma que é por isso que os parceiros diretamente implicados numa comunicação, “conhecedores da situação e dos enunciados anteriores, captam com facilidade e prontidão o intuito discursivo, o querer-dizer do locutor, e, às primeiras palavras do discurso, percebem o todo de um enunciado, em processo de desenvolvimento”. (ibid: 301).

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Nos critérios para estabelecer a noção de acabamento, encontra-se outro conceito bakhtiniano que adoto para a análise – o conceito de querer-dizer. Mesmo os sujeitos com grau leve ou moderado de afasia freqüentemente reportam suas dificuldades para dizer tudo o que querem ou precisam. Os relatos dos sujeitos são importantes para compreendermos a natureza do impacto que a afasia trouxe para sua atividade lingüística e para sua vida. Muitas vezes, nos casos mais graves, o tratamento exaustivo do objeto do sentido, termo utilizado por Bakhtin, torna-se impossível.

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No caso dos afásicos, podemos dizer que muitas vezes damos aos seus enunciados um acabamento, na tentativa de ajudá-los a chegar o mais próximo possível de seu querer-dizer. Não raro, entretanto, precipitamos nesse acabamento, como nos mostram vários dados de interação com os sujeitos afásicos. Esse conceito nos coloca novamente diante da questão da relação entre o normal e o patológico. Qual o limite da normalidade para afirmarmos que os afásicos se distinguem dos não-afásicos com relação ao querer dizer? Acredito que seja interessante salientar o que Bakhtin afirma a respeito de uma certa regularidade que permite que os parceiros em uma comunicação captem com facilidade e prontidão o intuito discursivo, o querer-dizer do locutor e, “às primeiras palavras do discurso, percebem o todo de um enunciado em processo de desenvolvimento”. Isso só pode ocorrer, segundo o autor, por haver “formas estáveis do gênero do enunciado”. O querer-dizer se realiza sobre a escolha de um gênero do discurso, que existe sobretudo nas esferas muito diversificadas da comunicação verbal oral da vida cotidiana, inclusive em suas áreas familiares e íntimas. Esses gêneros não desprezam, contudo, os recursos lingüísticos que de uma certa forma estruturam os enunciados. O autor postula um equilíbrio entre o valor que têm as formas estruturantes da língua, inclusive suas organizações lexicais e sintáticas e o fato de que essas unidades e regras não foram aprendidas fora da experiência com a própria língua. Clark & Holquist (1998:37) dizem que Bakhtin não exclui a sistematicidade que caracteriza a lingüística pós-saussuriana, mas procura compreender a complexidade que o sistema tem em relação ao enunciado. Trata-se, segundo os autores, de uma sistematicidade diferente, porém não menos ordenada, de “compreender como as características repetíveis, formais, da linguagem são convertidas nos significados não menos formais mas não repetíveis das proferições reais”. Isso nos faz pensar que os modelos teóricos elaborados para explicar a linguagem e seu funcionamento precisam considerar esse equilíbrio.

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Embora tratando mais especificamente da afirmação de que “toda ação humana procede de interação”, Morato (2004:313) assim resume as abordagens cujo objeto de estudo é a língua, o sistema:
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(...) sempre que em Lingüística negligenciamos ou simplesmente deixamos de considerar que existe língua porque existem falantes que os falantes existem em função das ações que os instam de várias maneiras e em diferentes níveis de exigência a permanecer em relação a alguma coisa e na relação com alguma coisa, a análise sobre a linguagem falha de alguma forma, isto é, se torna necessariamente parcial ou incompleta.
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V. Os estudos neurolingüísticos enunciativo-discursivos e a interação verbal como lugar privilegiado dos enunciados de sujeitos afásicos
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Vários foram os trabalhos desenvolvidos na área de Neurolingüística, desde os primeiros textos de Coudry (1988), a apontarem o fato de que a grande maioria dos estudos realizados na área continua limitando as análises dos fenômenos afasiológicos à avaliação do comprometimento da língua. Basta analisar os manuais clássicos e as baterias de avaliação, bem como os recentes trabalhos que se ocupam de questões como processamento lingüístico, dentre outras, para certificar-se que unidades do sistema, especialmente as palavras e orações ou sentenças são as que servem como parâmetro para a descrição e a análise das diversas formas de afasia, geralmente para corroborar as hipóteses localizacionistas. Prevalece, portanto, nos estudos neuropsicológicos, nas unidades que servem de base para as análises lingüísticas, aquelas que Bakhtin considera como sendo fictícias. São abstrações que não correspondem, de forma alguma, à natureza real da comunicação. A linguagem não pode ser concebida como um sistema estável, fechado, que a consciência individual já encontra pronto. Os indivíduos operam uma seleção nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais, realizam um trabalho, como enfatizam Possenti (1988) e Geraldi (1990/97). As unidades da língua são indeterminadas, vagas, confusas, porque resultam de um menosprezo pela natureza do enunciado.

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O dado abaixo apresentado, um episódio dialógico de julho de 2003, é tomado aqui como um exemplo que ilustra não só o tipo de trabalho realizado com/sobre a linguagem, nas sessões do CCA – Centro de Convivência de Afásicos, mas como episódio que permite observar as principais dificuldades de sujeitos com diferentes formas de afasias e ainda como eles trabalham sobre os recursos da língua para produzirem seus enunciados. Quando esbarram em dificuldades de acesso lexical ou da estruturação sintática, apóiam-se nos enunciados de outros sujeitos para expressarem seu querer-dizer. A língua oral, como afirma Castilho (1998), tem como característica o co-processamento sintático-semântico entre os interlocutores. Ao tratar dos dados de aquisição da linguagem, no interior de uma proposta sócio-interacionista da aquisição da linguagem, De Lemos (1982,1986) refere-se a processos recorrentes, que também são observados na linguagem dos sujeitos afásicos, mais especificamente os processos de especularidade e de complementaridade. Vejamos, primeiramente, um dado de episódio dialógico[3] e, posteriormente, como os enunciados dos sujeitos revelam esses processos. O contexto da produção do dado é o da primeira reunião do grupo do CCA – Centro de Convivência de afásicos – depois das férias de Julho. Os sujeitos – afásicos e não-afásicos - iniciam a conversa falando das férias e da viagem da pesquisadora EM. SP aponta para a bandeira do Canadá, que estava sobre a mesa.
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1. SP: Canadá
2. HM: é... ela foi ao Canadá... e a bandeira do Canadá... é...
3. (...)
4. //EM começa a contar sobre sua viagem, para um congresso, em Julho. //
5. EM: aí no dia onze eu viajei... fui fui pra um congresso... em Toronto
6. (...)
7. SP: tudo tudo... lá... tem é... o Toronto é bonito né... cascata... isso
8. EM: Niagara... Niagara... o senhor já foi pro Canadá?
[JM: não...
9. SP: não não não
10. EM: é lindo... eu vou trazer as fotos na semana que vem
[SI: é?
[JM: eu... eu... eu fui também
11. EM: ah senhor foi?
12. JM: foi
13. EM: opa... quando o senhor foi?
14. JM: ah faz uns... três anos mais ou menos
15. EM: é mesmo?
16. JM: foi em Montreal... Toronto
17. EM: foi à Quebec?
18. JM: é... Quebec... é algumas algumas cidades... não me lembro qual
19. EM: e do que é que o senhor gostou mais assim? Montreal Quebec...
20. JM: é eu fui pra.. eu fui em tempo de frio...
21. EM: hum
22. HM: e lá é frio
23. JM: não era frio... mas é mais ou menos novembro...
24. HM: comecinho
25. JM: novembro
26. EM: é outono... que já é bem frio
[JM: é... mas...
27. JM: é... e:... gostei do... todos... é:... todos lá... é...né primavera... é... começo de primavera... não...
28. [EM: pra nós... é outono lá
29. JM: é... exatamente
30. (...)
31. JM: mas a... eu prefiro... prefiro... o... Canadá do que Estados Unidos
32. [SP: lá... sempre...
33. EM: prefere o país todo... é... é interessante... né porque enfim...
34. SP: o... é o... visto lá o o... tinha o Canadá
35. EM: tá
36. [JM: tinha
37. SP: tudo mas depois...
38. EM: o senhor tinha visto e acabou não indo
39. SP: é
40. EM: ah ta... ah sim... tem visto pra ir
[JM: tem uma... tem...
41. HM: tem os parques bonitos né
42. JM: submarino e do...
43. EM: ah sim... assim... o senhor tá falando dos centros comerciais que são... subterrâneos? É isso?
[JM: tem? [JM: é... mas tem... tem o... no no... é... mas... tem em Toronto?
44. EM: tem em Toronto também
45. JM: ah ta bom
46. EM: e tem em Montreal
47. JM: eu também não não não lembro... não lembro mais
48. EM: olha SI... ele ta falando né... esse... Canadá... que tem... é um lugar hiper hiper frio... ele tem shoping
[SI: ah tá [SI: óia
49. centers... centros comerciais... tudo subterrâneo... as pessoas nem precisam vir à luz é.. do dia... tudo... tudo
[SI: óia... ixi
50. debaixo da terra... como se fosse assim o metrô tal né.. claro que não é a cidade toda que é debaixo da terra...
[SI: óia [SI: hum
51. são os centros comerciais... é... mas é... é impressionante isso
52. JM: é
53. (...)
54. EM: aí tem Montreal... aí se fala inglês preferencialmente... porque o país se diz bilíngüe multilíngüe
[JM: em Quebec se fala só francês
55. EM: se fala francês... só francês... e Montreal já...
[SP: Quebec [JM: é
56. HM: mescla
57. EM: já mescla
58. JM: e de... interessante que quando fala fala... ah... inglês
59. EM: sei
60. JM: ah... em Quebec eles responde... em... ((ri))
61. EM: em francês
62. JM: é
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Destaco, para iniciar a reflexão, o trecho que vai da linha 07 a linha 56, chamando a atenção para os enunciados de SP e de JM e os sucessivos acabamentos que vão sendo dados entre eles e com os demais interlocutores, sobretudo EM. Poderíamos dizer, embora de forma bastante simplificada, que SP tem uma forma de afasia bem mais severa[4] que a de JM. Este último teria enunciados mais fluentes, já que o acesso fonológico não está tão comprometido quanto o de SP. Na linha 07, a referência a Toronto e à cascata, na fala de SP, faz com que EM identifique de imediato sua referência: Niagara. A partir disso, tanto SP quanto JM vão interagindo com EM. SP responde à pergunta “O senhor já foi pro Canadá?” negativamente e JM afirmativamente. Observa-se, nas linhas 12 e 16, que JM retira o enunciado “foi” literalmente dos enunciados de EM, em um processo de especularidade. A partir da linha 20, entretanto, já responde em 1a pessoa. É também a partir dos enunciados de EM e de HM (ver linhas 19 a 26), que ele consegue responder a outras questões, por exemplo, o que ele mais gostou no Canadá: vai recorrendo aos enunciados das suas interlocutoras especularmente e complementando-os, até chegar ao “exatamente”, na linha 29, concordando que gostou mais do outono. São os acabamentos que EM e HM vão dando a JM e também a SP que permitem que eles se aproximem, tanto quanto possível, ao seu intuito discursivo.

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As linhas de 92 a 97 revelam, por exemplo, apesar das dificuldades de SP, que a palavra visto é corretamente interpretada por EM. Além da produção do enunciado verbal, a presença da linguagem não-verbal contribui para a determinação do referente – gestos de SP indicando que se tratava de um documento, um papel com uma assinatura. Houve também a consideração dos demais enunciados, produzidos anteriormente pelo sujeito, no episódio dialógico. SP já havia dito, no início, que não tinha ido ao Canadá. Lembramos aqui que, para Bakhtin, todo enunciado é um elo na cadeia discursiva. A referenciação só é possível, apesar dos limites impostos pela afasia, porque os interlocutores compartilham conhecimentos, pressupostos culturais e outros construídos no interior de uma comunidade de fala. [5]

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É na linha 42 que, a meu ver, está o exemplo mais significativo da construção conjunta da referência, na interação[6] . JM produz o enunciado “submarino” e EM nem sequer demonstra um estranhamento, nem hesita diante do que reconhecemos como uma parafasia lexical. Ao contrário, já no enunciado seguinte – linha 43 – EM diz: ah sim... assim... o senhor tá falando dos centros comerciais que são... subterrâneos? É isso?, o que JM confirma na linha 52.

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Para concluir a análise, dentre todas as inúmeras outras considerações que poderiam ser feitas com relação ao dado, destaco as linhas 55 a 62. Há processos de especularidade presentes também entre as falas de EM e HM, pesquisadoras e em relação aos enunciados de JM. Nas linhas 60 e 61 percebe-se que o enunciado de JM é complementado por EM, não porque ele não consiga produzir “francês” – observa-se que ele já havia produzido o enunciado completo, quase concomitante com Em na linha 54 – mas porque são processos constitutivos de episódios dialógicos.

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Concluindo, é na interação que se observa a relação entre a língua e a sua materialização, a linguagem, o uso efetivo. Nas palavras de Bakhtin,
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A língua materna – a composição de seu léxico e sua estrutura gramatical - não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e juntamente com essas formas.
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Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_________, Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
BRAIT, Beth. Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Ed. Contexto, 2005.
CASTILHO, A. A lingual falada no ensino de Português. São Paulo: Ed. Contexto, 1998.
CLARK, K. & HOLQUIST, M. Michail Bakhtin. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.
COUDRY, Maria Irmã. Diário de Narciso - Discurso e Afasia. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
FRANCHI, Carlos. Hipóteses para uma Teoria Funcional da Linguagem. Tese de Doutoramento. UNICAMP. Campinas. SP, 1976.
GERALDI, J.W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
MORATO, E. Interacionismo. In MUSSALIN, F. & BENTES, Anna C. Introdução à Lingüística: Domínios e Fronteiras, Vol. 3, 2004.
NOVAES-PINTO, Rosana. Agramatismo: uma contribuição para o estudo
do Processamento normal de linguagem. Dissertação de Mestrado. UNICAMP.
Campinas, S.P., 1992.
______ . Contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das
categorias clínicas. Tese de Doutorado. UNICAMP. Campinas, S.P, 1999.
________ ““A adoção de conceitos bakhtinianos para a análise de linguagem de sujeitos afásicos”. In Revista Linguagem, Volume 1, número 1. Macapá: Ed. ILAPEC, 2004.
POSSENTI, Sirio. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
SACKS, O. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
STAN, Robert Bakhtin - da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ed. Ática, 1992.


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[1] Este texto desenvolveu-se a partir do Cap. 4 de minha tese de doutorado, intitulado “A linguagem como atividade constitutiva do sujeito e a contribuição de conceitos bakhtinianos para o estudo discursivo das categorias clínicas”. O tema foi também tratado em artigo publicado na Revista Linguagem, no artigo “A adoção de conceitos bakhtinianos para a análise de linguagem de sujeitos afásicos” e em outro trabalho, apresentado na II Conferência Lingüística & Cognição, na UFJF, em 2004: “Avaliação de Compreensão de Linguagem: Análise de resultados obtidos em Baterias de Testes Neuropsicológicos versus Análise Discursiva de Episódios Dialógicos”, submetido para publicação, que trata principalmente do conceito de contra-palavras e de questões relacionadas à problemática das dificuldades de compreensão dos sujeitos afásicos.

[2]
Segundo Stan, os intelectuais russos estavam familiarizados com Saussure não só através do Curso de Lingüística Geral, publicado postumamente, mas também através da interpretação das idéias estruturalistas por Sergei Karcevskij, que voltou para a Rússia em 1917, depois de estudar em Genebra.

[3]
Como se trata de um dado muito longo, o mesmo foi editado e os cortes estão indicados pela marcação (...).

[4]
Em pesquisa anterior , apoiada pela FAPESP, discuto a questão do grau de severidade nas diversas formas de afasia.

[5]
Termo bastante utilizado nas teorias conversacionais derivadas da Análise da Conversação e dos trabalhos em Pragmática.

[6] O trabalho de dissertação de Reisdorfer, em andamento, trata justamente da questão da produção de parafasias apoiado teoricamente na noção de referenciação.

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