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Observamos ainda que a publicização dos textos nesse blog atendem especificamente ao objetivo de propiciar a leitura prévia dos participantes do Círculo 2009. Os textos serão devidamente reorganizados e formatados com todas as notas e publicados em Caderno Especial para o evento.

Sob o signo da alteridade

Romulo Augusto Orlandini


Quando Augusto Ponzio propõe em sua A Revolução Bakhtiniana focar o pensamento de Bakhtin a partir da questão de alteridade, ele o faz de uma maneira inovadora ao dizer que a questão da identidade é vista hoje como sendo algo alheio à alteridade, como uma espécie de contraposição em termos. “O domínio da identidade é tamanho que toda forma de reivindicação se baseia na identificação: ter os mesmos direitos dos que mandam, as mesmas oportunidades, a idêntica vida, a idêntica felicidade de quem ostenta o poder” (PONZIO, 2008, p.22). Pensando a partir das grandes ideologias que regem o mundo atualmente, pincelando principalmente na sociedade capitalista moderna, temos que no mundo posterior a Guerra-fria vivemos todos sobre o império da identidade igualitária como ideologia dominante – que se impõe, reproduz e realimenta por si mesma, numa busca de perpetuação. Assim, viramos o século deixando de lado as grandes ideologias que se fizeram presentes, que constituíram gerações e de certa maneira construíram a realidade sócio-histórica tal qual ela agora. Ponzio diz que a Europa (de certa maneira a parte ocidental do mundo – e boa parte do mundo oriental também) vive sobre a égide do plano do desenvolvimento do capital, cuja contraposição altérica já não mais se faz presente - estabelecendo desse modo uma dificuldade filosófica em entender que a ideologia dominante hoje é tão distante de algo que pressuponha alteridade:

Parece, pelo menos grosso modo que a luta, o diálogo e a dialética entre as ideologias foram substituídos pela monotonia de um único ponto de vista dominante. Este último, dada a situação, não necessita de nome que o caracterize, porque não existe nada do qual tenha que se diferenciar (Ponzio, 2008, p.20).

João Wanderley GERALDI entra nessa conversa sobre ideologias ou grandes narrativas, ao dizer que vivemos “no presente de uma ordem mundial globalizada e assentada no movimento de capitais virtuais e de seus lucros” e que, portanto, “deixamos de enxergar quaisquer caminhos alternativos de construção de nova ordem (2003, p.40). Podemos pensar aqui notadamente na questão do capitalismo-comunismo, com o primeiro emergindo sob a forma de uma nova ordem e o segundo caindo aos poucos na impraticabilidade, bem como podemos pensar nos movimentos democráticos, que se alargam dentro dos Estados nacionais, ou então no fruto destes, como o mercado de cultura de massas; o mercado especulativo; a questão da legalidade/ilegalidade autoral... enfim, todos desembocando na necessidade de se impor (inclusive pela força) tais ideologias a todos de uma maneira idêntica – o que vale para um deve obrigatoriamente valer para todos, independentes das diferenças, quais sejam elas. Assim, a identidade como sendo forma de igualitarismo implica certos problemas porque deixamos de lado a instituição do Outro, reconhecido pelo EU e base da relação dialógica bakhtiniana, para calcar num discurso uno, sem desejo de respostas ou com possibilidades de réplicas falseadas e desqualificadas, aonde a voz do outro é meramente tida como um diálogo disfarçado, porém não processada e ouvida.

Vivemos num mundo de tempos exponenciais. As economias são vistas aos bilhões, a desterritorialização virtual nos transforma num mundo conectado, intensificam os números dos excluídos, as crises e derrocadas financeiras acontecem cada vez em tempos mais curtos. Vivemos num mundo assustador onde a ideia de desigualdade se torna cada vez mais necessária para que a ordem vigente continue prevalecendo.

Aqueles que se beneficiam com a exclusão, os únicos rumores que ouvem são os humores do mercado. E no mercado atuam seus pares. A estes não interessa pensar o inimaginável e arriscar-se a extrair dos acontecimentos os conteúdos para o futuro. Interessa-lhes transmitir o conhecido para que o já acontecido permaneça como único acontecimento possível para o futuro (Geraldi, 2003, p.49).

E a cada minuto essa lógica perversa convence que outras formas societárias já não são possíveis – mesmo que exemplos contras insistam em existir. A oficialidade diz que utilizamos os passos do passado para desembocarmos no nosso presente, onde seria até possível dizer que isso nos levaria a crer num futuro dado, uma espécie de path dependence social (cuja ideia original de Robert Putnam explica como um fenômeno irreversível e histórico, determinando certas condições sócio-históricas). Essa é a descrição de um mundo sem alteridade. No entanto, ao propormos olhar as relações sociais dentro da alteridade constitutiva, temos que a memória de futuro como sendo algo dado por horizonte repleto de possibilidades, cujo olhar é sempre provisório e nunca pré-determinado, pré-moldado, ou já-dito. Outras palavras, outras ações, outros momentos seriam possíveis. Como dissemos, o mundo estruturado de uma maneira idêntica, reprodutível dentro da lógica atual, já tem mudanças visíveis na economia política das estruturas da sociedade. Ponzio dá o exemplo da política, que já não abarca grandes projetos ideológicos em seu cerne, transmutando os políticos em técnicos administrativos, meros executadores. Pela ineficiência em ser espelhos dos sonhos que já não são nem mais sonhados, os políticos tornam cada vez mais a política em um “conjunto de mecanismos que sustentam e promovem a sociedade capitalista moderna” (2009, p.20), exaurindo um papel antes cabal. Dentro da mudança social, temos também mudanças na linguagem, haja vista que:

As palavras, nesse sentido funcionam como agente e memória social, pois uma mesma palavra figura em contextos diversamente orientados. E, já que, por sua ubiqüidade, se banham em todos os ambientes sociais, as palavras são tecidas por uma multidão de fios ideológicos, contraditórios entre si, pois freqüentaram e se constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos sociais (MIOTELLO, 2005, p.172).

Essa é uma variação já é perceptível. Ponzio vai exemplificar dentro da esfera da linguagem por meio da palavra Democracia. Expliquemos: como já não se encontra uma oposição (a partir da alteridade) para designar o mundo contemporâneo, imerso na economia de mercado neoliberal capitalista, acaba que o termo democracia utilizado como “curinga” (palavra de Ponzio) para justificar toda espécie de ações políticas ou não. Seja num golpe de Estado, invasão de um país, tomada de decisão, votação, ou qualquer ato político, os líderes não titubeiam ao invocar a democracia como regente das boas ações pretendidas – deixando o signo numa espécie de crise – não somente semântica, mas também de entendimento social.

Outro exemplo, esse mais marcado, é o signo Revolução. Edgar MORIN (2009), em uma entrevista dada ao jornal O Estado de S. Paulo, foi perguntado: “O senhor fala muito em reforma. Parece que a palavra revolução foi abolida de seu vocabulário. O tempo das revoluções chegou ao fim?”. A resposta foi a seguinte:

Bem, eu prefiro trocar a palavra revolução, que está desgastada pelo uso, por metamorfose. E por quê? Porque a palavra revolução foi reduzida a uma dimensão violenta. Essa violência cria apenas sistemas autoritários, como bem provou a União Soviética. Já a metamorfose permite uma transformação natural e radical como a de uma borboleta, que se destrói e se constrói para se transformar, para adquirir novas habilidades, como a de voar.

Aqui a palavra revolução deixa de ser o palco para mudanças sociais e o filósofo propõe a resignificação de um outro termo, metamorfose. Também podemos identificar outros exemplos que também estão ocupando o lugar do signo anterior, como reforma política e até mesmo reconstrução. Na sociedade cuja identidade vence (cf. Ponzio, 2008), o ideário revolucionário já não mais existe, e nem deveria ser reativado - pois já não é usual para a atual conjuntura. Coloquei as palavras “Revolução” e “Reforma” para serem buscadas na sessão Dinheiro do jornal Folha de S. Paulo online. A segunda teve 3.560 ocorrências em 26 páginas de resultado. A primeira, no mesmo número de páginas, foi citada 266 vezes. Nesse rápido exercício quis demonstrar a utilização por meio de uma das principais mídias impressas brasileiras, em seu setor mais próximo do capitalismo, que o discurso oficial hoje não quer que certas palavras sejam tecidas nas relações sociais, ou seja, mostra que perdeu espaço dentro da arena de luta do signo. A revolução já não existe mais, nem cabe ser citada, nem ser formulada, e tampouco ser dita.

Por fim, o mundo das desigualdades ceifa a qualidade de vida de mi(bi?)lhões de pessoas. O discurso não diz que aquilo que é diferente não é desigual, mas simplesmente diferente. No tempo acelerado, na homogeneidade consumista, no mundo que é eternamente “pós” de algo que nunca vimos ou sabemos o que é, a proposta de olhar com olhos de alteridade as relações humanas torna-se uma opção. Na igualdade total, a distinção vai existir somente naquele que se faz diferente. Não se perde a identidade ao ser diferente, ao levar em conta a posição do Outro como algo fundamental para a minha constituição. O espelho não nos mostra como somos, mas sim o que somos em relação as nossas relações. A mera reflexão não implica na refração da vida. A reflexão se dá junto com a refração. Meu eu é o outro do outro. A alteridade torna-se, portanto, uma postura ética e estética de compreensão e responsividade. Como Geraldi já disse, a diferença identifica enquanto a desigualdade deforma. No livro Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola de Brandão exemplifica bem uma situação u(dis)tópica onde a identificação dos iguais produziu uma sociedade não social. Conta a história num tempo onde os “militecnos” aproveitam para burocratizar tudo, inclusive sentimentos e sensações, onde tudo é passível de compra - porém o dinheiro é extremamente escasso. Nesse entremeio, um furo na mão faz o personagem se distinguir dos demais. Na distinção, na diferença, ele se constitui e passa a questionar a vida que ele se insere. Ao se cansar do que vivia, do que era embotado a viver, ele se rebela contra o que estava preso. Vendo o presente, mas trabalhando com a memória de passado (o personagem era um professor de História que acreditava na revolução), ele refaz suas perspectivas de futuro, muda e questiona o discurso vigente. Ao fazer isso, passa a ter/ser tudo diferente na história. O personagem passa a olhar como que olhando com Outros olhos, numa visão de alteridade.

E o real está na superfície, bóia à nossa vista. Tão simples, que recusamos. Estamos acostumados ao espelho da ilusão. Passamos o tempo em busca de algo que nos foi dado à primeira vista. Não confiamos mais em nossas percepções, instituições. Nos afastamos do conhecimento primordial.

Renasço, a cada instante. Minha vida = uma série de renascimentos. Sem que tenha havido morte. Sucessão de momentos que somam. Os antigos deixam experiências, maturidade. Os novos vêm com inocência e a contemplação. Neste renascer, me faço criança e me incorporo ao que veio antes.

O ser antigo rejuvenesce, o novo ganha, no parto, o conhecimento. Venço a morte, a cada etapa. Ganho a vida. E me vejo um homem em permanente duplicata. (LOYOLA BRANDÃO, 1982, p.309).


Referências Bibliográficas
GERALDI, João Wanderley. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. Freitas, Souza e Kramer (orgs.) Ciências humanas e pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo, Cortez, 2003, p.39-56.
GONÇALVES FILHO, Antônio. EDGAR MORIN: "Nosso pensamento está muito preso ao passado”. In: O ESTADO DE S. PAULO. Caderno 2, São Paulo, 02 ago. 2009. Diário.
LOYOLA BRANDÃO, Ignácio de. Não verás país nenhum. São Paulo, Círculo do Livro, 1982.
MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin, conceitos-chaves.
São Paulo, Editora Contexto, 2005.
______. A memória do passado em jogo com a memória do futuro constitui sentidos agora. Daí que os projetos de dizer dos sujeitos têm importância. In: MANFRIN, Aline Maria Pacífico; e outros. (Org.). Veredas Bakhtianas - de objetos à sujeitos. São Carlos, Pedro & João Editores, 2006, v. 1, p. 277-287.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. Coordenação de tradução de Valdemir Miotello. São Paulo, Editora Contexto, 2008.

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