Maria Teresa de Assunção Freitas
Escolhi escrever este texto sobre “educação e dialogia na atualidade”, tema de uma das rodas bakhtinianas. Essa escolha não foi feita por acaso mas aconteceu de acordo com a posição que ocupo, com o lugar no qual me situo: o de educadora. É esse o meu ofício ao longo de mais de trinta anos vividos no embate com a tarefa de ser professora. Tempo esse marcado com muitas histórias de sucesso e fracasso, sonhos e realidades, esperanças e frustrações, momentos de realizações e de impotência. Uma força que me empurrava para a frente e uma vontade de desistir, de largar tudo. Mas foram essas histórias e meus encontros com seus personagens que me fizeram professora. Profissão que me marca como pessoa e da qual não posso me afastar, me aposentar. O que serei eu sem meus alunos que me constroem a cada dia? Como viver sem estes olhares jovens inquietos, cheios de indagações, olhando de frente para a vida mas precisando de ter ao seu lado um outro que já percorreu mais estradas, para lhes acompanhar?
Vejo que foi meu cronotopo, tempo e espaço vividos que me levaram à escolha deste tema que está enraizado em mim, faz parte do meu eu. Trago comigo tantas palavras alheias: as daqueles que foram meus professores, dos autores que me orientam, das diversas gerações de alunos (crianças, adolescentes, jovens, adultos) que por mim passaram, dos colegas com os quais partilhei o ofício, dos autores das leis que normatizaram sobre a educação neste país, que ditaram as diferentes reformas educacionais pelas quais passei.
Enfim é deste lugar e deste momento que vou falar sobre educação e dialogia na atualidade.
Saio a procura do que Bakhtin tem a me dizer. Procuro rever seus textos em busca de suas palavras, de suas respostas para enfrentar esse tema. Ler Bakhtin e principalmente escrever sobre suas idéias é algo que exige profunda reflexão e tempo de maturação. Fazer esse percurso de leitura por entre textos da obra de Bakhtin significa revisitá-los pela terceira, quarta, ou quem sabe décima vez, mas esta viagem se constitui para mim em algo prazeroso e instigante. Reservo um tempo tranqüilo e me dedico ao ato de mergulhar no mundo das palavras bakhtinianas. Bakhtin é um autor que sempre se renova. Ou melhor, encontro sempre novos elementos em seus textos. A cada leitura que faço de um texto seu, novos sentidos emergem.
O próprio autor, em reposta a uma pergunta da revista Nova Mir, explicita esse paradoxo das grandes obras que em seu “processo de vida post mortem [ ] se enriquecem com novos significados, novos sentidos; é como se estas obras superassem o que foram na época de sua criação.” (2003,p.363). E prossegue: “O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão” (p.364). Isto é, uma grande obra, como a de Bakhtin, revela sua plenitude na grande temporalidade. Por isso, hoje estudar Bakhtin, trazê-lo para a contemporaneidade, significa atualizar seus conceitos no diálogo com o que nos confronta o tempo presente.
Leio Bakhtin e com suas palavras olho para o presente que nos circunda, com ele dialogando. O ato de escrever é ainda mais complexo do que o ato de ler, pois tenho que, com as minhas palavras, trazer os dizeres do autor, os sentidos por mim construídos na interlocução com ele. E é difícil passar para a escrita todo o vivido e experimentado. Assumo, no entanto, o risco dessa empreitada selecionando alguns fragmentos que mais me mobilizaram sem pensar em esgotar a riqueza de tudo que foi dito. Esses fragmentos resultaram da busca de respostas sobre o que Bakhtin nos diz sobre Educação. Não encontro na obra de Bakhtin nada específico em relação à educação, mas ao mesmo tempo, encontro tudo nas palavras escritas em seus textos.
Primeiro fragmento: Professor e aluno nas relações de aprendizagem
Como professora que sou, meu olhar, em um primeiro movimento, busca nos escritos de Bakhtin elementos para compreender algo que me confronta e aos meus colegas: a questão da aprendizagem escolar. O que é a aprendizagem? Como o aluno aprende ou por que não aprende? Qual o papel do professor neste processo de aprendizagem? Que relação se estabelece entre o professor e seus alunos? Bakhtin não me responde essas questões diretamente mas seus textos me possibilitam compreender a relação professor-aluno como uma relação dialógica onde se enfrentam dois sujeitos em um processo de construção compartilhada do conhecimento. Dessa forma, ensinar e aprender podem ser compreendidos como partes integrantes de um mesmo processo que se desenvolve na dialética das interlocuções entre seus diferentes atores. Bakhtin não tem propriamente uma definição de aprendizagem mas dedica em vários de seus textos um espaço para a discussão da compreensão. Sua forma de abordar a compreensão me dá elementos para relacioná-la com a aprendizagem. Esta é vista em dois aspectos: compreensão passiva e ativa. A compreensão passiva é aquela que se detém apenas da decodificação de um sinal e exclui a possibilidade de uma resposta. Permanecendo passiva não traz nada de novo para a compreensão do discurso, ela apenas o dubla, reproduzindo-o, ficando prisioneira dos limites de seu contexto, não rompendo a independência de expressão e sentido. O que importa realmente é a compreensão ativa que já deve conter em si um germe de resposta. A resposta como um princípio ativo cria o terreno favorável à compreensão de maneira dinâmica e interessada. A compreensão amadurece apenas na resposta. Compreensão e resposta se fundem dialeticamente sendo impossível uma sem a outra (Bakhtin, 1993).
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão (Bakhtin/Volochinov,1988,p.132).
Neste sentido a compreensão se constitui como uma forma de diálogo, no qual compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra. Assim a significação só se realiza nesse processo de compreensão ativa e responsiva que supõe dois sujeitos, todos com direito a voz. Essa compreensão ativa é criadora, pois, completa o texto do outro, tornando-se um processo de co-criação dos sujeitos. Para Bakhtin (2003), o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade da mudança e até mesmo a renúncia de pontos de vista já consolidados. “No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento” (2003,p.378).
O autor continua a desenvolver sua reflexão lembrando que as palavras são a parte constitutiva desse processo compreensivo. Para cada pessoa as palavras se dividem em palavras próprias e alheias. Além de suas próprias palavras o sujeito vive imerso nas palavras do outro.
E toda a minha vida [...] é uma reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos). A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la (Bakhtin, 2003,p.379).
Nesse processo compreensivo desenvolve-se uma tensa luta dialógica entre as palavras próprias e as alheias. A princípio o sujeito incorpora a palavra do outro que se transforma dialogicamente em “minhas-alheias-palavras” com a ajuda de outras “palavras-alheias”, para depois se tornar, de forma criativa, minhas palavras com a retirada das aspas.
Considero que a etapa final do processo de aprendizagem acontece com essa internalização da palavra do outro que se transforma em palavra pessoal. Há, portanto, um processo de apropriação, de tornar próprio o que a princípio foi construído com o outro. O objetivo dessa assimilação da palavra do outro adquire um sentido importante no processo de formação ideológica do homem, portanto também no processo formativo do professor.
Bakhtin (1993), ao apresentar a palavra de outrem como definidora das bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e ao nosso comportamento, introduz essas duas modalidades: a palavra autoritária e a palavra internamente persuasiva. A palavra autoritária se impõe a nós, exige nosso reconhecimento e emana da autoridade. Ela é monossêmica, rígida, tornando-se difícil modificar seus sentidos. Exige nosso reconhecimento incondicional e não uma compreensão ativa. A palavra autoritária não se representa, mas apenas se transmite. Ao contrário, a palavra internamente persuasiva se entrelaça com a nossa palavra, tornando-se metade nossa, metade de outrem. Ela organiza do interior a massa de nossas palavras e estabelece um relacionamento tenso e conflituoso com as nossas outras palavras interiormente persuasivas. Ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autônoma. São peculiaridades da palavra internamente persuasiva: o inacabamento do sentido para nós, sua possibilidade de prosseguir, sua vida criativa no contexto de nossa consciência ideológica, de nossas relações dialógicas com ela.
Nós a introduzimos em novos contextos, a aplicamos a um novo material, nós a colocamos numa nova posição, a fim de obter dela novas respostas, novos esclarecimentos sobre seu sentido e novas palavras “para nós” (uma vez que a palavra produtiva do outro engendra dialogicamente em resposta uma nova palavra nossa) (Bakhtin, 1993,p.146)
Esse processo de luta com a palavra alheia e sua influência é muito importante na história da formação da consciência individual. Uma palavra, uma voz que é minha, mas nascida de outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do outro.
Até que ponto a palavra do professor não se fixa nessa palavra autoritária e impede a compreensão, a aprendizagem? Como as palavras do professor dirigidas a seus alunos podem se tornar internamente persuasivas? Como o professor poderá estabelecer no processo de aprendizagem relações dialógicas com seus alunos de modo que se libertem das palavras alheias e construam as suas?
Segundo fragmento: Como Ser no mundo e responder ao que ele nos confronta?
Continuando meu exercício de escrever, volto-me para o que encontro em um texto do jovem Bakhtin: “Para uma Filosofia do Ato”(1993b). Neste texto também não há respostas diretas à questão que formulei: como agir enquanto educadora diante dos múltiplos desafios que são postos pela contemporaneidade? A leitura empreendida, no entanto, me envolve em um processo reflexivo sobre o que é ser no mundo e como responder com o que ele nos confronta. Bakhtin nesse texto estuda a arquitetônica do mundo real do ato realizado. Este termo “arquitetônica” é próprio de Bakhtin e ele o usa para explicitar em suas construções teóricas, os seus arcabouços, os seus pilares, que sozinhos, não funcionam como base de sustentação. É na sua dialética que estes pilares formam um todo único, que se constituem como tal. Na arquitetônica do mundo real no qual um ato se desenvolve é importante considerar sua concretude, unidade e os tons emocionais-volitivos. A realidade da unicidade unitária desse mundo é garantida pelo reconhecimento de minha participação única neste mundo, pelo meu não–álibi nele. Essa minha participação produz um dever concreto, o dever de realizar a inteira unicidade do ser e isso significa que minha participação transforma cada participação minha (sentimento, desejo, humor, pensamento), em minha própria ação ativamente responsável. Esse mundo me é dado e está disposto em torno de mim, do único centro do qual minha ação flui. Eu me encontro, me relaciono com este mundo da mesma forma como fluo de dentro de mim na minha ação de ver, pensar ou fazer algo prático.Este lugar único ativo não é um centro geométrico abstrato, mas um centro concreto, responsável, emocional-volitivo da concreta multiplicidade do mundo. É no interior dessa arquitetônica, que Bakhtin coloca os planos espaciais e temporais em sua unidade concreta e única. Este planos não adquirem apenas um significado mas uma validade ou eficácia real que é determinada do lugar único da minha participação no Ser-evento. É essa participação real, que parte de um ponto concretamente único no Ser, que engendra o valor real do tempo e do espaço. Abstrair-me deste centro que é o ponto de partida de minha participação única no Ser leva a minha decomposição. A arquitetônica concreta de um mundo realmente experimentado, nesse caso é substituída por momentos espaciais e temporais abstratamente universais.
Para Bakhtin “qualquer coisa tomada independentemente de, e sem referência ao centro único de valor do qual flui a responsabilidade de um ato realizado se des-concretiza e se des-realiza: ela é despojada de seu peso com relação ao valor, ela perde sua obrigatoriedade emocional-volitiva, e se torna uma possibilidade vazia, abstratamente universal”(1993 p.76-77).
Vejo que Bakhtin ao dizer que do lugar único da minha participação no Ser, tempo e espaços unitários são personalizados e trazidos em comunhão com o Ser como momentos constituintes de uma unidade concreta e valorada, ele já está iniciando a reflexão que se prolongará, mais tarde, em outros textos, sobre cronotopo. Este vai além do tempo e espaço matemático compreendendo minha participação real no tempo e no espaço, do meu lugar único no Ser que é o que os tornam valorativamente consolidados.
Esse meu lugar único no ser não deve, entretanto, ser tomado como uma posição individualista. Na arquitetônica construída por Bakhtin o eu-para-mim, centro do qual flui meu ato realizado dirige minhas possibilidades e meu dever no Ser-evento. É desse meu lugar que posso e devo ser ativo com o dever de realizar meu lugar único. Mas este lugar único não exclui o outro, pois Bakhtin diz que a vida conhece dois centros de valor que, embora diferentes, estão mutuamente correlacionados: o eu e o outro. É em torno destes dois centros que todos os momentos concretos do Ser se distribuem e se arranjam.
Complementando a arquitetônica do mundo real do ato realizado, Bakhtin apresenta uma idéia preliminar da possibilidade de uma arquitetônica valorativa concreta analisando o mundo da visão estética, o mundo da arte. Essa arquitetônica também é uma unidade concreta, pois seu mundo se dispõe em torno de um centro valorativo concreto, que é visto, amado e pensado, que é o homem. Assim, tudo nesse mundo da visão estética adquire significado, sentido e valor em correlação com o homem. Dessa forma o mundo da visão estética nos aproxima do entendimento do mundo-evento-real.
Na visão estética há um caráter específico, uma direção do olhar que é dirigido ao centro de valor estético, que é o homem. A atenção interessada é fixada no herói de uma obra independente de algum epíteto valorativo positivo. Assim, utilizando-se das palavras de um provérbio russo, Bakhtin diz que na visão estética “você ama um ser humano não porque ele é bom, mas antes um ser humano é bom porque você o ama.” (p.79).
Nessa abordagem do mundo da estética percebe-se que não pode haver relações entre um conceito abstratamente ideal: bom, mau, belo, feio e um objeto concreto. Partindo dessa constatação Bakhtin afirma que é igualmente ilegítimo abstrair um ser humano de sua realidade concreta. Conclui, portanto, que o centro de valor na arquitetônica-evento da visão estética é o homem como uma realidade concreta afirmada com amor, e não como algo de conteúdo auto-idêntico. Nessa compreensão o amor é visto como o único que é capaz de ser esteticamente produtivo, pois o desamor empobrece e decompõe seu objeto.
Em uma outra parte do texto o autor partindo de um poema de Pushkin: “A separação”, apresenta uma análise de forma e conteúdo dessa obra para clarificar a disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de um centro de valores: o ser humano mortal. Nessa análise Bakhtin trabalha com dois contextos de valor, as duas pessoas ativas no poema e apresenta a discussão da empatia estética e da exotopia. O conceito de exotopia está imerso na sua concepção de tempo e espaço. O lugar único do contemplador, que se situa do lado de fora do evento dos dois personagens, lhe permite o movimento de empatia estética (colocar-se no lugar do outro) e depois o movimento exotópico (voltar ao seu próprio lugar de fora do evento), que lhe permite ver e compreender pelo seu excedente de visão, o que os outros não podem ver. Situado do lado de fora da arquitetônica participo dela como um contemplador ativo pela efetiva exotopicidade do contemplador em relação ao objeto contemplado. Nessa arquitetônica estética não há saída possível para o mundo daquele que age como contemplador, porque ele está situado do lado de fora do campo da visão estética objetivada.
O autor se volta, em seguida, para a arquitetônica real do mundo realmente experimentado da vida, o mundo da consciência participante e realizadora. Nela ele estabelece a essencial diferença em ter a minha própria unicidade e a de outro ser humano: a diferença entre eu e o outro. “Eu, como eu único, venho do interior de mim mesmo; quanto aos outros, eu os encontro, dou com eles: isso constitui uma profunda diferença ontológica em significância dentro do evento do Ser” (Bakhtin,1993b,p.91).
Procurando sintetizar as idéias de Bakhtin encontradas nesse texto, compreendo que o dever arquitetônico de realizar o lugar único no ser-evento-único é determinado antes, e acima de tudo, como uma contraposição entre o eu e o outro. Na teoria bakhtiniana é importante compreender que nessa relação eu-outro, o outro é constitutivo do eu, sem o outro eu não posso Ser.
Enquanto professora, como posso descobrir e compreender o lugar do outro, meu aluno? Se “eu os encontro, dou com eles”, o que fazer para que esse encontro seja constitutivo de nossas subjetividades? Como esse encontro me possibilita Ser? Como a estética pode me aproximar da compreensão do mundo como evento concreto real? Como integrar a estética no meu ato de educar?
Terceiro fragmento: Educar como uma ação ativamente responsável
Chego ao final dessa minha escrita me reportando ao primeiro texto que Bakhtin escreveu, ainda muito jovem: “Arte e Responsabilidade”. Trata-se de um texto pequeno, de pouco mais de uma página, mas muito denso, no qual incita uma importante reflexão ao dizer que “ciência, arte e vida só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade” (2003:p.XXXIII). Para o autor, o nexo interno entre esses elementos é garantido pela unidade da responsabilidade. Essa afirmação que é o substrato de tudo o que escreveu depois, coloca como centro de sua atenção as ciências humanas em uma perspectiva ética e estética. Nesse sentido, vejo que para a educação - que tem como objetivo o homem em seu acontecer - conhecimento científico, vida e arte devem estar juntos, não de forma mecânica mas numa unidade tecida na responsabilidade. Conhecimento que parte da vida e para ela deve retornar, arte que responde pela vida e vida que inspira a arte. Compreendo assim, que ser educador é se responsabilizar por essa integração entre conhecimento, vida e arte. Este é o desafio que a contemporaneidade nos apresenta. È preciso derrubar os muros das escolas , penetrar na vida, na arte e construir a partir delas, com aquilo que os alunos experienciam, o conhecimento necessário.Um conhecimento marcado pela beleza da imagem, do som, das letras que fazem rir, chorar e encantar. Um conhecimento que não seja algo estéril, meramente reproduzido e memorizado mas algo que problematize, que leve a buscas de novas respostas, que ajude os alunos a compreenderem e se inserirem responsavelmente no mundo em que vivem. Um conhecimento que transforme alunos e professores não em meros repetidores mas em autores, autores de suas palavras, criadores de novas possibilidades.
Para além dos fragmentos
As palavras de Bakhtin, que escolhi trazer para este texto nos inserem na reflexão do que ele denomina de Ser-evento-único-responsável. E diante disso pergunto: Como isso se revela em minha vida, em minha experiência? Até que ponto estas palavras apenas me seduzem e as repito porque cantam em meus ouvidos e são belas? Até que ponto elas permanecem como coisas apenas ditas, repetidas, mas não vividas? Como fazer para que façam parte de mim em minha unicidade? Como fazer de meus atos respostas a um dever concreto? Como chegar à compreensão ativa de que Ser é comprometer-se?
Pensando em como responder essas questões, cada vez mais compreendo que Bakhtin é um autor especial. Ninguém passa por ele impunemente. Ler Bakhtin é me colocar numa situação de compreensão ativa que exige respostas. Ler Bakhtin é superar o momento do conhecimento teórico e integrá-lo a minha vida. É, sobretudo, um exercício de reflexão que não me fecha em mim mesma mas que me abre, me empurra para o outro, para o diálogo.
Escolhi escrever este texto sobre “educação e dialogia na atualidade”, tema de uma das rodas bakhtinianas. Essa escolha não foi feita por acaso mas aconteceu de acordo com a posição que ocupo, com o lugar no qual me situo: o de educadora. É esse o meu ofício ao longo de mais de trinta anos vividos no embate com a tarefa de ser professora. Tempo esse marcado com muitas histórias de sucesso e fracasso, sonhos e realidades, esperanças e frustrações, momentos de realizações e de impotência. Uma força que me empurrava para a frente e uma vontade de desistir, de largar tudo. Mas foram essas histórias e meus encontros com seus personagens que me fizeram professora. Profissão que me marca como pessoa e da qual não posso me afastar, me aposentar. O que serei eu sem meus alunos que me constroem a cada dia? Como viver sem estes olhares jovens inquietos, cheios de indagações, olhando de frente para a vida mas precisando de ter ao seu lado um outro que já percorreu mais estradas, para lhes acompanhar?
Vejo que foi meu cronotopo, tempo e espaço vividos que me levaram à escolha deste tema que está enraizado em mim, faz parte do meu eu. Trago comigo tantas palavras alheias: as daqueles que foram meus professores, dos autores que me orientam, das diversas gerações de alunos (crianças, adolescentes, jovens, adultos) que por mim passaram, dos colegas com os quais partilhei o ofício, dos autores das leis que normatizaram sobre a educação neste país, que ditaram as diferentes reformas educacionais pelas quais passei.
Enfim é deste lugar e deste momento que vou falar sobre educação e dialogia na atualidade.
Saio a procura do que Bakhtin tem a me dizer. Procuro rever seus textos em busca de suas palavras, de suas respostas para enfrentar esse tema. Ler Bakhtin e principalmente escrever sobre suas idéias é algo que exige profunda reflexão e tempo de maturação. Fazer esse percurso de leitura por entre textos da obra de Bakhtin significa revisitá-los pela terceira, quarta, ou quem sabe décima vez, mas esta viagem se constitui para mim em algo prazeroso e instigante. Reservo um tempo tranqüilo e me dedico ao ato de mergulhar no mundo das palavras bakhtinianas. Bakhtin é um autor que sempre se renova. Ou melhor, encontro sempre novos elementos em seus textos. A cada leitura que faço de um texto seu, novos sentidos emergem.
O próprio autor, em reposta a uma pergunta da revista Nova Mir, explicita esse paradoxo das grandes obras que em seu “processo de vida post mortem [ ] se enriquecem com novos significados, novos sentidos; é como se estas obras superassem o que foram na época de sua criação.” (2003,p.363). E prossegue: “O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão” (p.364). Isto é, uma grande obra, como a de Bakhtin, revela sua plenitude na grande temporalidade. Por isso, hoje estudar Bakhtin, trazê-lo para a contemporaneidade, significa atualizar seus conceitos no diálogo com o que nos confronta o tempo presente.
Leio Bakhtin e com suas palavras olho para o presente que nos circunda, com ele dialogando. O ato de escrever é ainda mais complexo do que o ato de ler, pois tenho que, com as minhas palavras, trazer os dizeres do autor, os sentidos por mim construídos na interlocução com ele. E é difícil passar para a escrita todo o vivido e experimentado. Assumo, no entanto, o risco dessa empreitada selecionando alguns fragmentos que mais me mobilizaram sem pensar em esgotar a riqueza de tudo que foi dito. Esses fragmentos resultaram da busca de respostas sobre o que Bakhtin nos diz sobre Educação. Não encontro na obra de Bakhtin nada específico em relação à educação, mas ao mesmo tempo, encontro tudo nas palavras escritas em seus textos.
Primeiro fragmento: Professor e aluno nas relações de aprendizagem
Como professora que sou, meu olhar, em um primeiro movimento, busca nos escritos de Bakhtin elementos para compreender algo que me confronta e aos meus colegas: a questão da aprendizagem escolar. O que é a aprendizagem? Como o aluno aprende ou por que não aprende? Qual o papel do professor neste processo de aprendizagem? Que relação se estabelece entre o professor e seus alunos? Bakhtin não me responde essas questões diretamente mas seus textos me possibilitam compreender a relação professor-aluno como uma relação dialógica onde se enfrentam dois sujeitos em um processo de construção compartilhada do conhecimento. Dessa forma, ensinar e aprender podem ser compreendidos como partes integrantes de um mesmo processo que se desenvolve na dialética das interlocuções entre seus diferentes atores. Bakhtin não tem propriamente uma definição de aprendizagem mas dedica em vários de seus textos um espaço para a discussão da compreensão. Sua forma de abordar a compreensão me dá elementos para relacioná-la com a aprendizagem. Esta é vista em dois aspectos: compreensão passiva e ativa. A compreensão passiva é aquela que se detém apenas da decodificação de um sinal e exclui a possibilidade de uma resposta. Permanecendo passiva não traz nada de novo para a compreensão do discurso, ela apenas o dubla, reproduzindo-o, ficando prisioneira dos limites de seu contexto, não rompendo a independência de expressão e sentido. O que importa realmente é a compreensão ativa que já deve conter em si um germe de resposta. A resposta como um princípio ativo cria o terreno favorável à compreensão de maneira dinâmica e interessada. A compreensão amadurece apenas na resposta. Compreensão e resposta se fundem dialeticamente sendo impossível uma sem a outra (Bakhtin, 1993).
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão (Bakhtin/Volochinov,1988,p.132).
Neste sentido a compreensão se constitui como uma forma de diálogo, no qual compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra. Assim a significação só se realiza nesse processo de compreensão ativa e responsiva que supõe dois sujeitos, todos com direito a voz. Essa compreensão ativa é criadora, pois, completa o texto do outro, tornando-se um processo de co-criação dos sujeitos. Para Bakhtin (2003), o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade da mudança e até mesmo a renúncia de pontos de vista já consolidados. “No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento” (2003,p.378).
O autor continua a desenvolver sua reflexão lembrando que as palavras são a parte constitutiva desse processo compreensivo. Para cada pessoa as palavras se dividem em palavras próprias e alheias. Além de suas próprias palavras o sujeito vive imerso nas palavras do outro.
E toda a minha vida [...] é uma reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos). A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la (Bakhtin, 2003,p.379).
Nesse processo compreensivo desenvolve-se uma tensa luta dialógica entre as palavras próprias e as alheias. A princípio o sujeito incorpora a palavra do outro que se transforma dialogicamente em “minhas-alheias-palavras” com a ajuda de outras “palavras-alheias”, para depois se tornar, de forma criativa, minhas palavras com a retirada das aspas.
Considero que a etapa final do processo de aprendizagem acontece com essa internalização da palavra do outro que se transforma em palavra pessoal. Há, portanto, um processo de apropriação, de tornar próprio o que a princípio foi construído com o outro. O objetivo dessa assimilação da palavra do outro adquire um sentido importante no processo de formação ideológica do homem, portanto também no processo formativo do professor.
Bakhtin (1993), ao apresentar a palavra de outrem como definidora das bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e ao nosso comportamento, introduz essas duas modalidades: a palavra autoritária e a palavra internamente persuasiva. A palavra autoritária se impõe a nós, exige nosso reconhecimento e emana da autoridade. Ela é monossêmica, rígida, tornando-se difícil modificar seus sentidos. Exige nosso reconhecimento incondicional e não uma compreensão ativa. A palavra autoritária não se representa, mas apenas se transmite. Ao contrário, a palavra internamente persuasiva se entrelaça com a nossa palavra, tornando-se metade nossa, metade de outrem. Ela organiza do interior a massa de nossas palavras e estabelece um relacionamento tenso e conflituoso com as nossas outras palavras interiormente persuasivas. Ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autônoma. São peculiaridades da palavra internamente persuasiva: o inacabamento do sentido para nós, sua possibilidade de prosseguir, sua vida criativa no contexto de nossa consciência ideológica, de nossas relações dialógicas com ela.
Nós a introduzimos em novos contextos, a aplicamos a um novo material, nós a colocamos numa nova posição, a fim de obter dela novas respostas, novos esclarecimentos sobre seu sentido e novas palavras “para nós” (uma vez que a palavra produtiva do outro engendra dialogicamente em resposta uma nova palavra nossa) (Bakhtin, 1993,p.146)
Esse processo de luta com a palavra alheia e sua influência é muito importante na história da formação da consciência individual. Uma palavra, uma voz que é minha, mas nascida de outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do outro.
Até que ponto a palavra do professor não se fixa nessa palavra autoritária e impede a compreensão, a aprendizagem? Como as palavras do professor dirigidas a seus alunos podem se tornar internamente persuasivas? Como o professor poderá estabelecer no processo de aprendizagem relações dialógicas com seus alunos de modo que se libertem das palavras alheias e construam as suas?
Segundo fragmento: Como Ser no mundo e responder ao que ele nos confronta?
Continuando meu exercício de escrever, volto-me para o que encontro em um texto do jovem Bakhtin: “Para uma Filosofia do Ato”(1993b). Neste texto também não há respostas diretas à questão que formulei: como agir enquanto educadora diante dos múltiplos desafios que são postos pela contemporaneidade? A leitura empreendida, no entanto, me envolve em um processo reflexivo sobre o que é ser no mundo e como responder com o que ele nos confronta. Bakhtin nesse texto estuda a arquitetônica do mundo real do ato realizado. Este termo “arquitetônica” é próprio de Bakhtin e ele o usa para explicitar em suas construções teóricas, os seus arcabouços, os seus pilares, que sozinhos, não funcionam como base de sustentação. É na sua dialética que estes pilares formam um todo único, que se constituem como tal. Na arquitetônica do mundo real no qual um ato se desenvolve é importante considerar sua concretude, unidade e os tons emocionais-volitivos. A realidade da unicidade unitária desse mundo é garantida pelo reconhecimento de minha participação única neste mundo, pelo meu não–álibi nele. Essa minha participação produz um dever concreto, o dever de realizar a inteira unicidade do ser e isso significa que minha participação transforma cada participação minha (sentimento, desejo, humor, pensamento), em minha própria ação ativamente responsável. Esse mundo me é dado e está disposto em torno de mim, do único centro do qual minha ação flui. Eu me encontro, me relaciono com este mundo da mesma forma como fluo de dentro de mim na minha ação de ver, pensar ou fazer algo prático.Este lugar único ativo não é um centro geométrico abstrato, mas um centro concreto, responsável, emocional-volitivo da concreta multiplicidade do mundo. É no interior dessa arquitetônica, que Bakhtin coloca os planos espaciais e temporais em sua unidade concreta e única. Este planos não adquirem apenas um significado mas uma validade ou eficácia real que é determinada do lugar único da minha participação no Ser-evento. É essa participação real, que parte de um ponto concretamente único no Ser, que engendra o valor real do tempo e do espaço. Abstrair-me deste centro que é o ponto de partida de minha participação única no Ser leva a minha decomposição. A arquitetônica concreta de um mundo realmente experimentado, nesse caso é substituída por momentos espaciais e temporais abstratamente universais.
Para Bakhtin “qualquer coisa tomada independentemente de, e sem referência ao centro único de valor do qual flui a responsabilidade de um ato realizado se des-concretiza e se des-realiza: ela é despojada de seu peso com relação ao valor, ela perde sua obrigatoriedade emocional-volitiva, e se torna uma possibilidade vazia, abstratamente universal”(1993 p.76-77).
Vejo que Bakhtin ao dizer que do lugar único da minha participação no Ser, tempo e espaços unitários são personalizados e trazidos em comunhão com o Ser como momentos constituintes de uma unidade concreta e valorada, ele já está iniciando a reflexão que se prolongará, mais tarde, em outros textos, sobre cronotopo. Este vai além do tempo e espaço matemático compreendendo minha participação real no tempo e no espaço, do meu lugar único no Ser que é o que os tornam valorativamente consolidados.
Esse meu lugar único no ser não deve, entretanto, ser tomado como uma posição individualista. Na arquitetônica construída por Bakhtin o eu-para-mim, centro do qual flui meu ato realizado dirige minhas possibilidades e meu dever no Ser-evento. É desse meu lugar que posso e devo ser ativo com o dever de realizar meu lugar único. Mas este lugar único não exclui o outro, pois Bakhtin diz que a vida conhece dois centros de valor que, embora diferentes, estão mutuamente correlacionados: o eu e o outro. É em torno destes dois centros que todos os momentos concretos do Ser se distribuem e se arranjam.
Complementando a arquitetônica do mundo real do ato realizado, Bakhtin apresenta uma idéia preliminar da possibilidade de uma arquitetônica valorativa concreta analisando o mundo da visão estética, o mundo da arte. Essa arquitetônica também é uma unidade concreta, pois seu mundo se dispõe em torno de um centro valorativo concreto, que é visto, amado e pensado, que é o homem. Assim, tudo nesse mundo da visão estética adquire significado, sentido e valor em correlação com o homem. Dessa forma o mundo da visão estética nos aproxima do entendimento do mundo-evento-real.
Na visão estética há um caráter específico, uma direção do olhar que é dirigido ao centro de valor estético, que é o homem. A atenção interessada é fixada no herói de uma obra independente de algum epíteto valorativo positivo. Assim, utilizando-se das palavras de um provérbio russo, Bakhtin diz que na visão estética “você ama um ser humano não porque ele é bom, mas antes um ser humano é bom porque você o ama.” (p.79).
Nessa abordagem do mundo da estética percebe-se que não pode haver relações entre um conceito abstratamente ideal: bom, mau, belo, feio e um objeto concreto. Partindo dessa constatação Bakhtin afirma que é igualmente ilegítimo abstrair um ser humano de sua realidade concreta. Conclui, portanto, que o centro de valor na arquitetônica-evento da visão estética é o homem como uma realidade concreta afirmada com amor, e não como algo de conteúdo auto-idêntico. Nessa compreensão o amor é visto como o único que é capaz de ser esteticamente produtivo, pois o desamor empobrece e decompõe seu objeto.
Em uma outra parte do texto o autor partindo de um poema de Pushkin: “A separação”, apresenta uma análise de forma e conteúdo dessa obra para clarificar a disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de um centro de valores: o ser humano mortal. Nessa análise Bakhtin trabalha com dois contextos de valor, as duas pessoas ativas no poema e apresenta a discussão da empatia estética e da exotopia. O conceito de exotopia está imerso na sua concepção de tempo e espaço. O lugar único do contemplador, que se situa do lado de fora do evento dos dois personagens, lhe permite o movimento de empatia estética (colocar-se no lugar do outro) e depois o movimento exotópico (voltar ao seu próprio lugar de fora do evento), que lhe permite ver e compreender pelo seu excedente de visão, o que os outros não podem ver. Situado do lado de fora da arquitetônica participo dela como um contemplador ativo pela efetiva exotopicidade do contemplador em relação ao objeto contemplado. Nessa arquitetônica estética não há saída possível para o mundo daquele que age como contemplador, porque ele está situado do lado de fora do campo da visão estética objetivada.
O autor se volta, em seguida, para a arquitetônica real do mundo realmente experimentado da vida, o mundo da consciência participante e realizadora. Nela ele estabelece a essencial diferença em ter a minha própria unicidade e a de outro ser humano: a diferença entre eu e o outro. “Eu, como eu único, venho do interior de mim mesmo; quanto aos outros, eu os encontro, dou com eles: isso constitui uma profunda diferença ontológica em significância dentro do evento do Ser” (Bakhtin,1993b,p.91).
Procurando sintetizar as idéias de Bakhtin encontradas nesse texto, compreendo que o dever arquitetônico de realizar o lugar único no ser-evento-único é determinado antes, e acima de tudo, como uma contraposição entre o eu e o outro. Na teoria bakhtiniana é importante compreender que nessa relação eu-outro, o outro é constitutivo do eu, sem o outro eu não posso Ser.
Enquanto professora, como posso descobrir e compreender o lugar do outro, meu aluno? Se “eu os encontro, dou com eles”, o que fazer para que esse encontro seja constitutivo de nossas subjetividades? Como esse encontro me possibilita Ser? Como a estética pode me aproximar da compreensão do mundo como evento concreto real? Como integrar a estética no meu ato de educar?
Terceiro fragmento: Educar como uma ação ativamente responsável
Chego ao final dessa minha escrita me reportando ao primeiro texto que Bakhtin escreveu, ainda muito jovem: “Arte e Responsabilidade”. Trata-se de um texto pequeno, de pouco mais de uma página, mas muito denso, no qual incita uma importante reflexão ao dizer que “ciência, arte e vida só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade” (2003:p.XXXIII). Para o autor, o nexo interno entre esses elementos é garantido pela unidade da responsabilidade. Essa afirmação que é o substrato de tudo o que escreveu depois, coloca como centro de sua atenção as ciências humanas em uma perspectiva ética e estética. Nesse sentido, vejo que para a educação - que tem como objetivo o homem em seu acontecer - conhecimento científico, vida e arte devem estar juntos, não de forma mecânica mas numa unidade tecida na responsabilidade. Conhecimento que parte da vida e para ela deve retornar, arte que responde pela vida e vida que inspira a arte. Compreendo assim, que ser educador é se responsabilizar por essa integração entre conhecimento, vida e arte. Este é o desafio que a contemporaneidade nos apresenta. È preciso derrubar os muros das escolas , penetrar na vida, na arte e construir a partir delas, com aquilo que os alunos experienciam, o conhecimento necessário.Um conhecimento marcado pela beleza da imagem, do som, das letras que fazem rir, chorar e encantar. Um conhecimento que não seja algo estéril, meramente reproduzido e memorizado mas algo que problematize, que leve a buscas de novas respostas, que ajude os alunos a compreenderem e se inserirem responsavelmente no mundo em que vivem. Um conhecimento que transforme alunos e professores não em meros repetidores mas em autores, autores de suas palavras, criadores de novas possibilidades.
Para além dos fragmentos
As palavras de Bakhtin, que escolhi trazer para este texto nos inserem na reflexão do que ele denomina de Ser-evento-único-responsável. E diante disso pergunto: Como isso se revela em minha vida, em minha experiência? Até que ponto estas palavras apenas me seduzem e as repito porque cantam em meus ouvidos e são belas? Até que ponto elas permanecem como coisas apenas ditas, repetidas, mas não vividas? Como fazer para que façam parte de mim em minha unicidade? Como fazer de meus atos respostas a um dever concreto? Como chegar à compreensão ativa de que Ser é comprometer-se?
Pensando em como responder essas questões, cada vez mais compreendo que Bakhtin é um autor especial. Ninguém passa por ele impunemente. Ler Bakhtin é me colocar numa situação de compreensão ativa que exige respostas. Ler Bakhtin é superar o momento do conhecimento teórico e integrá-lo a minha vida. É, sobretudo, um exercício de reflexão que não me fecha em mim mesma mas que me abre, me empurra para o outro, para o diálogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário