As palavras da obra publicada em letra de imprensa são tão minhas quanto as palavras que, depois da leitura, penso em silêncio, falo ou escrevo. Os direitos do autor não são uma questão artística; pertencem antes ao contencioso legal das artes modernas. Textos literários são legados a nós, leitores, para que deles tomemos posse. Podemos acrescentar a palavra alheia ao nosso vocabulário, assumir a frase lida e memorizada, incorporar a vivência do outro à nossa experiência. Ao ler, deixamos que a obra inscreva sua marca na nossa memória, ao mesmo tempo em que fincamos o marco no território que foi de um e passou a ser de todos. Ao fincá-lo, abolimos para todo o sempre o pertencimento exclusivo da obra a seu autor e à sua época.
Silviano Santiago
Silviano Santiago
São as palavras de Silviano Santiago que me trazem a grande questão deste texto: como ser autor num território tão “desautorizado” como a internet? No espaço da web podemos literalmente realizar o que o autor prevê para a leitura literária: em alguns casos podemos não só tomar posse do texto alheio, como fincar bandeira em seu território e acrescentar ou subtrair palavras e frases.
Embora conhecendo muitos estudiosos da área da linguagem que têm discutido a questão da autoria, e reconhecendo a importância de tais estudos, busco aqui compreender a formação do aluno produtor/autor de textos nos blogs literários à luz dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, cuja teoria da linguagem contestava as duas tendências presentes na lingüística de seu tempo, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato, que reduziam a língua a uma enunciação monológica isolada ou a um sistema de normas. Bakhtin e seu Círculo afirmam ser impossível um sistema de língua sincrônico, pois “toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal”. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p.101)
Bakhtin/Volochínov valorizam a enunciação, na sua “natureza social, não individual e indissoluvelmente ligada às condições de comunicação, que por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais”. (2003, p.14)
Dessa maneira, a fala representa o “motor das transformações lingüísticas” e a palavra representa a “arena” onde se dão os confrontos de valores sociais dissonantes: “os conflitos da língua refletem os conflitos de classe”. (2003, p.114) Assim, a linguagem é um fenômeno dialógico que pressupõe a existência de um falante e de um ouvinte.
Enquanto as unidades da língua são neutras, sem autoria e não admitem resposta, os enunciados são autorais, têm um destinatário e são carregados de juízos de valor, emoção, paixão e estão sempre orientados ao outro, inclusive quando este não se apresenta face a face.
Toda palavra comporta duas faces: precede de alguém e se dirige para alguém. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro. (...) A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e outros. (...) A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p.117)
Se então compreendemos a linguagem como um fenômeno dialógico, pressupomos que a idéia de autoria individual é relativa e traz em si um caráter coletivo e social de produção de textos. O autor é marcado pelas condições de seu tempo, de sua realidade e ao escrever, está condicionado a uma série de leis lingüísticas às quais deverá submeter-se para que se faça inteligível. Necessitará ainda levar em conta a sua arena imaginária, considerar a quem o seu texto se destina, convocar as vozes do auditório de seus prováveis leitores. Para Bakhtin, “qualquer locução realmente dita em voz alta ou escrita para uma comunicação inteligível é a expressão e produto da interação social de três participantes: o falante, o interlocutor e o tópico”.
Em “O autor e a personagem”, Mikhail Bakhtin, traz que o “autor: é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta.”. O autor é aquele que participa da obra e que dela conhece para além daquilo que qualquer personagem conheça ou enxergue. Isso só é possível graças à sua posição exotópica, ao seu excedente de visão e conhecimento. Assume assim, na concepção do estudioso russo, não um papel passivo, mas uma posição ativa com respeito ao conteúdo. Ao escrever o autor esboça um planejamento sobre seu texto: as características de seus personagens, as relações que serão estabelecidas, os acontecimentos que farão parte da narrativa. Embora no decorrer da escrita a trama possa tomar caminhos diferentes, pois está sempre em movimento, é no autor que “se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra.”.
Faraco (2005) assinala que Bakhtin distingue em sua obra o autor-pessoa (escritor) do autor-criador (função estético-formal engendradora da obra):
O ato criativo envolve desse modo, um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um autor-criador e não o autor-pessoa que compõe o objeto estético (há aqui, portanto, já um deslocamento refratado à medida que o autor-criador é uma posição axiológica conforme recortada pelo autor-pessoa); e, segundo, porque a transposição de planos da vida para a arte se dá não por meio de uma isenta estenografia (o que seria impossível na concepção bakhtiniana), mas a partir de um certo viés valorativo (aquele consubstanciado no autor-criador).
O autor-criador é assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida. (p.39)
Ainda segundo Faraco (2005), “a posição axiológica do autor-criador é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que guia a construção do objeto estético e direciona o olhar do leitor”.
A partir do olhar bakhtiniano do que seja um autor, passo a pensar o que tem sido o autor para a escola de nosso tempo.
Quando penso nas atividades de produção textual desenvolvidas em sala de aula, recordo-me imediatamente das aulas de Língua Portuguesa onde me eram solicitados textos que invariavelmente passavam por narrar algum acontecimento (pessoal ou da atualidade), re-contar uma história lida ou ainda elaborar um conto com personagens previamente definidos pela professora. Embora gostasse de escrever, essa tarefa apresentava-se para mim sempre como um fardo, ao mesmo tempo em que me preocupava sempre em estabelecer um padrão que tinha como intuito o de agradar à minha única leitora: a professora. Mas seria tarefa da escola formar autores? Em que contexto? Os alunos se tornariam autores ou copiadores de fórmulas de como se escrever determinado gênero textual? Penso que a escola como lócus principal de letramento não pode se abster dessa discussão e que pensar a autoria dos alunos principalmente nas aulas de Língua Portuguesa é uma demanda não só atual como necessária.
Retomando o pensamento de Bakhtin e aliando-o à minha percepção enquanto aluna e hoje professora e pesquisadora da questão, posso dizer que a produção textual que realmente contribuiria para a formação de alunos/autores, deve se pautar em alguns pressupostos. O primeiro deles é que o auditório imaginário do aluno não pode ficar restrito ao professor, visto que é da interação com o outro que nasce o diálogo. Outro ponto importante é que ele possa exercer o seu distanciamento do texto, para que possa olhá-lo de fora, saindo da situação de produtor para assumir a posição de autor, dando acabamento à sua obra. Esse outro olhar pode ser proporcionado pelo professor e por seus pares.
E como tornar possível esse exercício de se tornar autor? A meu ver apenas concebendo a sala de aula como espaço para relações dialógicas de aprendizado. Neste sentido busco discutir a autoria nos espaços digitais, privilegiando aqui os blogs literários. Cabe destacar que este é o projeto de pesquisa que atualmente desenvolvo com duas professoras de Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação João XXIII.2
Antes de discutir a autoria nos blogs literários, creio ser necessário fazer aqui uma rápida contextualização desse gênero de discurso presente na web: o blog.
Os weblogs, ou simplesmente, blogs, são formas de publicação na Web, cujas características principais são a atualização constante e o formato de diário com textos, notícias e opiniões individualizadas e com um estilo basicamente informal e subjetivo. Representam atualmente um dos sistemas mais populares de publicação na internet3.
O termo weblog, hoje simplesmente blog, surgiu a partir dos termos web (rede de computadores) e log (espécie de diário de bordo utilizado por navegadores para anotar as posições do dia) e foi criado por Jorn Barger, editor do site Robot Wisdom, no ano de 1997 4.
Os textos são publicados em blocos chamados “posts”, organizados em ordem cronológica (pela data de publicação). Esses blocos de texto costumam utilizar muitos links para fontes e contraposição de fontes (Blood apud Primo; Recuero, 2003, p.56), sendo esta também uma característica desses blogs.
Os primeiros blogs baseavam-se em links e dicas de sites pouco conhecidos e comentários, atuando como publicação eletrônica. Desse modo, ao contrário do comumente difundido, não nasceram com o fim específico de serem usados como “diários eletrônicos”, mas como formas da expressão individual. (Primo; Recuero, 2003)
No espaço do blog, é permitido ao internauta concordar ou discordar dos posts, posicionar-se:
(...) criar novos nós para a rede hipertextual, seja através de um comentário, seja através de um link para seu próprio blog, criando espaços de negociação – embora estes espaços (janelas de comentários) destinados ao debate sejam menos visíveis, laterais ao grande espaço dos textos do blogueiro. Mais do que seguir links e trilhas, criar novos nós e links. A ação do internauta aqui, portanto não se restringe a percorrer trilhas entre os links na Web, a simplesmente navegar. Ela é constituída de forma conjunta, modificando a estrutura da própria Web. Trata-se de uma ação coletiva e construída de complexificação e transformação da rede hipertextual pela ação dos blogueiros e leitores, que terminam por participar também como autores. (Primo; Recuero, 2003:58)
Criar um blog não é tarefa difícil e qualquer pessoa com um computador conectado à internet pode facilmente fazê-lo. Para Komesu (2005) sua popularidade se apóia na ausência da exigência de conhecimentos técnicos de informática e na gratuidade.
Embora ainda guardem muitas características de diário pessoal, os blogs, de acordo com a definição de gêneros de discurso de Bakhtin (2003), trazem em si um caráter flexível, visto serem tipos relativamente estáveis de enunciados. É esse caráter de relatividade que demonstra a flexibilidade do gênero, ligada diretamente às práticas sociais. Novas necessidades discursivas demandam o surgimento de novos tipos de blogs. Ainda que apresente características do diário, o blog apresenta características bem marcadas, como o auditório e a intenção discursiva.
Na atualidade há blogs de diversos temas e objetivos. Um novo formato de blog tem ganhado espaço e acessos: os blogs literários, que se caracterizam por postagens como conto, poemas e outros textos de autoria do blogueiro.
Dentro da lógica peculiar de ambiente digital de produção de textos, o blog literário possui elementos que permitem a participação e exploração do leitor, que é convidado a interagir com o autor, demandando um feedback que por sua vez, requer uma produção escrita. Dessa maneira, a escrita nos blogs traz novas formas de diálogo (citações, opiniões, comentários, discordâncias) que só podem se constituir a partir da escrita:
O ciberespaço incita novas localizações paradigmáticas e a literatura se deixa desconstruir para se remodelar em aspectos dinâmicos: inter, intra e hipertextuais. Assim como os estatutos artísticos estão sendo redefinidos, os conceitos clássicos de valor, realidade e verdade estão sendo remodelados. (SANTOS, 2002)
E se até mesmo editoras têm descoberto novos autores nesse espaço, como João Paulo Cuenca, Clarah Averbuck e Daniel Galera, que “pularam” das páginas de seus blogs para páginas impressas, não pode a escola trabalhá-los enquanto espaço de formação do leitor/autor?
Impossível não pensar que, embora a escola tenha realizado movimentos no sentido de tornar o computador e a internet instrumentos culturais de aprendizagem, estes ainda são de certa forma incipientes se levarmos em conta toda gama de opções a que nossos alunos adolescentes estão expostos ao simplesmente abrirem a página de um site de relacionamentos para verificarem suas mais recentes visitas. Não podemos fechar os olhos para o fato de que a internet se configura na atualidade como um espaço de expressão mais usado por nossos jovens alunos. São todos “googados”, estão no Orkut, no Twitter ou MSN, senão em todos eles ao mesmo tempo. Como bem nos traz Coracini (2006), a escola não pode mais se mostrar alheia a tudo isso, insistindo em permanecer à margem desse mundo híbrido, heterogêneo, complexo, que, por isso mesmo, espalha tensões, conflitos e contradições que precisamos administrar para não sucumbir.
Eis o meu desafio e convite para essa roda, circular pelos caminhos da autoria em Bakhtin e buscar novas reflexões para o trabalho com a literatura e a escrita literária na escola por meio da internet.
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
________, Mikhail (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia de linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
CHARTIER, Roger. Do códex à tela: as trajetórias do escrito. In: ____. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XUIII. Brasília, DF: UNB, 1994.
_______. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP/Imprensa oficial do Estado, 1999.
CORACINI, Maria José. Identidades múltiplas e sociedade do espetáculo: impacto das novas tecnologias de comunicação. In: MAGALHÃES, Isabel; CORACINI, Maria José; GRIGOLETO, Marisa (orgs.) Práticas identitárias: língua e discurso. São Carlos: Claraluz, 2006.
COSTA, Sérgio Roberto. Oralidade, escrita e novos gêneros (hiper) textuais na Internet. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção; COSTA, Sérgio Roberto (orgs). Leitura e escrita de adolescentes na internet e na escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
FARACO, Carlos Alberto. In: BRAIT, Beth. Bakhtin:conceitos-chave(org.).2.ed.São Paulo:Contexto,2005.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Da tecnologia da escrita à tecnologia da Internet. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção; COSTA, Sérgio Roberto (orgs). Leitura e escrita de adolescentes na internet e na escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
KOMESU, Fabiana. Blogs e as práticas de escrita sobre si na internet. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER, Antônio Carlos (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
PRIMO, Alex Fernando Teixeira; RECUERO, Raquel da Cunha. Hipertexto Cooperativo: Uma análise da Escrita Coletiva através dos Blogs e da Wiquipédia. Revista FAMECOS, n.23, p.54-63, Dez.2003.
SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
SANTOS, Cinthya Costa. “Literatura Digital: Intertexto, Intratexto e Hipertexto”. In: 2 Encontro de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras da UFRJ, 21 a 23 de outubro de 2002.
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