Fabiana Giovani
Primeiramente, devo dizer que meu desafio aqui é corroborar com o objetivo do círculo 2009 que, a meu ver, é muito coerente com o pensamento bakhtiniano. Para isso, retomo a voz do grupo organizador:
Queremos textos bonitos, fortes, entusiasmados, olhando menos pro academicismo dos congressos e mais para o mundo e dizendo no papel: Que preocupações tal(is) tema(s) te provoca? Que pensares te obriga a desenvolver? Que perguntas este(s) tema(s) levanta(m)? O que seria bom pensar nele(s)?
Pensar bakhtiniamente é voltar-se a um pensamento complexo que recusa, dentre outras coisas:
- dicotomias grosseiras;
- olhar ingênuo;
- redução das idéias do autor e seu círculo em um manual.
Tudo isso porque seu pensamento envolve linguagem, sujeito, história, contexto... e tudo o mais que pode ser resumido em uma palavra: V I D A.
Particularmente, o que me interessa é pensar na arquitetônica bakhtiniana com um olhar voltado para a educação no Brasil.
A questão que faço é a seguinte: Quantos ‘eventos únicos e irrepetíveis’ – referência central nas elaborações filosóficas do autor, segundo Faraco (2006) – ocorrem na escola e são desprezados? E por quê?
A minha tentativa de resposta é que isso ocorre devido a falta de comunicação entre o mundo da teoria x mundo da vida. Bakhtin em seu texto ‘Para uma filosofia do ato’ (1916 p. 2) revela:
‘O mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que neste não há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida’.
Bakhtin, ao insistir no trato do singular, do único, do irrepetível, tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do ser humano concreto. É esse ser único que ocupa um lugar único que jamais foi ocupado por alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro que se senta nos bancos escolares de ontem, de hoje e do amanhã. E, com o ‘outro’- o professor dentre muitos outros - forma um universo de valores.
Uma pluricidade de valores – diferentes – convivendo, em um mesmo mundo, de forma ativa. É o respeito a isso que garantiria, com toda a certeza, a formação de um ser que passa pela escola e, conseqüentemente, o crescimento humano. Porém, não é isso que ocorre. A multiplicidade existente e inerente acaba sendo morta pela ‘foice da desigualdade’, na expressão de Geraldi (2009).
A leitura que faço é a de que a educação de nossas escolas vem prezando e confirmando a desigualdade... e isso com base na ‘diferença’. Dessa forma, cada ocupante dos bancos escolares diferencia-se como único e ‘singular’ por um número e esse tem um tom valorativo que o qualificará como aluno 10, portanto, excelente! Ou aluno 6, mediano! Ou ainda, aluno 2, ruim! Pensando ainda nas crianças em fase de aquisição da língua escrita, temos a classificação ‘aluno silábico’ ou ‘aluno alfabético’.
Ora, crianças que estão em níveis diferentes de aprendizagem e que poderiam constituir-se através do diálogo são rotuladas pela desigualdade, uma vez que elas próprias, muitas vezes, apropriam-se desses valores desiguais, revelados em suas falas, como por exemplo: ‘fulano senta neste lugar porque é alfabético (sabe escrever), enquanto cicrano não sabe escrever porque não é alfabético e, por isso, ocupa este outro lugar na sala’ .
Bakhtin dirá que não há, nem pode haver, enunciados neutros, sendo que todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto. Sabemos a serviço de quem está a escola. Mas, até quando? Por quê? Para quê?
Utópico ou não, sonho com uma escola que respeite a refração do mundo e não que seja somente o seu reflexo. Nas palavras de Faraco (2006 p. 50):
‘refratar significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos – na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos – diversas interpretações (refrações) desse mundo.
E que todas as interpretações dialoguem! Com valores diferentes, mas não desiguais! Como diz Medvedev (1994) ‘ no horizonte ideológico de uma época ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente contraditórias’. Se assim é, por que a escola preza por uma verdade? Por que valoriza um tipo de aluno?
Necessita- se urgente de que a educação - representada pela escola – entenda o diálogo como lugar de contradições e não de consenso. Assim, as relações dialógicas devem ocorrer como espaços de tensão entre enunciados. Aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua respectiva voz social), como vem fazendo, é recusar outros enunciados (e suas vozes sociais) que podem se opor dialogicamente a ela.
Uma lição que a escola deveria retirar dos estudos bakhtinianos é dizer não ao monologismo! Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência monologizadora, que negue a existência de um outro ‘eu’ com iguais direitos e iguais responsabilidades.
A escola com sua atual atitude monológica é insensível às respostas de um ‘outro’; não as espera e não reconhece nelas nenhuma força decisiva; Pretende ser a última palavra, infelizmente.
Enfim, uma ‘pequena’, mas significativa contribuição da arquitetônica bakhtiniana à escola é que esta siga a via do diálogo sem fim... Pois esta é a única forma de preservar a liberdade do ser humano e de seu inacabamento.
Referências bibliográficas
Primeiramente, devo dizer que meu desafio aqui é corroborar com o objetivo do círculo 2009 que, a meu ver, é muito coerente com o pensamento bakhtiniano. Para isso, retomo a voz do grupo organizador:
Queremos textos bonitos, fortes, entusiasmados, olhando menos pro academicismo dos congressos e mais para o mundo e dizendo no papel: Que preocupações tal(is) tema(s) te provoca? Que pensares te obriga a desenvolver? Que perguntas este(s) tema(s) levanta(m)? O que seria bom pensar nele(s)?
Pensar bakhtiniamente é voltar-se a um pensamento complexo que recusa, dentre outras coisas:
- dicotomias grosseiras;
- olhar ingênuo;
- redução das idéias do autor e seu círculo em um manual.
Tudo isso porque seu pensamento envolve linguagem, sujeito, história, contexto... e tudo o mais que pode ser resumido em uma palavra: V I D A.
Particularmente, o que me interessa é pensar na arquitetônica bakhtiniana com um olhar voltado para a educação no Brasil.
A questão que faço é a seguinte: Quantos ‘eventos únicos e irrepetíveis’ – referência central nas elaborações filosóficas do autor, segundo Faraco (2006) – ocorrem na escola e são desprezados? E por quê?
A minha tentativa de resposta é que isso ocorre devido a falta de comunicação entre o mundo da teoria x mundo da vida. Bakhtin em seu texto ‘Para uma filosofia do ato’ (1916 p. 2) revela:
‘O mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que neste não há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida’.
Bakhtin, ao insistir no trato do singular, do único, do irrepetível, tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do ser humano concreto. É esse ser único que ocupa um lugar único que jamais foi ocupado por alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro que se senta nos bancos escolares de ontem, de hoje e do amanhã. E, com o ‘outro’- o professor dentre muitos outros - forma um universo de valores.
Uma pluricidade de valores – diferentes – convivendo, em um mesmo mundo, de forma ativa. É o respeito a isso que garantiria, com toda a certeza, a formação de um ser que passa pela escola e, conseqüentemente, o crescimento humano. Porém, não é isso que ocorre. A multiplicidade existente e inerente acaba sendo morta pela ‘foice da desigualdade’, na expressão de Geraldi (2009).
A leitura que faço é a de que a educação de nossas escolas vem prezando e confirmando a desigualdade... e isso com base na ‘diferença’. Dessa forma, cada ocupante dos bancos escolares diferencia-se como único e ‘singular’ por um número e esse tem um tom valorativo que o qualificará como aluno 10, portanto, excelente! Ou aluno 6, mediano! Ou ainda, aluno 2, ruim! Pensando ainda nas crianças em fase de aquisição da língua escrita, temos a classificação ‘aluno silábico’ ou ‘aluno alfabético’.
Ora, crianças que estão em níveis diferentes de aprendizagem e que poderiam constituir-se através do diálogo são rotuladas pela desigualdade, uma vez que elas próprias, muitas vezes, apropriam-se desses valores desiguais, revelados em suas falas, como por exemplo: ‘fulano senta neste lugar porque é alfabético (sabe escrever), enquanto cicrano não sabe escrever porque não é alfabético e, por isso, ocupa este outro lugar na sala’ .
Bakhtin dirá que não há, nem pode haver, enunciados neutros, sendo que todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto. Sabemos a serviço de quem está a escola. Mas, até quando? Por quê? Para quê?
Utópico ou não, sonho com uma escola que respeite a refração do mundo e não que seja somente o seu reflexo. Nas palavras de Faraco (2006 p. 50):
‘refratar significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos – na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos – diversas interpretações (refrações) desse mundo.
E que todas as interpretações dialoguem! Com valores diferentes, mas não desiguais! Como diz Medvedev (1994) ‘ no horizonte ideológico de uma época ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente contraditórias’. Se assim é, por que a escola preza por uma verdade? Por que valoriza um tipo de aluno?
Necessita- se urgente de que a educação - representada pela escola – entenda o diálogo como lugar de contradições e não de consenso. Assim, as relações dialógicas devem ocorrer como espaços de tensão entre enunciados. Aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua respectiva voz social), como vem fazendo, é recusar outros enunciados (e suas vozes sociais) que podem se opor dialogicamente a ela.
Uma lição que a escola deveria retirar dos estudos bakhtinianos é dizer não ao monologismo! Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência monologizadora, que negue a existência de um outro ‘eu’ com iguais direitos e iguais responsabilidades.
A escola com sua atual atitude monológica é insensível às respostas de um ‘outro’; não as espera e não reconhece nelas nenhuma força decisiva; Pretende ser a última palavra, infelizmente.
Enfim, uma ‘pequena’, mas significativa contribuição da arquitetônica bakhtiniana à escola é que esta siga a via do diálogo sem fim... Pois esta é a única forma de preservar a liberdade do ser humano e de seu inacabamento.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. (1979). Estética da criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__________, (1916) Para uma filosofia do ato. Trad. inédita de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza de Toward a Philsosophy Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
____________. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: As idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar edições, 2006.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e máscaras identitárias, exigências para a inserção no mundo global. Círculo bakhtiniano 2009: http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Jo%C3%A3o%20Wanderley%20Geraldi
GIOVANI, Fabiana. A ontogênese dos gêneros discursivos na alfabetização. Tese de doutorado em andamento, 2009.
MEDVEDEV, P. N. (1994[1928]). El método formal en los estudios literarios. Introducción crítica a uma poética sociológica. Tradução espanhola de T. Bubnova. Madri: Alianza Editorial.
__________, (1916) Para uma filosofia do ato. Trad. inédita de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza de Toward a Philsosophy Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
____________. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: As idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar edições, 2006.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e máscaras identitárias, exigências para a inserção no mundo global. Círculo bakhtiniano 2009: http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Jo%C3%A3o%20Wanderley%20Geraldi
GIOVANI, Fabiana. A ontogênese dos gêneros discursivos na alfabetização. Tese de doutorado em andamento, 2009.
MEDVEDEV, P. N. (1994[1928]). El método formal en los estudios literarios. Introducción crítica a uma poética sociológica. Tradução espanhola de T. Bubnova. Madri: Alianza Editorial.
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